O ministro da Fazenda, Pedro Malan, estava numa posição difícil e seu adversário, Francisco Lopes, tinha fama de ás da sinuca. Ao demitir o presidente do Banco Central (BC) na última semana, deu uma tacada política de mestre. Matou a bola preta e confinou a uma posição defensiva a ala desenvolvimentista do governo, comandada pelo ministro da Saúde, José Serra. Dono da mesa, Malan acabou com o jogo de sinuca e voltou ao velho pôquer monetarista. Dobrou a aposta nas decisões do Fundo Monetário Internacional (FMI), agora em parceria com Armínio Fraga, um de seus antigos pupilos da Pontifícia Universidade Católica (PUC) do Rio. Armínio deixou o posto de executivo do megaespeculador George Soros, em Nova York, na segunda-feira 1º o, para assumir o lugar de Lopes no BC e tentar enquadrar o caótico mercado financeiro do País nas novas regras do jogo. O presidente Fernando Henrique mostrou quem o Planalto considera indispensável na condução da política econômica. Na terça 2, o próprio Malan preparou uma recepção de luxo para a missão de alto nível enviada a Brasília pelo FMI, sob a liderança do vice-diretor-gerente, Stanley Fischer. As metas do acordo firmado em 1998 foram renegociadas e ficou selada a liberação de mais US$ 9 bilhões, até março, do socorro financeiro total de US$ 41,5 bilhões. Dois técnicos do Tesouro americano também estiveram em Brasília para acelerar o aval que permitirá a emissão de títulos brasileiros no Exterior. Mas a decisão final depende da recomendação do FMI. Por tudo isso, o governo brasileiro aceitou a contrapartida exigida pelo Fundo. Os juros continuarão altos durante o primeiro semestre e um novo aperto será dado nas engrenagens do ajuste fiscal. Haverá aumento de impostos, mais cortes no Orçamento e milhares de funcionários públicos serão demitidos para produzir uma economia adicional de algo entre R$ 4 bilhões e R$ 8 bilhões até o final do ano, além dos R$ 24 bilhões já acertados. O pior efeito: a recessão e a escalada do desemprego serão inevitáveis.

Além do funcionalismo, o cidadão comum também sofrerá na pele os efeitos da ortodoxia do FMI. Os cortes de gastos já estão sendo preparados pelo Ministério do Orçamento: vão atingir a área social, as emendas de parlamentares e o que resta de investimentos. Do lado das receitas, devem ser elevadas as alíquotas do Imposto sobre Operações Financeiras (IOF) e do Imposto sobre Exportações, o que dividiria com o Tesouro o lucro que os exportadores brasileiros estão obtendo com a desvalorização do real. Os produtos importados também estão na mira da Receita e poderão ser taxados, ficando ainda mais caros. A intenção é reforçar o caixa e incentivar o equilíbrio da balança comercial. Está descartada a hipótese de privatização da Petrobras, do Banco do Brasil e da Caixa Econômica Federal. Fernando Henrique não gosta da idéia e a proposta não passaria no Congresso. O impacto das medidas fiscais encolherá a economia brasileira – o próprio governo admite que o Produto Interno Bruto (PIB) pode cair até 3,5%. E a inflação, que não deveria ir além dos 10% em 1999, segundo os planos iniciais de Malan, agora já pode alcançar os 20%, conforme projeções feitas pela cúpula do Ministério da Fazenda.

Também foi o polêmico monitoramento do FMI que ajudou a implodir Chico Lopes, o mais efêmero dos presidentes na história do BC (não chegou a tomar posse e ficou apenas 20 dias no cargo, como interino). Ele já começara a cair no seu dia de estréia com o fracasso da "banda de juros diagonal com movimento endógeno". Mas foi em Washington, no primeiro final de semana após sua indicação, que selou seu fim. Enquanto o ministro ouvia placidamente a bronca do FMI, o ex-presidente do BC dava as costas para gente influente como Teresa Terminassian, vice-diretora do Departamento para o Hemisfério Ocidental. A azeda economista do FMI queria acabar com o Comitê de Política Monetária (Copom), obra maior de Chico Lopes no BC. "Ele virou a cara e deixou-a falando sozinha", conta um ex-assessor. O diretor-gerente do FMI, Michel Camdessus, também falou duro e tentou obrigar a missão brasileira a realizar uma reunião telefônica para aumentar as taxas de juros já na noite do domingo 17. Nova peitada. A elevação só ocorreu depois que Lopes voltou a Brasília, obedecendo ao ritual do Copom.

