De modo um tanto grandioso, ela o descreveu como alguém que tivesse a cabeça de um imperador romano. Na realidade, ela se parecia mais com uma batata. O traço predominante era o nariz, em um triângulo de Pitágoras perfeito, ladeado de perto por olhos de passarinho e sobrancelhas que pareciam vírgulas na horizontal. Para alguém que discursava de maneira contínua e com tal consequência, é surpresa a boca ser a característica mais discreta; os lábios pareciam duas tiras de pimenta coladas em cima de um rosto grande e massudo.

Ele era sua própria criação singular, um homem grande do ponto de vista físico com grande apetite pela vida, pela arte e pela amizade. Ele se vestia com ternos de lã inglesa independentemente da estação porque, para uma pessoa que vivia tentando superar o nascimento bastardo e a mãe sem princípios, os britânicos eram o epítome da respeitabilidade, e ele raramente saía à rua sem um cachimbo preso entre os lábios e sem usar chapéu, que sempre parecia pequeno demais e mal-equilibrado em cima da cabeça grande.

Nos pontos em que Picasso era arrogante, Apollinaire era exuberante. Caminhando por Paris de ponta a ponta, escrevendo poesia enquanto andava, ele compôs sua própria autobiografia. Era uma obra de ficção em que podia basear sua vida, uma história que o tornaria legítimo e que combinaria com seus entusiasmos enormes. Como Kostro, ele havia crescido pensando sempre de improviso, inventando histórias para se safar, um passo à frente da lei – esquivando-se de credores e esgueirando-se para fora de hotéis na calada da noite. No dia 7 de setembro, a lei o alcançou.

7

A prisão de Guillaume Apollinaire foi um avanço chocante em um crime chocante. O “papa do cubismo” foi levado algemado para o Palácio de Justiça, onde compareceu em juízo perante o magistrado Drioux. O procedimento estendeu-se noite adentro. Disseram a Apollinaire que fontes anônimas o haviam conectado ao Aff aire des Statuettes – especificamente que ele tivera contato com o ladrão que assinava como barão d’Ormesan e que ele havia sido o receptor das esculturas devolvidas havia pouco ao Paris-Journal.Se ele não identificasse o barão, seria indiciado por acobertar um criminoso, por posse de bens roubados e por obstrução de investigação policial.

Durante horas, Apollinaire recusou-se a fornecer informações. Finalmente, depois de interrogatório prolongado e infrutífero, o juiz Drioux assinou um mandado de prisão. Estupefato com a perspectiva de ser preso, Apollinaire concordou em falar, com relutância. “O Ladrão do Louvre” era Honoré Joseph Géry Pieret, um belga com trinta e poucos anos que estava morando no apartamento de Apollinaire e que trabalhava para ele como uma espécie de secretário. O d’Ormesan fictício de Apollinaire se descreve como “um artista (…) e, além do mais”, ele diz, “pessoalmente inventei meu ramo da arte, e sou o único a praticá-lo”.

De acordo com os relatos disponíveis, o verdadeiro Géry era bonito como um ídolo de matinê, alegremente amoral, provavelmente bissexual e absolutamente irresponsável. Seu pai, advogado de destaque em Bruxelas, havia cometido suicídio, e a mãe enlutada pagara ao filho pródigo para que saísse de casa para sempre.

Géry era um parasita social conciliatório e bem-educado, um vagabundo de acordo com a tradição francesa charmosa dos trovadores, que vivia de sua sagacidade e de seu charme, sempre brincando com o destino. Passara quatro anos vagabundeando no Oeste norte-americano e então retornara a Paris. Assim como Picasso e Apollinaire, Géry adorava o circo. Eles iam ao circo Médrano quase toda semana. Picasso pintou seus arlequins e artistas de rua, Apollinaire colocou-os em seus poemas e Géry se tornou promotor de circo. Quando não estava galopando por Paris praticamente nu, vestido apenas com um protetor de calça de couro de caubói, chapéu de vaqueiro e um par de placas de anúncio pendurado nos ombros, estava roubando artefatos do Louvre como passatempo. Para ele, era uma diversão e um de seus passatempos preferidos. Quando saía do apartamento de Apollinaire pela manhã, dizia a Marie: “Estou indo até o Louvre. Posso pegar alguma coisa para você?”

Incriminar a “gangue de Picasso” era mais um divertimento. Na história de Apollinaire, o barão d’Ormesan pergunta: “Qual de nós não tem um crime na consciência? De minha parte, eu nem mais os conto. Mas cometi diversos crimes, que me renderam uma boa soma de dinheiro. E se não sou milionário hoje, meus apetites, e não meus escrúpulos, são os culpados.”

