Voltada às causas homossexuais, aadvogada Sylvia Mendonça do Amaralestá otimista em relação ao Brasil e dizque este será um ano de conquistas

Nas areias de Ipanema, entre os postos 8 e 9, está fincada a bandeira do arco-íris – símbolo internacional da militância gay. O fato de os homossexuais ocuparem de forma representativa o cenário que inspirou Vinícius de Moraes e Tom Jobim a compor os versos que celebram o Brasil da alegria e da beleza vai além de emblemas. As conquistas relacionadas à cidadania do público GLBT (gays, lésbicas, bissexuais e transgêneros) têm caminhado a passos largos. Só este ano, a Justiça do Rio Grande do Sul aprovou o projeto de união civil entre homossexuais; no Paraná, um brasileiro e um britânico formalizaram em cartório a união estável do casal e no Distrito Federal, em decisão inédita, a Justiça concedeu a guarda de um menor, filho de uma mulher que cumpre pena, a um homossexual.

Para a advogada paulista Sylvia Mendonça do Amaral, 40 anos, autora do Manual prático dos direitos de homossexuais e transexuais (Ed. Edições Inteligentes, 111 págs., R$ 30), o Brasil não está longe de se igualar a países como a Holanda e a Dinamarca, onde os homossexuais têm praticamente todos os direitos civis assegurados. “Aqui não existem leis federais específicas para os homossexuais, mas há decisões mais favoráveis nos tribunais. É bem a coisa do jeitinho brasileiro, de meio-termo, trabalhando com brechas na lei”, afirma. Divorciada, mãe de um menino de 11 anos, Sylvia é uma das mais requisitadas consultoras jurídicas de ONGs ligadas à luta contra o preconceito. Nesta entrevista a ISTOÉ, ela fala sobre casamento gay, partilha de bens entre homossexuais, Marta Suplicy, transexualismo e outros assuntos que vão além da bandeira da praia de Ipanema.

Fotos: Max G Pinto

"Alguns juízes são ultraconservadores e jamais reconheceriam uma união estável entre pessoas do mesmo sexo"

Fotos: Max G Pinto

"É mais fácil um solteiro gay adotar uma criança do que um casal. Há muitos questionamentos em torno disso"

ISTOÉ – A sra. afirma em seu livro que o direito dos homossexuais está ligado ao direito da família. Por quê?
Sylvia Mendonça do Amaral

Os direitos dos homossexuais eram vistos como pertencentes às varas cíveis, como uma sociedade comercial. Não havia como tratar o relacionamento homossexual como um casamento ou união estável, pois isso ainda não está previsto na lei. Mas, mesmo assim, havia um patrimônio construído por duas pessoas do mesmo sexo, que por motivos diversos – separação ou morte de um dos parceiros – teria de ser dividido entre as partes. Então os juízes tratavam como sociedade de fato. De uns cinco anos para cá, os juízes perceberam que não dava para julgar aqueles elos como sociedade comercial, pois eles envolvem afeto e amor como qualquer relação heterossexual. Então esses casos de partilha de bens entre homossexuais passaram a ser julgados pela vara de família.

ISTOÉ – E como tem sido a transição das varas cíveis para as de família?
Sylvia Mendonça do Amaral

Hoje é quase unânime que os casos envolvendo partilha de bens entre casais homossexuais sejam julgados pelas varas de família. O que ainda está longe de ser unânime é que essas relações sejam consideradas estáveis. A maioria dos juízes ainda trata como sociedades comerciais. E os homossexuais são prejudicados com essa distinção, pois sócios não herdam o patrimônio um do outro, por exemplo. Na união estável, a partilha de bens adquirida durante a relação é dividida igualmente entre as partes. Já na sociedade é dividida de acordo com o porcentual de contribuição de cada sócio.