Armadilha Irritado, logo que retornou a Brasília, Malan tentou adiar a sabatina de Lopes no Senado e trouxe Armínio Fraga para encontros com FHC e com o presidente do Congresso, Antônio Carlos Magalhães (PFL-BA). Com a corrida aos bancos da sexta-feira 29, conseguiu o argumento que faltava para derrubar o adversário. Às 9 horas da manhã, Lopes já tinha preparado o plano de intervenção no mercado de câmbio para segurar o dólar. Mas Malan mandou esperar a orientação do FMI e tirou o BC do mercado. Resultado: o dólar bateu em R$ 2,15 e Lopes consolidou a pecha de acadêmico inoperante. Fernando Henrique desabafou com assessores: "O mercado perdeu o medo do BC." Na tarde de sábado 30, Malan foi ao Alvorada exigir a demissão de Chico Lopes. FHC telefonou para Armínio Fraga em Nova York e disse que precisava dele imediatamente. O economista aceitou. O telefone da casa de Lopes, no Rio, tocou só na noite do dia seguinte. Era Malan sugerindo que ambos entregassem seus cargos para que o presidente ficasse "à vontade" e definisse o novo rumo da política econômica. Tudo jogo de cena. Lopes chegou a Brasília na segunda-feira 1º e, à tarde, teve um encontro com FHC: saiu de lá convicto de que Malan estava caindo. O ex-presidente do BC só percebeu que ele é que estava sendo demitido à noite, em novo encontro com o presidente, Malan e o ministro-chefe da Casa Civil, Clóvis Carvalho. "O que você acha de Armínio Fraga para a presidência do BC?", perguntou friamente FHC. "Acho ótimo, presidente", respondeu um atônito Chico. Ao final do encontro, Malan convidou Lopes para um café da manhã no dia seguinte. "Obrigado, mas vou escolher melhor meus amigos", devolveu. Malan acabou tomando café com o "amigo" ACM.

O ritual maquiavélico horrorizou o BC. "Antes eram todos companheiros e agora não param de brigar", lamentou Demósthenes Madureira de Pinho Neto, diretor de Assuntos Internacionais, que está de saída. O próprio Lopes preferiu reagir com ironia: fez questão de ser fotografado comendo um "churrasco" e alugando o filme Advogado do diabo. A crueldade do episódio, porém, tornou transparente o até então menosprezado apetite de Malan pelo poder. Mas toda essa habilidade pode ser inútil se a política econômica resultar no mesmo fiasco experimentado por outros países que seguiram à risca a bula do FMI. A chamada ala desenvolvimentista não desistiu de derrubá-lo, assim que a tempestade amainar. "Malan não fica no governo até o final do ano", aposta um tucano próximo a FHC. A vinculação com ACM e a sustentação oferecida pela crise e o FMI sugerem a Malan muita cautela a partir de agora.

Colaboraram: Isabela Abdala (DF), László Varga e Maria Fernanda Delmas (SP)

  

A CARTILHA
As mudanças no acordo que vai nortear a economia brasileira

Superávit primário Em outubro passado, previa-se que o saldo entre receitas e despesas para 1999, sem considerar os gastos com juros, seria equivalente a 2,6% do PIB, ou seja, deveriam sobrar nos cofres cerca de R$ 23 bilhões. A nova meta será entre 3% e 3,5%, o que exige uma economia maior: entre R$ 27 bilhões e R$ 31 bilhões.

Inflação Antes da desvalorização foi estipulado que a alta dos preços não deveria ultrapassar 2% em 1999. Agora negocia-se uma meta abaixo dos 10%. Para tanto, será necessário estabilizar o dólar entre R$ 1,50 e R$ 1,60. Mas admite-se uma inflação de 20% para o ano.

Recessão O governo não tem interesse em colocar no papel um número real de estimativa de queda do PIB (que soma cerca de US$ 900 bilhões). Por enquanto, admite que cairá mais de 1%. Para o Ipea, braço técnico do Planejamento, a redução pode chegar a 4% só no primeiro semestre.

O GARROTE
Juros
Vão permanecer nas alturas para ajudar a estabilizar o dólar numa cotação menor e segurar a inflação. O mercado financeiro projeta taxa de 53,83% ao ano para abril.

O EFEITO CRUEL
Desemprego A forte recessão vai gerar demissões. A CUT usou a metodologia do Dieese para prever que a taxa de desemprego na Grande São Paulo poderá chegar a 25%, ou seja, cerca de dois milhões de trabalhadores.