D’Ormesan prossegue, e diz ao narrador em primeira pessoa de Apollinaire: “Você é a única pessoa a quem posso fazer confidências, porque o conheço há tanto tempo. E sei também que nunca vai me trair.” Depois de revelar a identidade de Géry, Apollinaire esperava ser solto. Em vez disso, foi levado para a prisão Le Santé, onde lhe tiraram a roupa, efetuaram uma busca corporal e o trancaram em uma cela. No dia seguinte, foi interrogado mais uma vez, durante horas. Apollinaire confessou que no dia 21 de agosto, agora uma data infame, ele havia comprado um bilhete de trem para Géry, com destino a Marselha, colocara os pertences do amigo em uma mala e pedira a ele que deixasse o país. Em vez de estar a salvo, longe da França, Géry reaparecera cinco dias depois e vendera sua história para o Paris-Journal.

A evidência circunstancial contra Apollinaire era condenatória. Apesar de Géry ser um trapaceiro incansável, que nunca ficava muito tempo no mesmo lugar, Apollinaire sempre o acolhia em suas diversas visitas a Paris e com frequência encontrava trabalho para ele. Apollinaire sabia que Géry tinha em sua posse obras de arte roubadas do Louvre, e mesmo assim lhe dera abrigo e, ainda pior, havia ajudado e instigado a fuga abortada do amigo. A Mona Lisa e o barão d’Ormesan desapareceram no mesmo dia – ela do Louvre, ele do apartamento de Apollinaire.

O chefe de polícia Lépine tinha certeza de ter apreendido um chefe de quadrilha da gangue internacional de ladrões de arte que ele caçava. Todas as peças – alvo, motivo e oportunidade – implicavam Apollinaire na abdução da Mona Lisa. Ao poeta provocador, só restava identificar seus cúmplices. Lépine queria o nome dos outros “colegas” de Géry – especialmente o pintor que havia comprado as estátuas roubadas. Como Apollinaire não entregou, Lépine avisou-lhe que, a menos que cooperasse e indicasse o pintor, todas as pessoas próximas a ele – sua mãe, Marie e seu irmão – seriam levadas a interrogatório e seriam feitas buscas na residência de cada uma delas. No final, Apollinaire deu aos interrogadores o nome que eles queriam. Ainda assim, tentou proteger o amigo, insistindo em dizer que “tinham tirado vantagem” de Picasso, que nunca soube que as antiguidades tinham saído do Louvre.
 
Picasso e Fernande estavam esperando notícias de Apollinaire com ansiedade. “Por não saber nada do nosso amigo, ficamos preocupados”, ela relatou. “Mas não tivemos coragem de ir visitá-lo.” Apollinaire estava detido há mais de 36 horas quando a notícia de sua prisão foi dada pelo Matin. Por cima de uma foto do poeta algemado, a manchete do dia 9 de setembro dizia:

Juiz drioux prende um crítico de arte, monsieur guillaume apollinaire, em conexão com as estatuetas egípcias roubadas do Louvre

Não foi sem emoção nem surpresa que Paris fi cou sabendo, ontem à noite, da prisão feita pela Sûreté em conexão com a recente devolução das estatuetas fenícias roubadas do Louvre em 1907. O simples nome da pessoa presa basta para justifi car a reação. Ele é monsieur Guillaume Kostrowsky [sic], conhecido na literatura e na arte como Guillaume Apollinaire (…), autor de um livro intitulado L’Hérésiarque et cie, que foi candidato ao último Prêmio Goncourt. Foi este o homem preso na noite de anteontem, sob ordens de monsieur Drioux, sob acusação de “abrigar um criminoso”. Quais são exatamente as acusações contra ele? Tanto o promotor público quanto a polícia estão fazendo mistério sobre o assunto. “Sem ameaçar os progressos já obtidos”, o Matin foi informado, “não podemos dizer nada além de que estamos na pista de uma gangue de ladrões internacionais que vieram à França com o intuito de saquear os nossos museus.”

Apollinaire era um dos integrantes mais notórios e famosos da comunidade artística de Paris, e sua prisão causou tanta sensação que o magistrado Drioux foi forçado a divulgar um comunicado formal em defesa da ação. A investigação “coletou evidências que tendem a mostrar que Guillaume Apollinaire cometeu transgressões contra o código penal”, o juiz escreveu. “Vou dizer ainda que sua prisão pareceu a mim indispensável ao julgamento da busca feita a fim de descobrir os ladrões do Louvre.” O Paris Herald noticiou: “A polícia acredita que o roubo das três estatuetas foi trabalho de uma gangue internacional de ladrões de museu e que essa mesma gangue é responsável pelo desaparecimento de la Gioconda”.