ISTOÉ – Os casais homossexuais têm dificuldades para provar que vivem uma união estável?
Sylvia Mendonça do Amaral

Em direito de família, a prova testemunhal, apesar de frágil, é importante. Dificilmente um casal homossexual terá contas com o nome dos dois ou comprovantes de que vivem sob o mesmo teto. Só testemunhas. Mas o difícil
mesmo não é provar a união estável, o empecilho maior é o juiz aceitar o fato,
pois a Constituição e o Código Civil consideram a união estável como uma forma
de entidade familiar composta por um homem e uma mulher. Alguns juízes
são ultraconservadores e jamais reconheceriam uma união entre pessoas do mesmo sexo. Então eles se fundamentam no texto da lei: “Olha, não há relação estável, pois temos aqui duas pessoas do mesmo sexo.” E é difícil julgar um
caso e contrariar a lei.

ISTOÉ – Existe algum tribunal brasileiro mais maleável nesse sentido?
Sylvia Mendonça do Amaral

O mais avançado é o do Rio Grande do Sul. Não só em relação aos direitos homossexuais, mas de família mesmo. Os tribunais de lá têm uma tradição de acompanhar rapidamente as mudanças comportamentais em geral. Prova disso é que é o primeiro a aprovar a lei da união civil entre pessoas do mesmo sexo. Lá há uma desembargadora, a Maria Berenice Dias, que conhece bem o assunto sobre os direitos homossexuais no mundo, e ela influencia nas decisões do Estado. Em seguida vem São Paulo.

ISTOÉ – E os juízes mais conservadores? São de que tribunais?
Sylvia Mendonça do Amaral

Os do Nordeste. Lá não tem jeito, é muito difícil. Os juízes sempre tratam as uniões homossexuais como sociedades comerciais.

ISTOÉ – O primeiro artigo da Constituição afirma que todos são iguais perante a lei, condenando todo o tipo de discriminação. A sra. acha que mesmo assim há necessidade de se criar leis específicas para os homossexuais? Isso não seria uma forma de discriminação?
Sylvia Mendonça do Amaral

Com certeza é uma forma de alimentar o preconceito. Essa idéia de criar cotas para os negros na universidade, por exemplo, é uma forma de aceitar que a discriminação existe. Falta mais tranquilidade em relação a isso. Afinal, está tudo na Constituição. Lá diz que todos têm direito à liberdade, dignidade e individualidade. Em São Paulo, há uma lei, a 10.948, que estabelece multas para quem discriminar o homossexual. Mas essa lei é desnecessária, pois já está tudo na Constituição, que é a lei máxima do País. O caminho é o tribunal, como acontece com os heterossexuais. Se alguém vive uma relação que não está funcionando e decide se separar, procura o tribunal para regularizar a situação. Isso deveria acontecer com os homossexuais também. As leis estão sempre atrasadas em relação às mudanças comportamentais.

ISTOÉ – A sra. acha que a criação de leis específicas para o homossexual garantiria que ele fosse reconhecido perante a lei como cidadão?
Sylvia Mendonça do Amaral

Essas leis servem mais para conscientizar a sociedade do que para beneficiar o homossexual. Mas, na minha opinião, não teria necessidade de estar escrito na Constituição que os homossexuais têm direito de criar um núcleo familiar, sendo que está na própria lei que todos são iguais e têm os mesmos direitos.

ISTOÉ – A sra. afirma em seu livro que o Brasil ocupa uma posição intermediária em relação aos direitos homossexuais se comparado a países mais liberais, como Holanda e Dinamarca, ou a mais conservadores, como os países muçulmanos. O que a sra. entende como intermediário?
Sylvia Mendonça do Amaral

Quando falo em posição intermediária é o seguinte: a gente não tem leis reconhecendo como união estável essa parceria entre pessoas do mesmo sexo. A Argentina tem parceria civil. A Holanda é mais avançada e tem praticamente assegurado todos os direitos dos homossexuais. No extremo oposto estão os países muçulmanos, onde as relações homossexuais são proibidas. No Brasil não há leis específicas, mas temos decisões mais favoráveis. É bem a coisa do jeitinho brasileiro, de meio-termo, que trabalha com brechas na lei.

