Perda de prestígio político, cortes no já minguado orçamento, equipamentos obsoletos, baixos salários, falta de orientação estratégica, de investimentos tecnológicos e de mão-de-obra especializada. Tudo isso se tornou um pesadelo nas Forças Armadas. Os militares ficaram coesos e quietos. Não estão mais tão quietos. O recuo do governo na questão das aposentadorias para os militares mostra que ele se deu conta da grande insatisfação crescente na caserna. “Há um descontentamento generalizado. Os militares por serem disciplinados não ficam se queixando nos quartéis, mas, quando eles abrem o coração, você sente a revolta contra o governo”, revela um general da ativa, com mais de 40 anos de serviço e uma liderança entre seus pares.
Ele vê na indicação do ex-senador Élcio Álvares para o Ministério da Defesa o momento revelador de que o presidente Fernando Henrique não tinha um real furado de apreço pelo que vinha da caserna. “O Ministério da Defesa virou prêmio de consolação. O sujeito perde a eleição no seu Estado e vira ministro da Defesa”, diz. Sua crítica não é particularizada. “Nós não somos contra esse ou aquele, muito menos contra os civis. Pode ser um técnico. O que nós não queremos é um político.” Como base para a sua argumentação, o general pega a denúncia publicada com exclusividade por ISTOÉ revelando as ligações mais que perigosas de Álvares com o crime organizado no Espírito Santo. “O político é hiperexposto pela mídia. Ele precisa da mídia para sobreviver. Além disso, negocia para entrar no partido, para conseguir legenda, para ser relator, enfim, passa a vida negociando e se relacionando com todo mundo. Dificilmente vai chegar ao topo, sem estar de algum modo maculado por esses contatos. Aí vem a lama, como a ISTOÉ mostrou”, afirma.

Poderosa – O prestígio de Álvares desaba não só entre os generais do Exército. Numa reunião de brigadeiros da ativa e da reserva, no Rio, com a presença do comandante da Aeronáutica, tenente-brigadeiro Walter Werner Brauer, foi discutida a falta de comando do ministro. Chegaram à conclusão também de que está havendo irregularidades administrativas. “Quem manda no Ministério é a doutora Solange. Estamos tentando nos acostumar a isso, mas as denúncias criaram um clima muito desagradável”, afirma uma alta fonte da Marinha. O fato de ter a sócia de seu escritório de advogacia Solange Resende como superassessora está desgastando Álvares. Solange recebe R$ 4.940 como DAS-5, pouco menos que o soldo de um general de quatro estrelas que é de R$ 5.094,35 líquidos, em média. O ministro pode se complicar também entre seus ex-companheiros do Congresso. Os deputados Nilmário Miranda (PT-MG) e Antônio Carlos Biscaia (PT-RJ), membros da Comissão de Defesa Nacional da Câmara, requereram a convocação de Álvares para depor sobre as denúncias de envolvimento com o crime organizado no Espírito Santo. Já o presidente da CPI do Narcotráfico, deputado Magno Malta (PTB-ES), anunciou que vai convocar o delegado Francisco Badenes, autor de dois organogramas sobre a máfia capixaba em que aparece o nome do ministro para depor.

Disciplina – Apesar de entender que nos quartéis a popularidade de FHC é ainda mais rasa do que nas ruas, o general não vê no horizonte nada que possa se assemelhar a uma ruptura institucional (“estamos exemplarmente disciplinados”), mas faz uso de uma metáfora para lá de explícita a fim de alertar aqueles que, segundo ele, promovem um processo de revanche dentro do governo contra os militares: “O Exército é como um tigre amarrado ao trono. Ele pode levar uns cascudos, ouvir alguns impropérios e ficar quieto, mas um dia ele pode começar a roer o pé do trono.” Esse dia não chegou e pelo seu gosto nunca chegará mesmo quando se anuncia que militares influentes poderão se sentar no banco dos réus no caso Riocentro (leia quadro à pág. 30).

“Os militares da ativa não vão fazer a crise que alguns radicais da reserva, com velhos ranços, querem. Nós seguimos a liderança institucional”, diz o general. O problema dos militares é mais embaixo. “Do ponto de vista político, não vejo insatisfação desse tipo. A indignação é de uma categoria profissional que vê o governo vivendo só para as finanças, empurrando com a barriga questões estratégicas”, diagnostica o cientista político Eliezer Rizzo, do Núcleo de Estudos Estratégicos da Unicamp. Segundo Rizzo, “não há agito nas casernas que sinalize para qualquer ameaça institucional”. O que há é uma decepção com FHC. Na primeira gestão, o presidente teria deixado um saldo positivo ao criar o Ministério da Defesa no ritmo cauteloso reivindicado pelo comando das três Forças e estabelecer em 1995 a “Política de Defesa Nacional”, que baixou diretrizes básicas do treinamento militar. “O presidente passou a ser apenas um gerente das Forças Armadas, com o ministro da Fazenda, Pedro Malan, dirigindo tudo de fato”, critica. Pelas mãos de Malan passam, por exemplo, os gastos dos nossos 54 rapazes que estão ajudando a consolidar a paz no Timor Leste. À grande maioria dos militares soou quase como provocação o envio de uma tropa tão acanhada. “O que as potências mundiais devem estar pensando do nosso Exército?”, pergunta o general. Ele nem espera a resposta do interlocutor para emendar: “Como um país que tem a oitava economia do mundo, e quer pertencer ao Conselho de Segurança da ONU, envia somente um pelotão para um país de língua portuguesa?”