De acordo com a lógica forçada de Lépine, se integrantes da gangue estavam de posse das primeiras estatuetas roubadas do Louvre, só faltava descobrir onde haviam escondido a outra obra desaparecida. Quando a notícia da prisão de Apollinaire foi divulgada pelo jornal matutino, a polícia já cercava o outro líder da quadrilha.

8

Dezenove dias depois de a Mona Lisa ter desaparecido, a polícia fez uma visita ao Boulevard de Clichy. Picasso, que gostava de dormir até o meio-dia, foi acordado às sete da manhã por batidas insistentes à porta. Fernande, sonolenta, com olhos que não passavam de fendas e um penhoar de tecido transparente enrolado ao redor do corpo extravagante, abriu a porta. O ateliê apresentava uma cena de caos eclético sem preocupação com cor, ordem ou harmonia. Na luz do começo da manhã, o esboço da silhueta da igreja Sacré Coeur lampejava através de uma janela alta, parecendo mais um cenário do que um lugar onde pecados eram confessados e sacrifícios, oferecidos.

Cavaletes e telas compartilhavam o espaço no ateliê com figuras africanas de cerimonial, um imenso sofá estilo Luís Filipe estofado de veludo violeta com botões dourados e móveis deselegantes e pesadões de segunda mão que Fernande classificava como “o estilo Luís XIV” de Pablo. Penduradas de maneira aleatória pelas paredes, em ângulos estranhos, espalhavam-se tapeçarias de Aubusson em frangalhos, máscaras primitivas, estojos surrados de instrumentos, molduras folheadas a ouro lascadas e um pequeno e adorável quadro de Corot, de uma mulher.

Picasso era colecionador compulsivo. Seis olhos escuros e desconfiados e seis olhos frios, em tom de azul-bebê, espreitavam do meio da bagunça. Os olhos escuros pertenciam a Picasso, agora totalmente desperto e tremendo de medo, a seu macaquinho Molina e a sua cadela branca Frika, que se parecia mais com uma ovelha por tosquiar. Os olhos em tom de azul bebê pertenciam ao trio de gatos siameses de Picasso. Todos estavam fixos no intruso.

O detetive leu a intimação na segurança da porta de entrada, ordenando a Picasso que se apresentasse perante o magistrado da investigação, Henri Drioux, para interrogatório. O artista era suspeito de participar da comercialização de obras de arte roubadas do Louvre. De acordo com Fernande: “Géry, que Apollinaire tinha levado para visitar Picasso, havia dado ao pintor duas pequenas máscaras de pedra muito bonitas, sem revelar onde as obtivera. Só disse que elas não deviam ser exibidas de maneira muito conspícua. Picasso ficou encantado e deu muito valor aos presentes.” O relato de Fernande ou é ingênuo ou dissimulado.

Isolados pela barreira natural dos Pirineus, os ibéricos esculpiram um arquétipo primitivo poderoso que afetou Picasso profundamente. Ele havia visitado a exposição do Louvre várias vezes, e era bem provável que ele tivesse escutado o belga espalhafatoso gabar-se de suas atividades de dedos leves. No mínimo, Picasso sabia que as estátuas que havia comprado de Géry pertenciam ao museu. Na pior das hipóteses, podia ter encomendado o roubo, especificando as duas esculturas da exposição, descrevendo exatamente as peças que queria usar em seu quadro novo – uma cena de bordel grande e desconcertante que André Salmon batizaria de Les Demoiselles d’Avignon.

Se o detetive tivesse feito uma busca no ateliê de Picasso, teria encontrado evidências incriminatórias. Quando a polícia chegou batendo à porta naquela manhã de setembro, Les Demoiselles d’Avignon ainda estava em um canto. Picasso havia terminado a tela em março de 1907 e mostrado apenas para um punhado de amigos. Mesmo para aqueles pioneiros da avant-garde, Les Demoiselles passava a sensação de ser um ato escandaloso deliberado.

Braque disse que Picasso estava “nos fazendo comer refugos de algodão ou engolir gasolina, para que pudéssemos cuspir livremente”. Outros a classificaram como “um grito de insurreição e fúria”, “um retorno ao barbarismo e à selvageria primitiva”. Apollinaire mostrou-se reticente, coisa que não era de seu feitio. Daniel-Henry Kahnweiler, praticamente sozinho entre os marchands, artistas e amigos que viram a pintura no ateliê de Picasso, reconheceu o que tinha perante os olhos. Comprou todos os desenhos e estudos preliminares, e teria comprado a tela também, mas Picasso voltou a guardá-la. Em uma entrevista em 1961, Kahnweiler disse: “Não fui capaz de colocar um rótulo nela.

