Em algum momento de maio próximo estará pronto o primeiro esboço do que os cientistas chamam com alguma reverência “o grande livro da vida”. Nele estará quase toda a sequência dos 140 mil genes que formam o genoma humano. Será assim finalmente aberto para pesquisas um dos maiores segredos da natureza: o código bioquímico que determina a própria existência de todos nós – em termos mais simples, o manual de instruções do ser humano. Também conhecido como “mapa da vida”, por meio dele os cientistas prometem encontrar a cura para toda e qualquer doença que nos aflige. Isso também quer dizer que nossos filhos com certeza viverão muito mais e com mais saúde do que nós. Tal façanha, porém, não será resultado apenas do esforço curioso de pesquisadores de vários lugares do mundo – inclusive do Brasil –, mas principalmente de uma recém-iniciada “corrida” comercial envolvendo vários bilhões de dólares. Ricos laboratórios multinacionais disputam agora a primazia sobre esse genoma. Tanto que as autoridades de saúde dos EUA temem o registro de patentes (o controle comercial) de trechos desse código, que serão matéria-prima de remédios. Se, às vésperas do próximo século, a revelação desse segredo abre uma perspectiva ainda inimaginável de promessas para a medicina – e, provavelmente, o início do fim do envelhecimento, como se verá adiante –, pode trazer também graves ameaças à individualidade de todos nós.

Quando o Projeto Genoma foi lançado há dez anos pelo governo americano, muitos o compararam a dois outros megaempreendimentos que ficaram na história: o da construção da bomba atômica, nos anos 40, e o que levou o homem à Lua, nos anos 60. Pensava-se que só o governo teria recursos suficientes para bancar tal empreitada. Mesmo sendo de tamanha importância para a saúde pública, não havia, como no passado, o espectro de um “Hitler” ou um “Krushev” ameaçando chegar primeiro no “segredo da vida”. Sem esse tipo de pressão, o projeto foi tocado na velocidade que os cientistas achavam conveniente e na medida em que o dinheiro era liberado pelo governo. Portanto, não se esperava um esboço, quanto mais um resultado final, antes de 2005. Não era esperado também que, de repente, surgisse uma competição ainda mais amea-çadora do que “nazistas” e “comunistas”: a força do lucro milionário. Ficou evidente que, assim que começaram a aparecer resultados mais que promissores, os poderosos laboratórios farmacêuticos passaram a olhar o genoma com apetite. E, é claro, quem saísse na frente, garantindo o controle legal sobre essas preciosas informações, iria lucrar mais que os concorrentes.

Não é por acaso que a principal e mais dinâmica companhia criada para esse fim, há pouco mais de um ano, chama-se Celera. Ela foi fundada pelo geneticista-empresário americano Craig Venter, que já foi apelidado, vejam só, de “Bill Gates da biotecnologia”. Assim que anunciou o nascimento da Celera em 1998, Venter prometeu a seus acionistas que teria a sequência completa do DNA humano antes de 2001. Há poucos meses, ele próprio fixou essa data para maio do ano que vem. Foi o suficiente para o governo repensar seu próprio cronograma, acelerá-lo e igualmente prometer um resultado, um “rascunho de trabalho”, para o ano que vem. O esforço do governo, que envolve laboratórios próprios e de algumas universidades, irá custar a bagatela de US$ 3 bilhões. Os gastos do setor privado – Celera e concorrentes – estão cercados do costumeiro sigilo comercial. Nessa briga, é inevitável o pipocar de críticas de parte a parte. O setor privado acusa o governo de “falta de visão” e muita burocracia. O lado estatal diz que a pressa dos empresários pode produzir dados incompletos e imprecisos.

