A cena não poderia ser mais desconcertante. "Juro perante Deus, juro perante a pátria, juro diante do meu povo e sobre essa Constituição moribunda que farei cumprir as transformações democráticas necessárias para que a República tenha uma nova Carta Magna, adequada aos novos tempos." Dessa maneira inusitada, o ex-militar golpista Hugo Rafael Chávez Frías, 44 anos, prestou juramento no edifício do Senado da Venezuela, em Caracas, como novo presidente da República. Eram 12h30 da terça-feira 2. A quebra de protocolo ocorreu sob os olhares incrédulos do veterano Rafael Caldera, que deixava o cargo pela segunda vez, de representantes do Legislativo e do Judiciário e de 14 chefes de Estado e de governo convidados para a cerimônia, entre eles o cubano Fidel Castro e o argentino Carlos Menem. O mal-estar foi tamanho que Caldera nem sequer passou a faixa presidencial ao sucessor, preferindo delegar a tarefa ao senador Luis Alfonso Dávila, presidente do Congresso. Mas certamente quem teve mais razões para se incomodar com a sem-cerimônia do novo mandatário foi outro ex-presidente, o atual senador Carlos Andrés Pérez. Sete anos atrás, em 4 de fevereiro de 1992, o então tenente-coronel pára-quedista Hugo Chávez liderou uma fracassada e sangrenta tentativa de tirar Pérez do Palácio Miraflores (sede da Presidência).

No discurso de posse e na entrevista coletiva que se seguiu, Chávez continuou a fustigar duramente o establishment político venezuelano: "A Constituição, e com ela o malfadado sistema político que gerou há 40 anos, tem que morrer. Vai morrer, senhores, aceitem esse fato", disparou com voz firme. "A Venezuela é uma espécie de bomba-relógio e eu sou o desativador. Se o desativador falhar, a bomba explode. Eu não tenho o direito de falhar", trombeteou, messiânico. Talvez embalado pelos discursos inflamados, o novo presidente passou rapidamente das palavras à ação. Já na noite da posse, ele assinou um decreto convocando um plebiscito para decidir a eleição de uma Assembléia Constituinte num prazo de 60 a 90 dias. Originalmente, Chávez pretendia esperar até o dia 15 de fevereiro para tomar essa decisão, mas mudou de idéia para evitar que o assunto entrasse na pauta do Legislativo e a oposição aprovasse um referendo em moldes diferentes daqueles pretendidos pelo novo mandatário. Os partidos que o apóiam, agrupados no Pólo Patriótico, têm 33% das cadeiras no Parlamento, enquanto os tradicionais Ação Democrática (social-democrata) e Copei (democrata-cristão) controlam 47% dos assentos. Chávez quer que a nova Constituição centralize mais os poderes e permita a reeleição do presidente. Paralelamente, ele vai pedir ao Congresso a aprovação da Lei Habilitante, que lhe permitiria governar por decretos, principalmente em matéria econômica.

A economia venezuelana, aliás, está à beira do abismo. Segundo maior produtor de petróleo do mundo, a Venezuela viveu no início dos anos 70 um boom econômico gigantesco, propiciado pela alta dos preços imposta pela Organização dos Países Exportadores de Petróleo (Opep) no mercado internacional. Mas sucessivos governos não só torraram as divisas como aprofundaram o perverso quadro de corrupção institucionalizada e de desigualdade social. A brutal queda dos preços do petróleo nos últimos anos estrangulou um país no qual o "ouro negro" representa nada menos que 80% de suas exportações. Programas de ajuste ditados pelo FMI mergulharam a Venezuela numa verdadeira convulsão social. Só o pagamento do serviço da dívida externa de US$ 35 bilhões consome quase 40% do orçamento nacional. Nos últimos anos, o país empobreceu dramaticamente. Oficialmente, a taxa de desemprego atinge 12% da força de trabalho, mas cerca de 50% dela está no mercado informal. Os índices de mortalidade infantil são os mais altos do continente e mais de dois terços dos venezuelanos vivem abaixo da linha da pobreza.

Foi esse quadro desesperador que tornou possível o aparecimento de um outsider como Chávez que, apoiado por uma coalizão de partidos nacionalistas e de esquerda, fez a campanha bombardeando as elites venezuelanas. A boina vermelha dos pára-quedistas, que celebrizou o tenente-coronel no dia da tentativa de golpe, virou símbolo do desejo de mudanças profundas e inundou o país. Admirador confesso do libertador Simón Bolívar e de Fidel Castro, Chávez foi eleito em 6 de dezembro último com 56% dos votos, mas logo tratou de polir a imagem. Trocou a boina por ternos bem-cortados e agora tenta acalmar os investidores estrangeiros. Em várias entrevistas, o novo presidente disse que não vai decretar moratória da dívida externa, mas pretende renegociá-la. Proclamou como prioridade a integração da Venezuela ao Mercosul, o bloco econômico formado por Brasil, Argentina, Uruguai e Paraguai. Antes de assumir, o presidente eleito fez uma maratona de visitas a vários países, inclusive aos EUA, que no passado tinham se recusado a lhe fornecer visto pela tentativa de golpe. Chávez encontrou-se até com gente do FMI. "Ele é um homem mudado", garantiu um alto funcionário do Departamento de Estado. "É um potencial líder hemisférico", derramou-se Bill Richardson, que chefiou a delegação americana à cerimônia de posse. Agora, a questão é qual dos Chávez – o pára-quedista messiânico ou o político pragmático – vai prevalecer. Só então se saberá se os venezuelanos serão governados por um ditador ou um estadista.