O economista Luiz Gonzaga Belluzzo defende que o governo faça acordos, não só com os Estados, mas também com os credores externos

No início dos 90, o economista Luiz Gonzaga Belluzzo foi um dos primeiros a acompanhar a volta dos capitais às economias em desenvolvimento – bem antes de Wall Street taxar esses países de economias emergentes. No mês em que o Brasil submergiu como México, Tailândia e Rússia, a mania de olhar diariamente a entrada e saída de dólares tomou conta do País como termômetro da viabilidade do Plano Real. "Era um erro fatal acreditar que os fluxos iriam se manter", diz Belluzzo. Professor titular da Universidade de Campinas (Unicamp) e consultor econômico, Belluzzo participou da equipe que produziu o primeiro dos planos de estabilização, o Cruzado, em 1986, ao lado dos economistas André Lara Resende e Pérsio Arida e do engenheiro Luiz Carlos Mendonça de Barros, a trinca de ouro do tucanato. Debatia, desde os tempos do Cebrap, com o então sociólogo Fernando Henrique Cardoso os rumos que o País deveria seguir. "Não tenho nenhuma razão pessoal para não estimar o presidente. Mas ele me decepcionou", diz. Aos 56 anos, Belluzzo só enxerga uma saída neste momento para o Brasil: renegociar as dívidas interna e externa – os dois venenos fabricados pelo Real. No meio do furacão, Belluzzo abreviou suas férias no interior paulista e concedeu a seguinte entrevista:

ISTOÉ – Depois da desvalorização do real, o que se pode esperar de 1999?
Luiz Gonzaga Belluzzo

Com exceção dos círculos mais inclinados à fantasia, será um ano difícil. A longa insistência em manter um regime cambial insustentável, que acumulou uma gigantesca dívida externa e interna, coloca obstáculos para que a desvalorização seja virtuosa. Para alguns analistas, havia a impressão de que a desvalorização iria suscitar no curto prazo uma queda na taxa de juros – hoje se vê que isso não é tão simples. Mais do que isso, esse desequilíbrio vai nos trazer problemas na política econômica.
 

ISTOÉ – Como o Brasil escapa dessa armadilha?
Luiz Gonzaga Belluzzo

Felizmente, a gente não tem só espinhos nessa floresta. Estamos caminhando para o ajuste na balança comercial. Certamente, vamos ter um ganho tanto pela redução das importações como pelo avanço das exportações. Mas não estou certo de que a reação das exportações possa ser tão brilhante, porque o mercado internacional está menos favorável não só pela desaceleração da economia mundial, em especial a americana, como também pela desvalorização das moedas dos países asiáticos – nossos concorrentes em terceiros mercados. Mesmo assim, teremos um ganho.
 

ISTOÉ – Qual é o tamanho?
Luiz Gonzaga Belluzzo

Temos de ser realistas. Se a gente reduzir o déficit externo de US$ 33 bilhões para US$ 28 bilhões, podemos nos dar por satisfeitos. Mas acho que não devemos esperar isso.
 

ISTOÉ – O presidente Fernando Henrique Cardoso errou a aposta?
Luiz Gonzaga Belluzzo

A minha inconformidade é com o fato de eles terem feito a estabilização em circunstâncias muito favoráveis, deixando o real se valorizar e permitindo decisões quase irreversíveis tomadas pelo setor privado como a busca de novos fornecedores no Exterior que eliminaram indústrias instaladas no mercado interno. A venda da Metal Leve (ao grupo alemão Mahle) foi um reflexo dessas mudanças.

ISTOÉ – Qual o legado deixado pelo Gustavo Franco?
Luiz Gonzaga Belluzzo

Tenho uma profunda aversão a um dos esportes nacionais: o chute a cadáver. Eu discordei muito dele ao apostar na sua própria idéia quando já mostrava sinais de fadiga, mas não se pode jogar a responsabilidade sobre ele. A passagem da URV para o real foi bem feita. Não se pode querer atribuir tudo isso ao presidente, a responsabilidade precisa ser dividida. Mas a obsessão com a âncora cambial tornou-se um ativo do governo e um ativo político, com o qual se obteve duas eleições. Tenho a experiência do Plano Cruzado, quando a popularidade do presidente Sarney subiu a 90%. Para resistir a isso, o sujeito precisa ser um super-homem.

