Aeroporto de Roissy Charles de Gaulle, arredores de Paris, terça-feira 25.
16h42 – O Concorde AF 4590 decola em direção a Nova York.
16h42m56” – A torre de controle avisa o piloto que a traseira do avião está em chamas. O piloto responde: “Motor dois em pane.”
16h43 – O avião começa a virar para a esquerda.
16h45 – O Concorde se espatifa sobre um hotel a poucos metros da pista, numa violenta explosão, seguida de incêndio. Morrem instantaneamente 113 pessoas: 100 passageiros, nove tripulantes, e, no solo, três funcionários do hotel e uma turista inglesa. Por algumas centenas de metros, o aparelho deixou de atingir o centro da cidade de Gonesse, causando uma tragédia de proporções difíceis de avaliar.
No aeroporto, nas estradas e campos cultivados em torno, milhares de pessoas assistiram petrificadas ao acidente. Pouco depois, a onda de choque se espalhou pelo mundo. O inimaginável aconteceu. Um Concorde caiu, pela primeira vez em 30 anos. Se a queda do supersônico da Air France provocou uma comoção mundial é porque esse aparelho, prodígio da tecnologia européia, se transformou num mito. A cada decolagem, em qualquer aeroporto do mundo, há 30 anos, do mais desatento turista aos mais experientes comandantes de bordo, todos param para assistir aquilo que é considerado como um verdadeiro espetáculo. Para a maior parte dos mortais, ver o Concorde decolando ou aterrissando foi sempre um momento de pura magia.
Desde que foi projetado, ou voando pelos céus do mundo, o Concorde sempre foi o “avião do futuro”. Mais do que um meio de transporte, esse avião em forma de gaivota é uma idéia de mundo, da perfeição, da modernidade. Durante toda a segunda metade do século XX, as pessoas costumavam imaginar como seria o ano 2000 e a vida no terceiro milênio. Filmes, desenhos animados e histórias em quadrinhos mostravam os habitantes desses privilegiados tempos comendo pílulas ou pastas que saíam de tubos, morando em casas futuristas de linhas puras, serviços domésticos feitos por robôs, carros sem rodas pairando acima do chão e outras maravilhas. Mas o futuro chegou e constatou-se que essa vida de “família Jetson” nunca passou de pura fantasia. Só restou o Concorde. E por ironia da história, exatamente no ano 2000 o “avião do século XXI” se espatifou no solo, quebrando o mito da invulnerabilidade.

Foi o general Charles de Gaulle – a melhor encarnação da idéia de grandeza da França neste século – que moveu céus e terras para que o projeto do Concorde se tornasse realidade. Para tanto, ele não hesitou até em se aliar com a “pérfida Albion” – como os franceses chamam a Inglaterra. O avião foi construído num período de crescimento econômico e de autoconfiança da França. Por coincidência, no momento em que o Concorde caiu, estava na pista o herdeiro político de De Gaulle. O avião de Jacques Chirac, presidente da República, estava taxiando na pista quando recebeu instruções para esperar. O Concorde tem prioridade sobre tudo, inclusive presidentes. E Chirac, que estava voltando da reunião de cúpula do Grupo dos Sete em Okinawa (Japão), assistiu de dentro do avião à tragédia do Concorde. Justamente no aeroporto batizado “Charles de Gaulle”.

Segundo as primeiras revelações do exame da “caixa-preta”, além do motor número dois que estava em pane, o motor número um perdia potência. O piloto teria comunicado à torre que não conseguia recolher o trem de aterrissagem. Fragmentos de pneus foram encontrados na pista. Ainda não se sabe se o problema dos motores tem relação com a troca de uma peça, o reverso, no motor número dois, minutos antes da decolagem, a pedido do comandante.

Sucesso tecnológico – O Concorde foi um sucesso tecnológico e uma proeza industrial, mas teve de enfrentar problemas políticos, como a oposição dos Estados Unidos, mau perdedor, e de conjunturas adversas, como a crise do petróleo. A idéia de um avião supersônico capaz de transportar passageiros surgiu no início dos anos 60 e provocou uma verdadeira corrida entre europeus, americanos e soviéticos. Mas foi um consórcio franco-britânico o único a levar até a realização industrial o “avião do futuro”. O vôo inaugural decolou de Toulouse no dia 2 de março de 1969, mas sua utilização comercial só teve início em 1976, quando a Air France passou a fazer Paris–Rio de Janeiro e a British Airways Londres-Barein.