Os militares se vêem diante de cortes do orçamento que inviabilizam seus planos estratégicos. Nem o projeto Calha Norte, classificado como decisivo para a segurança das fronteiras amazônicas, foi poupado. Mais de 50 aviões da Força Aérea estão sem condição de vôo. O projeto nuclear da Marinha está quase parado. Seu autor, o almirante Othon Luiz Pinheiro da Silva, denuncia “os ‘calabares’ interessados no atraso tecnológico do País”. “A FAB está em processo de extinção”, diz o brigadeiro da reserva Eden Asvolinsque, que recentemente integrou a Junta Interamericana de Defesa, em Washington.

Além de insuficiente, parte considerável do orçamento militar destina-se ao pagamento de pensões para quem “lutou” na Segunda Guerra. Aí reside uma grande ironia. Os militares, hoje, juram que não pediram, mas os constituintes de 1988 deram generosamente soldo de segundo-tenente para os pracinhas e suas viúvas. Resultado: o Brasil é o único país do mundo que utilizou 23 mil homens e paga, mais de 50 anos depois, benefícios para quase 40 mil. “Esse dinheiro gasto com quem ficou aqui no litoral falta para o nosso custeio e investimento em armamentos modernos”, acusa o general.

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Susto – O governo ajudou a fomentar a insatisfação nos quartéis, quando o ministro da Previdência, Waldeck Ornellas, anunciou que os militares da reserva e os pensionistas iriam pagar uma contribuição de 11%. No dia seguinte, uma nota oficial do Exército atacou a proposta: “O julgamento do projeto deve pautar-se pelo mérito das proposições, jamais por necessidades contábeis eventuais.” Até um desgastado Élcio Álvares aproveitou para fazer média com seus subordinados e classificou a emenda de absurda. Assustado com a confusão, FHC decidiu votar atrás: o desconto passou a ser de 9,5%. Os salários, que continuam sendo um grande problema nos quartéis, nem têm sido o maior alvo das queixas. “O Ministério da Defesa já solicitou 300 DAS (cargos de confiança) com bons salários, enquanto o extinto Estado-Maior das Forças Armadas (Emfa) trabalhava com 80”, diz o almirante da reserva Hernani Fortuna, do Centro de Estudos Estratégicos da Escola de Guerra Naval. Segundo Fortuna, atualmente o Brasil tem o quarto poder militar da América Latina. Chile, Argentina e Venezuela dispõem de equipamentos mais modernos. Segundo ele, prova desse tratamento secundário é o fato de a Marinha ter em 1999 apenas 50% dos recursos orçamentários de 1990. “Vinte e cinco por cento do que o governo usou para salvar bancos tiraria as Forças Armadas da situação em que se encontram.”
O diretor do Departamento de Pesquisas e Desenvolvimento da Aeronáutica, brigadeiro José Marconi, alerta para a perda de recursos humanos formados com dinheiro público na área da Defesa. As Forças Armadas perderam pelo menos 100 especialistas de alto nível nos últimos cinco anos. “Nossa infra-estrutura tecnológica está sendo afetada e o desmonte de laboratórios de pesquisas causa prejuízos ao País”, diz Marconi.

Mais importante do que comprar equipamentos, neste momento, deveria seestabelecer um planejamento estratégico, com critérios que norteiem as Forças Armadas num mundo em que a indústria bélica depende muito mais de cérebro do que de músculos para carregar munição. E nisso estamos muito mal parados, alerta outro especialista em estratégia militar, o cientista político René Dreifuss, da Universidade Federal Fluminense e do Instituto Virtual Internacional de Estudo das Mudanças Globais, com sede na UFRJ. Segundo ele, as Forças Armadas têm consciência de que a nova geração de armas está totalmente fora do alcance do Brasil. “Nossas Forças Armadas estão tão defasadas como nossas universidades e, sem o suporte da pesquisa de ponta e sem uma sociedade capaz, não há estratégia militar capaz”, diz Dreifuss.

No assunto estratégia, a maior preocupação das Forças Armadas é com a falta de diretrizes em relação à Amazônia. “Estamos ainda tateando nesse assunto, sem saber como ocupar e como proteger a Amazônia. Qualquer país que tivesse uma área como a Amazônia já teria criado há muito tempo as bases de desenvolvimento tecnológico. Os segredinhos das plantas e dos insetos da região deveriam ser o maior trunfo do Brasil no processo de inovação do planeta”, diz Dreifuss. “Isso preocupa os militares porque, se você tem uma riqueza que não aproveita, outros vão querer aproveitar.”

O coronel Geraldo Cavagnari, outro especialista do Núcleo de Estudos Estratégicos da Unicamp, não tem dúvidas de que “a defesa do País está sendo abandonada” e a Amazônia está “precariamente defendida e insuficientemente vigiada”. Segundo ele, não basta instalar o Sistema de Vigilância da Amazônia (Sivam). É preciso concluir o projeto Calha Norte e realizar muitos outros investimentos para garantir a defesa da área, exposta a guerrilheiros e traficantes. O pesquisador lamenta que “o presidente não tenha uma dimensão estratégica para adotar uma política adequada de segurança e defesa nacional”.
Mais do que a cobiça internacional, o que mais preocupa os militares que comandaram quartéis da Amazônia, como o general Carlos Eduardo Jansen, é o abandono das populações. Jansen, que comandou recentemente a Brigada de Tefé, diz que “na Amazônia é que será decidido o destino do Brasil como nação no próximo milênio” e, por isso, necessita urgentemente de ações sociais.


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