ISTOÉ – Qual era a lógica do plano?
Luiz Gonzaga Belluzzo

A lógica do Gustavo Franco era criar um círculo virtuoso – igual ao modelo alemão – em que a abertura possibilitou a modernização da economia. Na recuperação da sua economia no pós-guerra, a Alemanha, contudo, trabalhou com taxa de câmbio subvalorizada. O Japão fez o mesmo. Com todos esses processos queriam aproximar-se rapidamente dos padrões de produtividade de países avançados. O que estava na cabeça do Gustavo Franco era a idéia – que não é nova, pois era de Eugênio Gudin defendida nos anos 40 e 50 – de que nós tínhamos de jogar o jogo das vantagens comparativas. Estávamos caminhando para uma taxa fixa. Mas, para isso, é preciso ter liderança tecnológica, uma moeda forte conversível, entre outros fatores. A história do século 20 mostra que essas experiências sempre acabam como acabou a brasileira.
 

ISTOÉ – Por que o governo não reconheceu o erro?
Luiz Gonzaga Belluzzo

Eu me lembro que em uma certa ocasião, o ex-secretário José Roberto Mendonça de Barros, com toda aquela humildade que o caracteriza, disse que foi feita uma aposta – com a qual eu tenho quase toda a certeza de que ele não concordava – que não tinha chance de dar certo. Mas muito disciplinadamente, ele a defendia publicamente.

ISTOÉ – Perdendo a aposta, qual é o custo para desmontagem dessa política?
Luiz Gonzaga Belluzzo

Na medida em que se avançou com a política cambial, os custos acumulados foram grandes. Não foi só um problema de prepotência ou arrogância numa aposta irrealista. Não se volta para trás da mesma maneira que se avança. Ao longo do tempo, foram tomadas decisões de acumulação dos estoques das dívidas. Muita gente se beneficiou com a queda da inflação, mas depois começaram a se constituir os grupos que temiam a desvalorização. Por exemplo, uma parte da classe média, que fez financiamento em dólares para comprar um carro, ou as empresas, que foram induzidas a se endividar. Quando ficou claro que a medida era insustentável, elas passaram a fazer hedge (fazer investimentos, no caso, cotados em dólar para se proteger). Além disso, houve uma tentativa de abafar ou desqualificar as críticas.

ISTOÉ – Em uma entrevista, o presidente Fernando Henrique o criticou.
Luiz Gonzaga Belluzzo

Tenho uma visão muito pouco épica dessas controvérsias. Havia uma pressão muito grande para você se sentir intimidado, como uma espécie de ser estranho. Mas a obrigação não é dizer o que o mercado quer ouvir nem o que o governo quer ouvir.

ISTOÉ – Isso o afetou?
Luiz Gonzaga Belluzzo

Tinha relações bem próximas com Fernando Henrique. Participei com ele, Pedro Malan, Maria da Conceição Tavares, Paul Singer, Edmar Bacha e Celso Furtado dos seminários do Cebrap nos anos 70. Não tenho nenhuma razão pessoal para não estimar o presidente. Hoje em dia, eu discordo dele e ele me decepcionou.
 

ISTOÉ – O Plano Real foi concebido diante um cenário externo favorável de liquidez. O sr. foi um dos primeiros a mencionar essa vantagem no início da década.
Luiz Gonzaga Belluzzo

Alguém da equipe econômica tinha dito que a oferta de capitais externos era bastante elástica se a gente saísse de um superávit comercial de US$ 10 bilhões para um déficit de US$ 10 bilhões. Era um erro fatal. No final dos anos 80 e início dos anos 90, havia ocorrido o ataque especulativo contra a libra e a lira, a crise dos bônus americanos e a crise mexicana. Uma economia que estava convalescendo da inflação e estabilizando sua moeda não podia ficar numa dependência tão grande de financiamento externo. De lá para cá, a vulnerabilidade da economia aumentou. Isso era apresentado como uma atitude impatriótica, como "você não confia no Brasil". Não era isso. A questão era avaliar em que grau a economia era vulnerável a uma perda de confiança dos investidores. Nesses mercados, a perda de confiança é muito mais importante do que as pessoas imaginam.
 

ISTOÉ – O governo consegue os dólares necessários para fechar suas contas?
Luiz Gonzaga Belluzzo

Essa é a questão central. Acho que depende muito da rapidez com que se consiga reverter o déficit comercial. É o primeiro sinal positivo. Isso reduz outras contas como a dos gastos de turismo. Mas os fretes, as remessas e os juros pesam mais. Da privatização e investimentos diretos, devem vir outros US$ 15 bilhões.
 