Alfabeto – Segundo os historiadores da ciência, assim como o século XX foi o período áureo da física, o século XXI será o da biotecnologia. Mais precisamente da bio-logia molecular. Graças, em grande parte, ao recente e fabuloso desenvolvimento da computação. Sem a capacidade fantástica de processamento de dados que se tem hoje seria impossível lidar com a quantidade brutal de informações contidas nos seres vivos. Só o genoma humano, que não é dos maiores, possui mais de três bilhões de “letras” do pequeno alfabeto genético – A, T, C e G, equivalentes às moléculas de Adenina, Timina, Citosina e Guanina, que formam nosso DNA. Se já é uma odisséia conhecer a posição de cada uma dessas letras no genoma, será mais difícil e complexo conhecer a função (ou disfunção, no caso das doenças) que têm cada um dos milhões de conjuntos delas no organismo. Assim como as letras do alfabeto formam palavras, que compõem sentenças com idéias e informações, as da genética formam instruções que orientam o trabalho das células. São instruídas a produzir desde uma enzima que nos ajuda a digerir alimentos até tecidos, veias, sangue, energia; enfim fazer com que seres vivos sejam o que são. Mas, em vez de escritas em páginas, essas letras estão presas a longas cadeias de açúcar e fosfato, chamadas moléculas de DNA.

Ambiente – “Nos cinco milhões de anos, desde que nós, hominídeos, nos separamos de nossos primos macacos, nosso DNA evoluiu menos de 2%”, lembra Sérgio Pena, médico geneticista e pesquisador na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). “Mas nos próximos anos, talvez meses, poderemos usar a engenharia genética para alterar parte desse DNA de forma a curar doenças como a fibrose cística ou a distrofia muscular.” No entanto, o próprio cientista mineiro adverte quem se deixou levar pelo recente sensacionalismo em torno do que ficou conhecido como gene do QI: “Não poderemos mudar o que nos faz indivíduos, como a inteligência, aparência, gênero e sexualidade.” Ele se referia a uma notícia do mês passado, que ganhou as manchetes como o “gene da inteligência”. O que se descobriu na verdade foi um gene, em ratos, que influencia a memória e, por consequência, a capacidade de discernimento para decisões. “Pelo que já sabemos, a influência do ambiente é fundamental em todos os seres vivos, sem exceção”, diz Pena. Para entender um pouco melhor isso, o biólogo da Universidade de São Paulo (USP) Fernando Reinach lembra o exemplo da vaca leiteira. “O ambiente da pecuária criado pelo homem nos últimos dois mil anos alterou tanto o fenótipo (aperfeiçoamento genético através de cruzamentos mais influência do ambiente) dessa vaca que, se a soltarmos em um local selvagem, ela não sabe como se proteger. Mais: basta deixar de ordenhá-la manualmente por alguns dias que suas tetas explodem de tanto leite acumulado.”

Essa dobradinha, influência genética e ambiente, também pode ser a causa de problemas psicológicos. Um trabalho publicado no último dia 30 pela revista Nature, descreve essa possibilidade. Resultado de uma parceria entre pesquisadores franceses e brasileiros, conta que testes feitos com animais estão ajudando a identificar os genes que, interagindo com o ambiente, provocam fortes reações emocionais. Segundo um dos autores do trabalho, o professor André Ramos, da Universidade Federal de Santa Catarina, foram localizados no cromossomo número 4 dos ratos os genes que seriam responsáveis pela ansiedade. “O mais curioso é que esse cromossomo afeta somente as fêmeas da espécie.” A expectativa dele e de seus colegas franceses é de que suas investigações dêem pistas mais precisas sobre os mecanismos biológicos e sexuais envolvidos nas desordens emocionais.

