No dia 30 de abril de 1981, o que era para ser um show de grandes nomes da MPB em comemoração ao Dia do Trabalhador virou uma das páginas mais infelizes da nossa história. No estacionamento do Riocentro, um Puma, tendo o capitão do Exército Wilson Machado ao volante, explodiu. Além de matar o sargento Guilherme do Rosário, a bomba atingiu em cheio o governo do general João Figueiredo, mudando não só a história do País como o humor do último general presidente. No dia em que o sargento era enterrado, a versão oficial já determinava que os militares haviam sido vítimas de um atentado, tese que foi comprovada por um Inquérito Policial Militar (IPM), montado para não apurar a verdadeira história. Nos porões do regime foi feito um acordo com a linha dura: a investigação seria uma farsa, mas os atentados contra entidades da sociedade civil e bancas de jornais acabariam.

Desde 15 de março de 1985, Figueiredo deixou a vida pública. Ele gostaria de entrar para a história como o general que desmontou a ditadura, mas no meio do caminho tinha o Riocentro. A decisão de não investigar marcou Figueiredo, que sempre procurou mostrar que não compactuou diretamente com a encenação do IPM. Figueiredo sustentava que deixou as investigações correrem de forma independente. "Afinal, não governei com o AI-5", repetia. Dezoito anos depois, a versão começa a ruir. O relato de uma reunião de generais no nono andar da antiga sede do Ministério do Exército, ao lado da Central do Brasil, no Rio, em 9 de maio de 1981, derruba a versão de que Figueiredo nada teve a ver com a farsa. A reunião foi convocada pelo ministro Walter Pires para escolher o substituto do coronel Luiz Antonio do Prado Ribeiro (pressionado, ele deixou o cargo) à frente do IPM. O desfecho da reunião não deixa dúvidas sobre a opção do governo Figueiredo por negar que o tiro da linha dura saíra pela culatra. A intervenção do Planalto foi decisiva para salvar do banco dos réus os autores do atentado. É o que comprova documento que um oficial do Exército mantém em seu arquivo, em São Paulo. A reunião é confirmada pelo general Octávio Costa.

Pressionado por antigos companheiros do Serviço Nacional de Informações (SNI), Figueiredo temia que os radicais que se opunham à abertura e ao retorno dos exilados criassem problemas. Por isso, preferiu tolerar um IPM que acabaria por nada esclarecer. Apesar do tema explosivo, o general Pires se mostrava descontraído na cabeceira da mesa, próximo ao comandante do I Exército, general Gentil Marcondes Filho, e diante de mais quatro generais. O principal interlocutor de Pires foi o general Vinícius Kruel, um militar com prestígio na oficialidade, sobrinho do general Amaury Kruel, que em 1964 garantiu apoio, em São Paulo, ao Movimento contra João Goulart. Pires logo dirigiu-se ao general Kruel, dando início ao diálogo.

Pires Kruel, queremos que você seja o novo encarregado do IPM do Riocentro, em substituição ao Prado.

Kruel Não gostaria de assumir esta função. Sou um soldado, mas acredito que minha designação para o IPM não seria conveniente.

Pires Você desempenhará bem a função e resolveremos logo este problema.

Marcondes Filho Não haverá problema e você sabe que quanto mais rápido resolvermos esse problema, melhor para o Exército.

Kruel Não creio que meu nome seja o mais indicado para o cargo. Em primeiro lugar, acredito que a escolha de um general-de-brigada dará margem a especulações sobre o envolvimento de oficiais de alta patente no caso.

Pires Não creio que tenhamos este problema. Você vai cumprir bem a missão.

Kruel Além disso, se eu não for promovido em julho (a general-de-divisão), vou ter de largar o IPM e o Exército terá de escolher um novo encarregado. Se for promovido, será estranho que um general-de-divisão seja o responsável por este IPM. Maiores especulações serão feitas sobre a participação de oficiais do alto escalão no atentado.

Pires O seu nome não envolve qualquer restrição.

Kruel Em função do apelo do chefe, aceitaria o cargo, mas devo deixar claro que não aceitaria pressões de qualquer tipo. Nem de companheiros, nem da imprensa, nem outras, partam de onde partirem. Vou buscar a verdade e os responsáveis pelo atentado para que sejam punidos.

Quando o general Kruel admitiu aceitar o cargo, Pires atendeu um telefonema do Planalto. Era Figueiredo. Comunicou então ao presidente que o IPM do Riocentro teria um novo chefe.

– João, o Vinícius Kruel acaba de aceitar o cargo de encarregado do IPM do Riocentro.

Houve, então, um silêncio na sala, enquanto Pires ouvia Figueiredo.

Em seguida, o ministro reproduziu para Figueiredo as condições de Kruel para assumir a missão:

– O Vinícius Kruel quer apurar o que houve e disse que não aceitará pressões.

Pires logo desligou o telefone, encerrou a reunião e disse que em 48 horas haveria uma decisão sobre o IPM. No dia seguinte, o coronel Job Lorena, homem da confiança do general Gentil Marcondes Filho, que havia enterrado o sargento Guilherme com o caixão coberto pela bandeira brasileira, seria convidado para o cargo e acabaria assinando um dos mais controvertidos relatórios da História. Job terminaria sua carreira como general, enquanto Kruel deixaria o Exército na mesma função em que estava na reunião do Salão D. João VI: a de general-de-brigada.

A imprensa, a oposição e alguns generais reagiram ao relatório. Na véspera da divulgação, o general Alzyr Benjamim Chaloub foi ao Ministério, para que os generais da área de ensino tomassem conhecimento das conclusões do IPM. Lido o relatório por Chaloub, a palavra coube ao general Octávio Costa: "Agradeço a V. Excia. por termos conhecimento do relatório antes da sua divulgação. Quero declarar que na área de ensino no Rio de Janeiro este relatório será encarado com a disciplina. Mas devo também afirmar que tudo o que está aí é falso." No momento em que Costa terminou sua avaliação, o comandante da Escola de Comando e Estado-Maior do Exército, general Diogo Figueiredo, irmão do presidente, tomou a palavra: "Faço minhas as declarações do general Octávio Costa." Depois, outros generais endossaram as palavras de Costa e Diogo, enquanto Chaloub mostrava perplexidade ao ouvir as críticas ao documento que havia lido com ênfase, como se fosse a expressão da realidade. Para surpresa do presidente Figueiredo, seu chefe da Casa Civil, general Golbery do Couto e Silva, também não aceitaria a versão e deixaria o cargo.

Passadas quase duas décadas do atentado, Octávio Costa acredita que "uma investigação verdadeira, que apontasse os responsáveis pelo atentado e os entregasse à Justiça fortaleceria ainda mais o presidente". O general Diogo ressalva: "Aquele relatório não esclareceu nada, mas creio que o governo não quis, também, colocar em risco o processo de redemocratização. O atentado foi resultado de uma ação clandestina de elementos insatisfeitos com a abertura política e a normalização político-institucional do País."

A reação dos generais pode ser o "fato novo" reclamado por juízes para a reabertura do processo. Afinal, ela desfaz o relatório de Job, que hoje se recusa a comentar o assunto. Quanto à repercussão nas Forças Armadas de nova investigação, o ministro do Superior Tribunal Militar, brigadeiro Sérgio Ferolla, garante que "em nada afetaria a rotina dos quartéis". Ferolla afirma que "o esclarecimento seria benéfico para o País".