Em meio à crise instalada em Brasília, o governo fez o que pôde no início da semana passada para divulgar a assinatura de uma carta de intenções entre o Ministério da Fazenda e representantes da indústria de medicamentos. Associações e sindicatos de empresas do setor, sob o comando da Associação Brasileira da Indústria Farmacêutica (Abifarma), concordaram em discutir uma trégua nos aumentos dos medicamentos, que valeria até dezembro. O próprio presidente da República se encarregou do anúncio, ainda que o acertado até o momento não vá além das intenções. Enquanto o governo reconhece que não terá como obrigá-los a “congelar” seus preços, alguns laboratórios não esperaram nem 24 horas para reafirmar sua disposição de continuar aumentando os preços quando considerarem necessário. O laboratório Aché, o maior de capital nacional, foi um deles, sob o argumento de que a equipe econômica deveria continuar longe do mercado.

Até aqui foi essa postura neoliberal que predominou no governo – e o consumidor sabe mais do que ninguém qual o custo dessa política. Estima-se, por sinal, que 50 milhões de brasileiros consumam diariamente algum tipo de medicamento e gastem em média R$ 250 por mês. Desde o início do Plano Real, em junho de 1994, os remédios subiram em média 118%, muito acima dos demais produtos. No mesmo período, a inflação apurada pelo Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese) foi de 90%. Alguns medicamentos subiram com fúria ainda maior: até 500%, como foi o caso do Propanolol, do laboratório Sanval, com alta de 498%, de acordo com o Conselho Regional de Farmácia do Distrito Federal. Entre os remédios mais consumidos, o que mais subiu foi o Gardenal, um anticonvulsivo fabricado pela Rhodia Farma, reajustado em 290% desde meados de 1994 (leia quadro na pág. ao lado). Reajustar os preços foi, na verdade, a regra. Um levantamento feito pelo Ministério da Saúde mostra que 957 remédios tiveram seus preços reajustados ao longo do ano passado, entre os mil medicamentos mais vendidos no País.

O principal argumento dos laboratórios para justificar os aumentos é a desvalorização do real em relação ao dólar, ocorrida em janeiro de 1999. Como grande parte da matéria-prima para produção dos remédios é importada, o dólar mais caro teria aumentado os custos de produção, e o repasse para o preço final é pago pelo consumidor no caixa da farmácia. Num mercado em que a concorrência de fato funcionasse, esse movimento não mereceria atenção especial: os concorrentes tratariam de forçar os mais gananciosos a baixar seus preços. No mercado nacional, a situação é bastante diversa: poucos laboratórios, a maioria deles multinacionais, dominam. Em um relatório preparado por deputados de oposição que participaram da CPI dos Medicamentos, a situação brasileira é descrita da seguinte maneira: “O aspecto oligopólico e a prática de cartelização do setor ficam evidentes na definição do preço dos medicamentos, no poder de poucos laboratórios”, diz o texto, assinado por parlamentares do PT, PSB e PCdoB. Na ponta do lápis, as dez maiores empresas faturaram quase metade (44%) do total faturado pelo setor no Brasil, que foi de US$ 12 bilhões em 1999 – e a fatia das 40 maiores chega a 87% do faturamento.

A deputada federal Vanessa Grazziotin (PCdoB – AM), que participou da CPI dos Medicamentos, considera que o fato de o setor ser dominado pelas multinacionais representa uma brecha para os laboratórios. “Acontece que em 95% dos casos são as matrizes no Exterior que vendem as matérias-primas para as filiais instaladas no Brasil. E, durante a CPI, encontramos evidências de superfaturamento nas importações”, afirma a deputada. O esquema funcionaria da seguinte maneira: as matrizes informariam que estão vendendo um produto a US$ 500, quando na verdade o preço de mercado é US$ 200. A filial aproveitaria a transação comercial para, na prática, enviar à matriz o dinheiro que lucrou no País. Aproveitariam ainda para pagar menos Imposto de Renda, já que o lucro declarado seria menor. Os laboratórios negam as acusações e afirmam que a diferença de preço das matérias-primas importadas se deve à qualidade superior do produto vendido às filiais. Um controle rigoroso sobre as planilhas de custos dos laboratórios, argumenta a deputada, aumentaria o controle da sociedade sobre o setor.

O presidente do Conselho Regional de Farmácia do Distrito Federal, Antonio Barbosa, considera ainda que é preciso reduzir as margens de lucro de toda a cadeia produtiva de medicamentos, dos laboratórios às farmácias, passando pelos distribuidores. “Hoje são os laboratórios que controlam todo o comércio. E, se é para escolher entre o controle do Estado e o controle dos laboratórios, eu prefiro escolher o do Estado”, diz ele.
 

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