A imagem que Picasso havia pintado parecia a todos louca e monstruosa ao mesmo tempo. Havia algo de dolorido e de lindo ali, e opressivo, mas aprisionado”. A reação foi tão intensa que, quatro anos depois de terminá-la, Picasso ainda não havia exibido publicamente a pintura. Em vez de efetuar busca no estúdio, o detetive permaneceu paralisado à porta, perante os doze olhos atentos, enquanto Picasso se trocava. Em uma tentativa de bravata, o pintor escolheu sua camisa de algodão preferida, branca com bolinhas vermelhas, e uma gravata de seda elegante que contrastava com ela de maneira violenta. Ele tremia de maneira tão incontrolável que Fernande precisou abotoar a camisa para ele.

Com o rosto lívido e as roupas de cores vivas, Picasso parecia um de seus arlequins do Período Rosa. Foi levado de ônibus de Pigalle ao Palácio de Justiça. Não havia veículo policial disponível. O governo se recusava a pagar a corrida de táxi para um suposto criminoso, e o suspeito também não tinha permissão para tomar um carro de aluguel por conta própria. Picasso nunca mais tomaria o ônibus que ia de Pigalle a Halle aux Vins.

Enquanto a polícia pegava Picasso, Apollinaire era levado de sua cela na cadeia para o Palácio de Justiça. Ele foi transportado em “uma espécie de jaula” que era local muito apertado para um homem tão grande, e muito quente. Às onze horas da manhã ele chegou ao tribunal, onde se transformou no mais novo em uma longa fila de prisioneiros ilustres e infames. O assassino Ravaillac, que esfaqueou Henrique IV; a preferida da realeza, Madame Du Barry, amante de Luís XV; Charlotte Corday e seu amante não correspondido Adam Lux, a rainha Maria Antonieta e os revolucionários Danton e Robespierre haviam ficado detidos ali enquanto esperavam a execução. Apollinaire passou as quatro horas seguintes em uma estreita e fedorenta cela de detenção, com o rosto colado à grade, esforçando-se para ver quem passava no corredor.

Às três horas da tarde, um guarda o levou algemado para a sala do tribunal, a fim de que fosse indiciado junto com seu cúmplice. Quando a porta se abriu, ele foi engolido por uma enxurrada de repórteres e fotógrafos. Cerca de cinquenta câmeras foram apontadas para ele, e os flashes de magnésio o assustaram e irritaram. Posteriormente, Apollinaire diria: “De repente, percebi que estavam olhando para mim como se eu fosse um animal estranho. (…) Acho que devo ter dado risada e chorado ao mesmo tempo.” Apollinaire e Picasso se encararam de lados diferentes do tribunal como se fossem dois desconhecidos. Picasso parecia ainda mais baixinho naquele salão de justiça imponente. A camisa de bolinhas e a gravata contrastante eram um gesto de bravata que parecia mais patético do que desafiador. Depois de dois dias na cadeia, Apollinaire tinha um aspecto vazio, melancólico. Estava pálido e com a barba por fazer, a camisa desabotoada, o colarinho rasgado. O terno de lã bege, pesado demais para o calor terrível, estava amassado e esfarrapado.

O confronto entre os líderes da “gangue” teve as dimensões de uma ópera cômica que azedou. Ver o grandalhão Apollinaire como “um espantalho lamentável, desolado e sem substância” afetou Picasso. Ele disse a Fernande que ficou “completamente desesperado. Seu coração lhe falhou ainda mais do que pela manhã, quando havia sido incapaz de se vestir, de tanto que tremia.”

Pintor e poeta estavam tão nervosos que, em sua confusão e desespero para afirmar a própria inocência, a verdade e a amizade foram esquecidas. Eles se contradisseram um ao outro, cada um acusava o outro de ter levado as estátuas roubadas até o jornal. Os dois homens coraram e imploraram por perdão e liberdade. Apollinaire, depois de ser interrogado durante horas, como se fosse criminoso, confessou tudo: acolher Géry, ter em sua posse bens roubados, assinar um manifesto que incitava a incendiar o Louvre. Havia implicado e identificado Géry e Picasso no roubo das imagens ibéricas. Agora o juiz Drioux se concentrava no pintor. Olhando fixamente para Picasso através de seu pincenê, rouquejou perguntas com voz de cascalho. A pose de durão de Picasso evaporou como cores diluídas em terebintina. Em seu medo, ele alegou ignorância absoluta. Jurou que não sabia absolutamente nada a respeito do Affaire des Statuettes. Não sabia que as cabeças ibéricas primitivas haviam sido roubadas, e não conhecia Apollinaire. Da mesma maneira que ocorreu com Simão Pedro quando lhe perguntaram: “Você conhece este homem?”, Picasso respondeu: “Nunca o vi antes”.