"O preço é uma recessão cavalar"

 

LIANA MELO

Professor da PUC do Rio, reduto acadêmico do Real, o economista José Márcio Camargo está convencido de que a melhor opção para o Brasil é a recessão. "Dos males, o menor", justifica. Seu realismo chamou a atenção de FHC, que teria pensado até em convidá-lo para fazer parte de seu conselho de "notáveis". O convite ainda não chegou, mas caso ocorra será aceito. "É uma obrigação cívica."

ISTOÉ – O que levou o governo a mudar sua política cambial?
José Márcio Camargo – Quem pensou que a taxa de juros ia cair depois da liberação do câmbio não entende nada de economia. Na verdade, o governo foi pressionado por um forte lobby, capitaneado pela Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp), para liberalizar o câmbio. O discurso era: desvaloriza que os juros caem. Em todos os países que desvalorizaram o câmbio os juros subiram. Na Coréia, a taxa de juros passou, nos primeiros seis meses, de 10% para 33% no período pós-desvalorização. No México, chegou a 75%. Não tem saída, vamos ter que subir a taxa de juros para evitar uma subida ainda maior da taxa de câmbio. Os juros têm que ficar altos mesmo depois que a taxa de câmbio comece a dar sinal de queda. Se não fizer isso, a taxa de câmbio estabiliza num nível alto e a inflação volta.

ISTOÉ – Mas qual o preço que vamos pagar para manter uma taxa de juros alta e evitar a inflação?
Camargo – O preço é uma recessão cavalar. Como, aliás, aconteceu em todos os países que tentaram desvalorizar o câmbio. Na Coréia, o PIB caiu 9%, na Tailândia e México, 8% e, na Malásia, 7%. Todos os países tiveram aumento de desemprego e queda de PIB. Mas alguns países conseguiram conter a inflação, outros não. Na Coréia e na Tailândia, por exemplo, a inflação chegou, no ponto mais alto, a 10% ao ano. No México, a inflação chegou a 52%.

ISTOÉ – Quer dizer, estamos num mato sem cachorro. Ou optamos pela recessão ou pela inflação?
Camargo – Exatamente isso e as duas saídas são dolorosas. No curto prazo, dói menos a inflação. Mas, no longo prazo, isto significa gerar uma estagnação da economia. Se quiser voltar a crescer dentro de um ano e meio a dois anos, o melhor caminho é o da recessão. Eu prefiro que o BC adote uma política monetária mais dura e consiga segurar a inflação.

ISTOÉ – A crise social, que já não é pequena, tende então a agravar-se?
Camargo – É. Algumas alternativas já estão sendo discutidas. A redução do IPI, por exemplo, que está sendo negociada com a indústria automobilística de São Paulo será feita apenas para garantir o emprego dos metalúrgicos. Ora, os metalúrgicos não são exatamente os pobres deste País. E quem está pagando a conta da redução do IPI é o pobre que não vai ter acesso a uma série de programas sociais. São os pobres que estão pagando para garantir o emprego dos metalúrgicos que são a classe média operária deste país.

ISTOÉ – Quer dizer, mais uma vez a corda vai estourar do lado do mais fraco?
Camargo – A política social no Brasil é usada para resolver os problemas da classe média e não da pobreza. No Brasil a sociedade é dividida entre os ricos e os não-ricos. E o Estado transfere o dinheiro para os não-ricos como uma forma de supostamente diminuir a pobreza. Não há orçamento que suporte este volume de transferência. Deveríamos dividir a sociedade entre os pobres e os não-pobres. É até fácil entender o porquê: a classe média berra e os pobres são desorganizados.

ISTOÉ – A que o sr. atribui o comportamento dos brasileiros diante dos boatos de confisco?
Camargo – O governo Fernando Henrique levou quatro anos dizendo que não ia mudar a política cambial. O presidente se elegeu, inclusive, dizendo que seria necessário segurar o câmbio para conter os preços. Quando se contraria este discurso de uma forma tão clara como ocorreu no início de janeiro, é natural que as pessoas se sintam traídas. Aparentemente, o presidente conseguiu reverter a tempo aquela situação. A afirmação "não sou homem de fazer confisco" parece ter sido bastante bem-recebida.

 

 O arrocho em números

O impacto do receituário do FMI na vida do brasileiro em 1999:

MCM – O Brasil terá inflação de 13,6%. Isso se o dólar ficar no patamar de R$ 1,70. A estimativa é da maior consultoria do País, comandada por Cláudio Adilson Gonçales, Celso Martone, Bolívar Lamounier e José Júlio Senna (foto).