Único avião supersônico do mundo a transportar passageiros, o Concorde viaja no que na terminologia aeronáutica é conhecido como “Mach 2”, ou seja, duas vezes a velocidade do som (2.146km/h) – os modernos jatos convencionais atingem em média a velocidade máxima de 900 km/h. É como se os passageiros do Concorde viajassem como uma bala de revólver, a 593 metros por segundo. Ao ultrapassar a barreira do som, o supersônico provoca o famoso “bang”, o barulho de explosão que é sua marca registrada. Atingindo 18.288 metros de altitude, a temperatura externa atinge 180ºC no nariz e 140ºC a 150ºC no restante do aparelho. Construído em alumínio refratário, o Concorde “estica” entre 18 e 24 cm, voltando ao normal depois.
Os especialistas esperavam fabricar 50 aparelhos apenas nos anos 70. As duas crises do petróleo (1973 e 1979) tornaram proibitivos o custo do avião e o preço das passagens. Além disso, os fabricantes tiveram de se engajar numa longa e custosa batalha judicial com as autoridades americanas, que simplesmente proibiram o Concorde de cruzar o espaço aéreo dos EUA. Apenas 16 unidades foram fabricadas, 13 das quais ainda estavam em uso até o acidente de Roissy. Seis pertencem à Air France e sete à British Airways. As rotas, que chegaram a incluir Rio de Janeiro, México, Caracas, Dacar, Cingapura e Tóquio, ficaram restritas a Nova York.

Símbolo do jet-set desde os anos 70, o Concorde atrai uma clientela de altos executivos internacionais, milionários, estrelas de cinema, vedetes e famosos em geral. Alguns se gabam de tê-lo tomado mais de 50 vezes. O recorde oficial é do americano Hans Hollander, 72 anos, que viajou de Concorde nada menos que 528 vezes. Outros economizam a vida inteira para fazer um único vôo. Para onde? Não tem a menor importância. Pegar carona nesse sonho não tem preço. A passagem de ida e volta Paris–Nova York custa cerca de US$ 8 mil, contra US$ 500 em vôos convencionais.
Qualquer que seja o resultado da perícia, o futuro explodiu num subúrbio de Paris. Nas asas do Concorde.

“Uma revanche européia”

 

Jean François Bruna-Russo, 58 anos, é presidente da associação “Ailes Anciennes” (Asas Antigas), com sede em Toulouse, que restaura aviões antigos e está criando um museu da aviação.

ISTOÉ – O que o Concorde representa para a indústria francesa?
Bruna-Russo
– Ele foi o símbolo do esforço e da inovação. De Gaulle dizia: “Temos que escolher: ou fazemos panelas ou fazemos o Concorde!” E fabricar panelas não leva ao mesmo resultado. O Concorde trouxe progressos tecnológicos incríveis, colocando empresas como a Aeroespaciale na ponta da inovação e qualidade. Se o Airbus veio depois é por causa de toda a pesquisa feita para fabricar o Concorde.

ISTOÉ – Por que o Concorde se transformou nesse mito único no mundo?
Bruna-Russo
– Primeiro, a velocidade. Depois, a forma, de uma pureza e beleza extremas, nada a ver com a massa pesada dos Boeings. Para nós, europeus, foi uma revanche. Nós tínhamos ficado para trás dos americanos e russos na corrida espacial e graças ao Concorde nós mostramos que a velha Europa era capaz de fazer coisas que os outros não podiam.

ISTOÉ – Esse acidente marca o fim do mito?
Bruna-Russo
– É difícil prever. O problema é que o Concorde não tem sucessor e existe uma clientela para esse tipo de avião. No dia seguinte ao acidente, os passageiros voltaram a tomar o Concorde. Não existe nenhuma máquina que não tenha provocado acidentes. As pessoas também morrem em Ferraris. E ninguém deixa de gostar delas por causa disso.