Perto do apartamento onde vive na Recoleta, o prefeito de Buenos Aires, Fernando de la Rúa, o franco favorito a suceder o presidente da Argentina, Carlos Saúl Menem, não terá muita surpresa em encontrar uma Coca-Cola valendo 3,80 pesos em um dos famosos restaurantes do chique bairro da cidade portenha. Parece aceitável – até alguém sensato fazer a conversão e descobrir que existe algo estranho em um simples refrigerante valer o equivalente a mais de R$ 7, mesmo em dias de magreza da moeda brasileira. Se for eleito ainda no primeiro turno neste domingo 24, deixando para trás o candidato do Partido Justicialista, Eduardo Duhalde, como apontam todas as pesquisas de intenção de voto, o oposicionista De la Rúa, um advogado de 62 anos cuja imagem taciturna invoca um ar de austeridade que lhe valeu o apelido de “chato”, enfrentará um dilema econômico complicado logo que assumir o governo no dia 10 de dezembro: manter ou não a conversibilidade. Trata-se da lei que assegura desde 1991 a troca de um peso por um dólar para qualquer sujeito que bata na porta do Banco Central argentino.

O Brasil como espelho – O irrealismo nos preços é a faceta mais visível dos problemas da Argentina que nem uma profunda recessão depois de dez anos e meio de governo Menem faz os preços baixarem. A mágica da conversibilidade serviu para estancar anos de hiperinflação e abrir uma fase de estabilidade. O encanto agradou à população que confiou tanto nela a ponto de conceder um segundo mandato a Menem em 1995. Mas transformou a cidade de Buenos Aires em um dos lugares mais caros do planeta. Na campanha formada por uma coalizão inédita de centro-esquerda conhecida como Aliança, que reúne a centenária União Cívica Radical (UCR) e os rebelados peronistas e socialistas na Frente do País Solidário (Frepaso), o provável presidente argentino já deixou clara a intenção de preservar a paridade. Diante da fragilidade econômica e dos desafios políticos, só não se sabe se De la Rúa conseguirá ter sucesso em mantê-la.
“O mercado não vai dar um prazo muito grande”, aposta o economista Eduardo Curia, ex-membro do primeiro governo Menem. “Quem assumir não poderá titubear nas primeiras medidas para não repetir o que aconteceu com o Brasil.” Quase ninguém fala abertamente em mexer na paridade. Curia é um dos poucos que defendem a desvalorização do peso por acreditar que o regime cambial encareceu os produtos argentinos e diminuiu a capacidade competitiva do país. Enquanto a maioria dos países vizinhos, como o Brasil e o Chile, abandonou a rigidez do câmbio e deixou suas moedas flutuarem, os argentinos não querem tocar no assunto. Afinal, mexer no tema é como mexer com uma dançarina de tango nos braços de um galanteador argentino. É risco de vida.
De la Rúa acredita que poderá fazer as reformas capazes de dar maior competitividade à economia, reduzir os custos para o emprego de mão-de-obra, organizar o Estado de maneira mais eficiente e combater a corrupção que cresceu assustadoramente no período Menem. “Vamos acabar com a festa de poucos”, declara. Em dez anos o Pib argentino cresceu 50%, criando uma legião de novos-ricos muito próximos ao poder. Alguns amigos de Menem foram parar na cadeia por enriquecimento ilícito. Houve melhoras evidentes, como o fim da inflação, a modernização das telecomunicações e a consolidação da democracia. No entanto, as disparidades sociais cresceram em escala geométrica. No início do governo Menem, os 10% mais ricos ganhavam 15 vezes mais que os 10% mais pobres. Atualmente, recebem 25 vezes mais. O desemprego aumentou 140%. Hoje, mais de cinco milhões de argentinos não têm ocupação fixa.

Terremoto financeiro – É onde De la Rúa promete atuar aprofundando o ajuste, sem mudanças abruptas. Apesar de o principal formulador econômico da sua equipe ter deixado uma hiperinflação monstruosa quando pertencia ao governo Alfonsín, o economista José Luís Machinea ganhou a confiança do mercado em uma recente visita a investidores internacionais. Machinea nem pensa em mudar a paridade. Na sua visão, uma desvalorização do peso provocaria um terremoto de proporções imensuráveis. Em boa parte das transações rotineiras feitas em Buenos Aires, usa-se a moeda americana como base. Estima-se que cerca de 60% dos depósitos nos bancos estão cotados em dólar. Basta dar um simples telefonema à agência bancária para transformar na hora a poupança de pesos em moeda forte. O dólar é aceito largamente nos táxis, nos restaurantes e nos hotéis de Buenos Aires, mas também vale como parâmetro para os contratos de aluguel e as contas de água e luz.

Represálias – A Argentina necessita da entrada de dólares para poder dar fôlego à sua economia. Apenas no ano que vem, o país precisará de cerca de US$ 20 bilhões para honrar seus compromissos externos. É uma dinheirama para quem já privatizou quase todas as estatais. Com uma indústria sucateada e uma agricultura sofrendo com a queda dos preços dos grãos, a máquina de fazer dólares com exportação não gera saldos suficientes. Até o Brasil, que servia de destino final às mercadorias produzidas pelos argentinos, não funciona mais como uma válvula de escape. Na semana passada, o atrito comercial entre os dois países chegou a tal ponto que o governo argentino confiscou milhares de calçados brasileiros retidos na sua alfandêga e ignorou um acordo assinado com o governo brasileiro 15 dias antes. Alguns empresários locais, que fazem campanha para que se comprem produtos argentinos, querem que o novo governo construa barreiras contra os produtos estrangeiros, incluindo os do Mercosul.

Além do problema externo, Menem deixa o país numa situação fiscal complicada. O próximo presidente já não contará com uma receita de US$ 3,2 bilhões que deixará de existir no ano 2000. É dinheiro arrecadado pela venda da YPF, a empresa petrolífera já privatizada. Se nada for feito para equilibrar as despesas com a arrecadação, quem for para a Casa Rosada estará frente a um buraco nas contas públicas que pode superar os US$ 9 bilhões, o dobro do acertado pelo governo com o FMI que monitora as contas do país desde a adoção da conversibilidade. “O novo governo vai precisar de um ajuste rigoroso e deverá contar com a ajuda do FMI e do Banco Mundial”, afirma o economista Martín Redrado, presidente da Fundação Capital.
Mesmo com a tendência de a economia voltar a crescer a partir do ano que vem, a Argentina terá o desafio de encarar o nó cambial. “Não há saída: ou se desvaloriza ou se dolariza totalmente a economia”, afirma um banqueiro argentino. Como se não bastasse, a situação política não será nada favorável para ele avançar nas reformas. De la Rúa não terá maioria no Congresso. A maioria das províncias também estará nas mãos de governadores peronistas. Vale lembrar que Menem já mostrou sua disposição de voltar ao poder em 2003, e até lá comandará as bases do peronismo. “De la Rúa será um presidente que terá de negociar a todo instante com Menem”, diz Rosendo Fraga, diretor da União para a Nova Maioria, um centro de estudos políticos. “Esse será seu maior desafio, se também quiser registrar seu nome na história.”

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