SÉRGIO LIMA/FOLHA IMAGEMA política de demarcação de terras indígenas em áreas contínuas no Brasil está em xeque. Causa espanto, por exemplo, que as 32 reservas nas mãos de tribos em Roraima correspondam a 46% do território do Estado, 103.000 km2, área maior que Portugal (92.345 km2). Os critérios utilizados pelo governo federal provocam discussão apaixonada. De um lado, o Exército, que nunca escondeu sua apreensão com supostas ameaças à soberania nacional e briga pela demarcação em forma de ilhas. Do outro, o governo Lula e as organizações ligadas à causa indígena, que não abrem mão da homologação de reservas em terras contínuas. O tamanho dessa divergência foi explicitada com as declarações do comandante militar da Amazônia, general- de-Exército Augusto Heleno Pereira, no Clube Militar do Rio de Janeiro, no dia 14 de abril. O general disse publicamente o que nove entre dez militares que atuam na Amazônia acham da política indigenista. Classificou-a de “lamentável e caótica” e considerou a homologação contínua “uma ameaça à soberania”. No meio das declarações do comandante, a discussão sobre um caso concreto, a demarcação da reserva indígena Raposa/Serra do Sol, em Roraima. As palavras de Heleno geraram uma crise: militares devem obediência ao governo, e contestá-lo publicamente é considerado um ato de insubordinação. A verdade, porém, é que o posicionamento do comandante da Amazônia está longe de ser um ato isolado. E animou outros militares a se posicionarem também. “Na terra indígena Raposa/Serra do Sol, você tem elementos não-índios que já ocupam a região há muito tempo, que produzem”, disse à ISTOÉ o general-de-brigada Antônio Mourão, comandante da II Brigada de Infantaria da Selva, na região do Alto Rio Negro, onde estão 17 mil índios. “Esse tipo de política não nos favorece. O que se busca em Raposa/Serra do Sol é que haja permeabilidade, aquela famosa demarcação em ilhas”, defendeu, reacendendo a polêmica.

Para Mourão, a política indigenista do governo “pretende segregar o indígena”. E vai além: “É como se esses camaradas não fossem brasileiros”, diz o general. “Você não pode considerar mais aquilo como uma área indígena contígua, porque isso foi interrompido desde o começo do século passado.” Para ele, a demarcação contínua numa área de fronteira é um risco à soberania. Um oficial do Comando do Exército em Brasília concorda com as ponderações de Mourão e Heleno. O Exército teme que algumas das “nações” indígenas decretem independência. Temem ainda que os índios possam ser cooptados por exércitos estrangeiros no caso de um possível conflito.

A posição dos militares está longe de ser consenso no governo. Para algumas autoridades, essa preocupação não tem fundamento. “Não vejo nada que represente perda de soberania com terra indígena na divisa do Brasil. Temos uma base do Exército em Uiramutã, dentro da terra indígena Raposa/Serra do Sol, onde estão construindo casas para militares”, diz o coordenador da Operação Upatakon III, da Polícia Federal, o delegado Fernando Segovia. Ao contrário dos militares, é justamente a partir de uma decisão de não-demarcação contínua da reserva que Segovia teme conflitos mais graves. “Se o STF decidir pela homologação em ilhas, a gente vai ter problemas com os índios que querem a homologação contínua, pois eles estão realmente revoltados.” Depois de fazer um extenso mapeamento do conflito, Segovia contabilizou 18 mil índios dentro de Raposa/Serra do Sol. O problema é que o próprio delegado admite que a decisão pela demarcação contínua também não impede a possibilidade de conflito. Dos 18 mil índios, há 200 que são empregados de fazendas que existem dentro da área, e eles dão apoio incondicional à presença dos patrões. São seis grandes plantadores de arroz e 53 pequenos agricultores. A PF concluiu que estes índios têm suas ações financiadas pelos próprios rizicultores. “Existem 17 lideranças indígenas e todas as 17 estão do lado da homologação da terra contínua”, afirma Segovia. “Os índios que apóiam a homologação contínua anunciaram que vão usar as mesmas táticas de guerrilha dos que apóiam os arrozeiros.”

ROBERTO CASTRO/AG. ISTOÉ

HELENO Ao criticar a política indigenista,
o comandante destapou a polêmica com ONGs

Raposa/Serra do Sol é, portanto, um paiol de pólvora prestes a explodir. “Os caiapós vão reagir, sempre fizeram guerra”, diz o cacique Megaron, administrador da Funai em Colíder (MT) e líder do Parque do Xingu. “Muito diálogo é melhor que borduna ou metralhadora.” Ele avisa que toda uma legião de guerreiros não aceita discutir homologação de terras indígenas. Questiona o suposto risco à soberania. “Quem fez a fronteira não foi o índio, morávamos lá antes de existir a fronteira e nunca deu problema, tudo era nosso.” O presidente da Fundação Nacional do Índio, o antropólogo Márcio Meira, diz que a posição do governo brasileiro quanto à demarcação contínua é decisão pessoal do presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Márcio critica os generais que agora forçam as demarcações em ilhas. “Onde você tem homologações em ilhas você tem conflito, como em Mato Grosso do Sul, onde os guaranis vivem sérios problemas de desnutrição e fome.” Márcio não acredita que as nações indígenas representem algum risco à soberania.

A questão sobre a demarcação é tão polêmica que divide até os indigenistas. Um dos mais respeitados especialistas na questão indígena brasileira, José Borges Gonçalves Filho, acha que é necessário rediscutir a idéia da demarcação contínua da reserva, e concorda com o ponto de vista do comandante da Amazônia. Zeca Cabelo de Milho, como é tratado carinhosamente pelos índios, já visitou 80% das terras indígenas do Brasil. Com a autoridade de quem é conselheiro do cacique Raoni, ex-aluno do etnólogo Pierre Verger e ex-auxiliar da psiquiatra Nise da Silveira, Gonçalves Filho considera que o risco de cooptação dos índios por estrangeiros interessados nas riquezas amazônicas é real, e que a defesa dos índios muitas vezes esbarra em conceitos românticos de quem não conhece de fato a realidade. “O general Heleno quebrou essa redoma lúdica em que o índio é tratado como objeto de estudo, dissecado como sapo nas universidades ou tratado como Deus”, diz Zeca. “Confunde-se terra indígena com santuário ecológico. O Exército deve manter domínio sobre linhas de fronteira, pois os agentes externos estão cooptando os índios e a população ribeirinha para produzir riquezas. O que o general falou é verdade.” Recentemente, Zeca ajudou a concretizar um convênio entre o Banco do Brasil e os caiapós, para apoio a projetos de desenvolvimento sustentável na área de extrativismo e comercialização de produtos florestais. “Os índios querem se integrar, produzir, ter acesso à informação, estão sedentos de conhecimento.”