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A história da arte registra a atuação de falsários que poderiam ser qualificados de pintores muito talentosos. Mas nenhum deles se compara em astúcia e ousadia ao alemão Wolfgang Beltracchi, 62 anos, que cumpre pena de prisão em Colônia. Ele carrega o título de maior trambiqueiro das telas, não porque reproduzia à perfeição o estilo de mestres da pintura – isso todo bom falsário faz. Beltracchi superava seus pares porque enganava não somente os colecionadores desinformados, mas também celebridades, especialistas, museus, galerias de renome e casas de leilões do porte da Christie’s e da Sotheby’s. Numa só cartada, provocou um rombo no mercado
de US$ 45 milhões. Sua trajetória de ex-hippie, bon vivant e vigarista é contada no livro “L’Affaire Beltracchi” (Editions Jacqueline Chambon), dos jornalistas Stefan Koldehoff e Tobias Timm. A obra está provocando barulho na França por jogar tinta fresca na reputação de galerias respeitáveis e no nome de estudiosos como Werner Spies, ex-diretor do Centre Georges Pompidou.

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A astúcia de Beltracchi, cujo pai era restaurador e o iniciou nos segredos de pigmentos e cores, é que ele não falsificava pintores célebres como Pablo Picasso ou Vincent van Gogh. Preferiu se passar por Georges Braque, Fernand Léger, Max Ernst e Heinrich Campendonk, expressionista considerado “degenerado” pelos nazistas que ele ajudou a resgatar. Ao especializar-se no modernismo do início do século passado, o falsário tinha acesso mais fácil a tintas, telas e molduras fabricadas nessa época e podia, também, estudar a fundo as técnicas utilizadas. Outra esperteza: Beltracchi não copiava obras existentes. Ele tinha o cuidado de pesquisar o catálogo “raisonné” do artista-alvo, com toda a sua produção, e só executar obras desaparecidas, que nem os especialistas vivos conheciam – e isso segundo os temas preferidos do pintor. A chance de ser desmascarado, então, caía pela metade. Tudo perfeito. Tela pronta, entra a ousadia. Para vender suas obras-primas, o alemão ia atrás de autenticação dos mais respeitados experts. É quando entra em cena a sua comparsa, Helene Beltracchi, de quem pegou o sobrenome – o de nascença é Fischer.

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Valendo-se da linhagem dos avós maternos de Helene e de um amigo DJ que se apresentava como conde, o casal criou duas coleções fictícias – Jägers e Knops – de onde vinham as obras. Mais ousadia: Helene e Beltracchi diziam que elas haviam pertencido a um grande galerista judeu, Alfred Flechtheim, que teve de fugir da Alemanha em 1933 e cujo acervo era tido como desaparecido em razão do confisco nazista. Dessa forma, quando trabalhos como “Floresta 2”, de Max Ernst, e “Barco em Collioure”, de André Derain, chegaram ao mercado, foi uma festa. A obra de Ernst, por exemplo, foi tida como autêntica por Werner Spies e atingiu a cifra de US$ 7 milhões, um assombro. Seu comprador foi o magnata da imprensa francesa Daniel Filipacchi, do grupo Hachette. Outro nome famoso que comprou gato por lebre foi o ator Steve Martin: pagou US$ 900 mil pela tela “Paisagem com Cavalos”, de Campendonk. Tudo ia bem, com vendas astronômicas, aquisições de caríssimas propriedades na Côte D’Azur e no norte da Alemanha (sua mansão na cidade de Freiburg está à venda por US$ 5,2 milhões) e festas mil. Até que algo saiu errado. Uma galeria não deu certificado ao óleo “Quadro Vermelho com Cavalos”, de Campendonk, comprada em 2006 por um consórcio malta. A empresa desconfiou e decidiu submeter a obra a um labo­ratório químico.

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Em meio às tintas usadas havia traços de branco de titânio, de fabricação recente, e não dos anos 1910, suposta data da tela.
Para conseguir uma pena menor, Beltracchi confessou ter criado 14 obras falsas – pegou sete anos de cadeia e a sua mulher, cinco. Os autores do livro afirmam, no entanto, que existem mais de 70 telas sob suspeita. Em entrevista à revista alemã “Der Spiegel”, o falsário disse que se passou por mais de 55 mestres da pintura e que sua intenção, ao fazer isso, era melhorá-los. Começou aos 14 anos, ao copiar uma obra da fase azul de Picasso, tornando-a mais alegre. No caso de “A Floresta 2”, os elogios o envaideceram. Ao ver a tela, a viúva de Max Ernst disse que era a mais bela obra já feita pelo marido. Já o comprador, Filipacchi, queria mantê-la na parede de seu apartamento nova-iorquino, mesmo sabendo-a falsa.

Fotos: Newscom; BALTEL/SIPA; FEDERICO GAMBARINI/EPA