ISTOÉ – Dá para mudar o modelo econômico?
Luiz Gonzaga Belluzzo

Existe a impressão de que podemos montar e desmontar um modelo ao nosso bel-prazer. Não é assim. Vamos ter um período de transição em que haverá certas resistências. Não é porque liberalizou o câmbio que está tudo bem. Para o crescimento da economia brasileira, vamos ter de pensar como financiar. Ninguém vai apresentar um plano. Vai ser construído ao longo do tempo a partir do embate dos governadores que querem uma reforma fiscal verdadeira em vez do ajuste fiscal.
 

ISTOÉ – Mas não estamos caminhando em outra direção? Ou estamos numa encruzilhada?
Luiz Gonzaga Belluzzo

Tivemos várias encruzilhadas nos últimos tempos. A decisão sempre foi pelo lado menos conveniente. A crise da dívida externa em 1982 poderia ter preservado melhor a economia. Visto hoje, aquele ajustamento foi produtivo porque a situação do emprego e a recessão não foram tão desastrosas quanto no período recente. Sempre tomamos a decisão mais fácil e menos dolorosa a curto prazo e a mais inadequada a longo prazo. Fernando Henrique fez mais do que Juscelino Kubitschek: jogou fora 60 anos de industrialização em quatro. Vamos passar um momento de transição. Não vejo a chance de ver alguém iluminado dizer: "Agora vamos por aqui."
 

ISTOÉ – Nesta fase de transição, vamos entrar no rumo de uma década perdida como tivemos nos anos 80?
Luiz Gonzaga Belluzzo

A década de 90 foi mais perdida do que os anos 80, levando em conta as taxas de crescimento e desemprego. Não faria um tipo de comparação.

ISTOÉ – Há condições para um consenso político?
Luiz Gonzaga Belluzzo

 Isso depende de um gesto do governo. Mas quando vi Fernando Henrique com Michel Temer e Antônio Carlos Magalhães naquela exibição para inglês ver – ou melhor para o FMI ver – concluí que as possibilidades estão cortadas. Parece que o governo vai insistir, como diz a Conceição Tavares, na quadratura do círculo. Depois da desvalorização, subiu os juros.
 

ISTOÉ – Os países que fizeram a desvalorização estão saindo do buraco. Estamos virando uma Coréia?
Luiz Gonzaga Belluzzo

A Coréia não tinha dívida interna. Tinha um déficit externo elevado que era do setor privado. O governo assumiu a dívida, renegociou e limpou o setor privado. A desvalorização foi substancial e sem efeitos na inflação enquanto a taxa de juros caiu mais depressa. Com isso, a economia se recuperou.

ISTOÉ – Temos de refinanciar nossas dívidas, incluindo a dos Estados?
Luiz Gonzaga Belluzzo

É irrealista supor que os Estados possam sobreviver a essa crise financeira. Vai ter que fazer alguma reestruturação. Seria desejável se fazer também a reestruturação da dívida externa.
 

ISTOÉ – Nossos credores estariam dispostos a isso?
Luiz Gonzaga Belluzzo

 É melhor isso, como diria Jeffrey Sachs, do que prejudicar a si mesmo.
 

ISTOÉ – Mas houve aceitação da comunidade internacional?
Luiz Gonzaga Belluzzo

Na Coréia, o FMI deu a bênção.

ISTOÉ – Uma nova moratória?
Luiz Gonzaga Belluzzo

Uma reestruturação. Alongar e diminuir a pressão do serviço da dívida sobre o real.
 

ISTOÉ – Podemos descartar o FMI?
Luiz Gonzaga Belluzzo

 O raio de manobra da política econômica é nenhum. O FMI está no comando. O governo segue à risca o que o FMI manda. Não há mais autonomia na política econômica. O Jeffrey Sachs escreveu um artigo mostrando a inadequação dos mecanismos do Fundo para a economia brasileira. O FMI funciona como uma espécie de guarda pretoriana dos mercados financeiros. Serve para dar tempo para os caras irem embora e deixarem os países em situações lamentáveis.
 

ISTOÉ – Os bancos americanos não parecem dispostos a pagar esse preço?
Luiz Gonzaga Belluzzo

Nos anos 80, também foi assim. Numa das suas funções, o FMI apareceu para estabilizar o sistema financeiro e impedir uma contaminação nos demais mercados. Todo mundo reconhece que há desequilíbrio entre o ônus dos devedores e o que ganham os credores, que agiram, às vezes, de forma imprudente apostando no risco moral. Afinal de contas, seriam salvos e o País devedor ficaria fazendo sucessivos ajustes fiscais. Não parece que o Fundo esteja preocupado com o destino dos velhinhos brasileiros.