Assine nossa newsletter:

Inscreva-se nas nossas newsletters e receba as principais notícias do dia em seu e-mail

A partir do conhecimento de todo “livro humano”, o que a engenharia genética pode fazer é localizar as falhas de instrução biológica que levam às -doenças. Daí, a necessidade de “ma-pear” os genes associados a vários tipos de moléstias. No Centro de Estudos do Genoma Humano da USP, por exemplo, já foram sequenciados os genes da distrofia muscular e da cegueira progressiva. “Nosso trabalho pode ser comparado ao dos satélites fotográficos que conseguem visualizar uma determinada casa, dentro de um bairro, de uma grande cidade como São Paulo”, explica a coordenadora do Centro, Mayana Zatz. “Só depois de localizada a casa poderemos tentar descobrir por que há um vazamento de água em seus canos.” Segundo a cien-tista brasileira, a maior parte das doenças graves é consequência de mutações genéticas. “Uma falha genética pode produzir uma determinada proteína desnecessária, que altera o trabalho normal da célula. O resultado pode ser uma verruga – crescimento anormal da pele – até a destruição de tecidos, por exemplo”, explica Zatz. O maior benefício do saber como isso funciona é o diagnóstico precoce.

Essa também é a opinião do inglês Andrew Simpson, que se diz um “cientista brasileiro” e é o coordenador-geral do Projeto Genoma Câncer, uma parceria da Fapesp (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo) com o Instituto Ludwig, uma organização multinacional que patrocina a busca da cura da doença que matou seu patrono, o milionário Da-niel Ludwig (aquele mesmo, do controverso Projeto Jari). “O câncer só é uma doença curável enquanto se tem um tumor isolado, porque uma simples cirurgia o retira e acabou a história”, diz Simpson. O mesmo raciocínio pode ser aplicado a outros tipos de doença, como a dislexia, que provoca dificuldade para ler e escrever. Um time internacional de pesquisadores conseguiu descobrir a causa genética para esse mal, segundo trabalho divulgado há duas semanas. “Esperamos com isso diagnosticar crianças disléxicas muito mais cedo”, afirma o artigo. Outra estratégia para combater doenças fatais é sequenciar o genoma das próprias bactérias e vírus que causam esses males. Há dois meses, o laboratório britânico Wellcome anunciou ter concluído o mapeamento da bactéria responsável por uma das mais perigosas formas de meningite. A partir de então, passaram a estudar como essa bactéria se reproduz, informação fundamental para uma futura vacina.

Privacidade – Mas e se um exame desses mostra que você tem grande chance de desenvolver determinada doença fatal? O que se faz com tal informação? Essas indagações estão motivando um debate acirrado entre os próprios especialistas. Temem-se dois tipos de consequência nesses casos. Individualmente, há a preocupação com os efeitos psicológicos no paciente que fica sabendo, por exemplo, que poderá vir a ter um tipo fatal de câncer. A outra é a quebra do necessário sigilo dessa informação. “Tudo depende do tamanho do estrago causado pela revelação”, argumenta Hank Greely, professor de Direito especializado em genética da Universidade Stanford, nos EUA. “A implicação dos testes genéticos é familiar”, disse ele numa discussão aberta na Internet. “Será que sua mulher vai lhe pedir o divórcio se souber que você tem a doença de Huntington (desordem neuropsiquiátrica degenerativa, que afeta o corpo e a mente)? Como contar a seus filhos que você pode ter passado a moléstia para eles?”, questiona Greely.

“Eva das plantas” – A biotecnologia, porém, não produz avanços só na medicina. O trabalho de comparar cadeias genéticas tem feito uma verdadeira revolução na própria “árvore da vida”. Isto é, alterou as relações de parentesco entre vários seres vivos. Uma das novidades mais chocantes foi a revelação de que certos fungos, como o cogumelo, são mais aparentados com animais como os humanos do que com plantas como a alface. Por muito tempo os especialistas em evolução definiram os vários ramos da árvore da vida comparando principalmente o aspecto de cada criatura. O que torna compreensível a antiga posição dos fungos no ramo vegetal. Mas, agora, com a comparação chegando ao nível molecular da genética, esses mesmos cientistas tiveram de redesenhar a árvore, realocando o lugar de muitas espécies. Passou-se a ter cinco renovados reinos de seres vivos: algas vermelhas, plantas verdes, animais, fungos e o grupo que leva o complicado nome de estramenópilos. Descoberto recentemente, seus membros apenas se parecem com plantas, mas não fazem a fotossíntese.