Tendências – O ex-presidente do BC Gustavo Loyola avalia que a corrosão dos salários pela inflação pode evitar demissões, mas ainda assim o desemprego chega a 12% pelo método do IBGE. O PIB cai cerca de 5%.

DIEESE – Com quase nada de crescimento em 1998, a região metropolitana de São Paulo aumentou sua taxa de desemprego de 16% para 18,3%. A recessão de 1999 fará com que a população ativa sem trabalho ultrapasse os 20%, estima o diretor do Dieese, Sérgio Mendonça.

FIPE – Os economistas da USP revisaram suas expectativas de inflação: em vez de 7%, estimam 12%, com o dólar a R$ 1,65.

IPEA – O coordenador do grupo de conjuntura do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), Paulo Levy, calcula que o PIB encolhe 4% no primeiro semestre. "Os juros têm de ser elevados para conter a inflação, do contrário não adiantaria mexer no câmbio." A luz no fim do túnel viria no meio do ano, quando se formar a base para o crescimento. Os exportadores ganham de imediato.

 

Uma guerra federal

O presidente Fernando Henrique declarou guerra aos governadores de oposição que se reuniram na sexta-feira 5, em Porto Alegre, e exigiram a renegociação das dívidas dos Estados com a União. Em reação à "carta de Porto Alegre", FHC cancelou o encontro que teria na próxima terça-feira com uma comissão formada por três dos sete oposicionistas. "Cabe indagar se existe real interesse por uma conversa franca e produtiva ou apenas o propósito de transformar o encontro programado num palco político", criticou FHC em nota distribuída logo após a reunião de Porto Alegre. FHC se irritou com o fato de os governadores terem divulgado que o encontro no palácio só faria sentido se servisse para discutir as dívidas dos Estados. Na quarta-feira 3, o governador do Ceará, Tasso Jereissati, como emissário de FHC, impôs aos oposicionistas uma condição para a audiência com o presidente: diante do acordo entre o Brasil e o FMI, que eles evitassem usar expressão "renegociação das dívidas". O governo federal acenava apenas com a possibilidade de recompor algumas perdas dos Estados, sem mexer nos contratos já assinados.

 

PT no caminho da terceira via

 

ANGÉLICA WIEDERHECKER

Aproveitando o desgaste da imagem do presidente Fernando Henrique Cardoso após o naufrágio do Real, o PT deu início a uma estratégica ofensiva além-mar. Na sexta-feira 5, o campus da solene Universidade de Oxford, na Inglaterra, deu lugar a um seminário sobre o futuro da esquerda no Brasil. Organizado pelo Centro de Estudos Brasileiros da universidade, o evento deu espaço para que o presidente de honra do PT, Luiz Inácio Lula da Silva, o ex-governador do Distrito Federal Cristovam Buarque, o ex-prefeito de Porto Alegre Tarso Genro e o senador Eduardo Suplicy (SP) expusessem a um seleto grupo de intelectuais britânicos os atrativos da proposta petista para o País. "O PT tem de ocupar um espaço importante: o de verdadeiro representante da social-democracia no Brasil", afirma um dos formuladores do programa, o economista Guido Mantega. Não é nova a idéia de vender o partido no Exterior como a verdadeira terceira via tupiniquim, na tentativa de contornar a rejeição à candidatura petista lá fora. Pouco mais de um mês depois de amargar sua terceira derrota na disputa pela Presidência, Lula revelou um ambicioso plano de liderar as esquerdas da América Latina e disse que sua agenda em 1999 deveria incluir encontros com líderes da social-democracia européia como o francês Lionel Jospin, o inglês Tony Blair e o alemão Gerhard Schröder. Já nessa época, o partido identificara no Exterior, especialmente na Europa, o movimento das esquerdas no sentido de acertar seu papel no terceiro milênio. A idéia, claro, é tentar juntar forças para costurar uma alternativa viável ao hegemônico pensamento neo-liberal. Discutir uma proposta globalizada das esquerdas faz parte do esforço do PT em se transformar numa alternativa mais abrangente e palatável. Embora ainda guarde traços do radicalismo de outros tempos, o discurso da cúpula do partido chega a ser taxado hoje de excessivamente moderado por setores da militância. "O PT deve estar voltado para os anseios de igualdade e de democracia, mas também deve visar à eficiência econômica", considerou Suplicy.