CORAGEM Jogador assume publicamente ser portador
de distúrbio mental

Nos Estados Unidos, muita gente conhece o ex-jogador de futebol americano Herschel Walker. O jovem talentoso começou a jogar na universidade da Geórgia, arrematou dezenas de troféus e atuou na liga nacional (NFL), embora os peritos no esporte digam que sua trajetória deixou a desejar perto do que prometia. Na semana passada, o astro, que já se aposentou dos campos, voltou à cena por causa de uma confissão que chocou os fãs. Ele acaba de lançar o livro Breaking free (Libertando-se, em tradução livre), no qual conta os detalhes da sua convivência com uma condição mental chamada de transtorno dissociativo de identidade (DID, em inglês). Entre os leigos, conhecida como “múltiplas personalidades”. Seu público jamais suspeitou que o sujeito desafiador que aparecia na quadra era, na verdade, uma das facetas de uma personalidade fragmentada. Esse personagem, um atleta bem-sucedido, é definido no livro como um assassino competitivo, e apontado também como o responsável por tê-lo impelido a jogar roleta russa, com iminente risco de vida.

Walker usou algumas das características dessa personalidade – como a gana por vencer – para galgar postos na carreira, mas não sabia o que lhe causava tanta instabilidade emocional. No livro, ele revela que ignorava os motivos pelos quais se sentia profundamente triste, raivoso ou violento. E confessa que a vida fugiu totalmente ao controle quando encerrou a carreira e separou-se da mulher, Cindy, em 2001, depois de um casamento de 18 anos. Um dos episódios decisivos para isso, relatados por ela, foi a noite em que despertou com a mão do marido transfigurado ao redor do seu pescoço. Ele também a ameaçou com uma faca. Walker não se lembra desses acontecimentos. Também não sabe com certeza quantas personalidades possui, mas o livro descreve pelo menos uma dúzia e relata as funções de várias delas em sua vida – havia o herói, o treinador, o guerreiro, o audacioso, entre outros. Mas foi apenas quando começou a sentir desejo de matar por causa das atribulações do cotidiano que resolveu procurar ajuda. A intenção do livro, segundo o jogador, é esclarecer os mitos que cercam o problema e emprestam a ele um tom romanceado.

De fato, o distúrbio ainda é pouco conhecido. Mas entre os especialistas há algumas certezas a seu respeito. “Não é que existam diferentes pessoas dentro do mesmo corpo. O que ocorre é a falta de coesão entre os vários aspectos da mesma personalidade, que se manifestam isoladamente e conduzem o comportamento”, explica o psiquiatra Edgar Diefenthaeler, da PUC do Rio Grande do Sul. Nas pessoas consideradas normais, esses aspectos estão conectados. Nas que têm o distúrbio, há mudanças súbitas, indo da doçura à hostilidade em segundos.

Estudos sugerem que cerca de 1% das pessoas convivem com essa patologia em algum grau, mas faltam provas mais consistentes. Em parte, porque o entendimento e o diagnóstico do transtorno são muito complexos. Suas causas estão na infância e associadas à necessidade de a criança defender-se de um trauma, em geral abusos físicos e psicológicos. Ou seja, uma forma grave de stress pós-traumático. Nessa fase, a personalidade está em desenvolvimento e começa a se separar em fragmentos, para dar conta dos diferentes aspectos da vida. Walker, por exemplo, acredita que seus problemas começaram na escola, onde era ridicularizado pelos colegas por ser gordo e muito gago. O tratamento é feito em sessões de terapia e procura integrar as memórias dos portadores do transtorno e cultivar o sentimento de identidade.