Dos cinco reinos, o mais estudado tem sido o das plantas verdes. Com descobertas muito curiosas. Uma delas foi a constatação de que esses vegetais colonizaram primeiramente a terra, a partir de lagos de água doce, e não dos oceanos, como se pensava. À medida que essa revisão avança, espera-se para breve a identificação do primeiro vegetal terrestre, já apelidado de “Eva das plantas”. Uma outra revelação chegou a escandalizar pessoas que têm o paladar bastante apurado. Usando o mesmo teste de paternidade que identifica o pai de um bebê pelo DNA, descobriu-se que a uva com a qual se faz uma das melhores variedades de vinhos do mundo, o chardonnay, tem um parentesco muito próximo da grapa, um tipo de uva tão ordinário que foi banida há muito tempo do solo francês.

“Embora a gente goste de pensar que somos especiais no reino animal, o fato é que nossos genes nos mostram que somos 75% idênticos à abóbora”, comenta com certa ironia o professor Reinach. É o DNA que nos liga a todo o mundo vivo. E, se ele é responsável pela extraordinária diversidade da vida no planeta, também serve para apontar nossas profundas semelhanças. “Todos nós evoluímos da mesma sopa química do início dos tempos”, diz o biólogo da USP. Essa identificação é que propiciou o surgimento de um novo campo de pesquisas: a genômica comparativa. No mês passado, os cientistas dessa área aplaudiram emocionados a notícia de que, finalmente, foi concluído o sequenciamento do genoma da Drosophila, a mosca da fruta. E é fácil entender essa alegria. Essa moscazinha é a melhor das cobaias de laboratório. São organismos ideais para pesquisa. Crescem rápido, não são tão pequenas quanto microorganismos e vivem apenas duas semanas. Mais importante: a maior parte de seus genes é igualzinha à dos humanos. Bom, mas imagine quem foi que conseguiu terminar o mapeamento de 1,8 bilhão de letras do “livro” da Drosophila? Ele mesmo, Craig Venter, da Celera. Em apenas cinco meses – trabalho que, no passado recente, consumiria provavelmente dez anos. Mas isso é só o começo, como frisou o próprio Venter. “O que conseguimos foi identificar todas as peças do quebra-cabeça. Agora temos de montá-lo.”

Regeneração – Uma outra constatação inesperada de todo esse recente trabalho com a genética foi o grau de versatilidade das células vivas. Como pequenas “fábricas” controladas por um “software” simples e poderoso (o código genético), elas têm uma capacidade aparentemente ilimitada de trabalhar – para o “bem” ou para o “mal”. Prova disso é o novíssimo e ambicioso campo de pesquisa da regeneração celular. Há três semanas, o Hospital Geral de Massachusetts, na cidade americana de Boston, anunciou uma vitória espantosa: conseguiram transformar células de uma medula óssea em músculo. O objetivo da pesquisa pioneira era fazer com que um rato com distrofia muscular regenerasse seus músculos de tal forma a poder usá-los normalmente. Para tanto, bastou simplesmente introduzir nas células desses órgãos genes com a instrução correta de funcionamento biológico. É por essas e outras que os homens e as mulheres que estão trabalhando nesse admirável mundo novo da biotecnologia não escondem um entusiasmo contagiante diante do futuro próximo. “A vida e a morte não são mais mistérios, são apenas processos químicos”, lembra o “brasileiro” Simpson. “Portanto, não se pode mais descartar totalmente a possibilidade de que um dia começaremos a superar até mesmo a mortalidade.”


Siga a IstoÉ no Google News e receba alertas sobre as principais notícias