ISTOÉ – E os políticos em relação a essas questões? Os homossexuais estão representados no Congresso?
Sylvia Mendonça do Amaral

Acho que o projeto da Marta Suplicy ainda não foi aprovado por uma pressão contrária dos políticos. É só pensar no que dá voto. Ao aprovar um projeto como o da união civil entre homossexuais, agrada-se a uma parcela da população, mas contraria uma parte conservadora, que é muito maior. Leis polêmicas só servem para afastar a opinião pública. Então a lei fica engavetada mais um ano. Por isso que as mudanças virão dos tribunais. Se não acontecer uma pressão intensa do Judiciário, a lei fica muito mais tempo parada.

ISTOÉ – Em seu mandato como deputada, Marta Suplicy teve uma atuação intensa na luta pelos direitos dos homossexuais. A sra. acredita que ela abandonou a causa quando chegou à prefeitura paulistana?
Sylvia Mendonça do Amaral

Como deputada, o comprometimento é menor do que o de uma prefeita. Agora, para a Marta levantar a bandeira gay tão intensamente como quando era deputada é complicado politicamente. Gera polêmica, expõe a figura política. Tanto é que não se ouviu falar no projeto nem em campanha eleitoral. Ela participa da parada do orgulho gay todos os anos, mas fica aquela coisa de querer agradar a todo mundo. De que adianta aparecer em um evento social que celebra a diversidade sexual e depois não fazer nada na prática?

ISTOÉ – Em relação ao projeto de união civil entre pessoas do mesmo sexo, o que acaba atrapalhando na aprovação da lei é o fato de os mais conservadores confundirem a proposta com casamento religioso?
Sylvia Mendonça do Amaral

A Igreja diz que a união de pessoas do mesmo sexo não está nos planos de Deus. Para a Igreja é algo vergonhoso. A Igreja tem muita influência na sociedade. Por exemplo, em fevereiro deste ano, a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) enviou uma carta ao presidente Lula para que o Brasil não apresentasse uma proposta relacionada aos direitos dos homossexuais na ONU por considerar o projeto uma vergonha para o País.

ISTOÉ – E a questão da adoção? Os casais homossexuais têm conseguido vitórias nesse aspecto?
Sylvia Mendonça do Amaral

Essa é a parte mais polêmica e obscura para o homossexual. O Estatuto da Criança e do Adolescente permite que a adoção seja feita por maiores de 21 anos e ponto. Não determina que a pessoa seja casada e não restringe o perfil de quem pretende adotar. O estatuto não fala que os homossexuais não podem, mas também não diz que eles podem adotar uma criança. No entanto, os casais homossexuais têm muita dificuldade. É mais fácil um solteiro gay adotar do que um casal. Há muitos questionamentos, como o que representaria para a criança ter pais do mesmo sexo. Será que ela seria mesmo prejudicada? É uma visão absurda. Será que é melhor a criança ser criada por um casal homossexual ou passar a infância abandonada em uma instituição? A mim parece evidente a resposta.

ISTOÉ – O novo Código Civil trouxe melhorias em relação aos direitos dos gays?
Sylvia Mendonça do Amaral

Não, mesmo porque ele tramitou por 25 anos antes de ser aprovado. Então ficaria difícil que ele trouxesse alguma novidade nesse sentido.

ISTOÉ – E os transexuais? Como estão sendo resolvidas questões como a mudança de nome após operação de mudança de sexo? Existe alguma lei que mencione esse grupo?
Sylvia Mendonça do Amaral

Não existe nada. Existem dois ou três pontos-chave que atingem os transexuais. A cirurgia de mudança de sexo, por exemplo, hoje em dia é mais tranqüila. O paciente passa por uma bateria de exames físicos e psicológicos. Quando a cirurgia é autorizada, vem a questão da mudança de nome e de registro civil. Mudar o nome é mais fácil. A parte mais polêmica é mudar o sexo biológico no registro civil. Isso causa constrangimento. Existem mil correntes que defendem formas de como isso deve ser feito. Há quem defenda que o registro deve mudar no documento, mas no livro dos cartórios deve constar que aquele cidadão passou pela cirurgia. O que se teme é que a pessoa seja operada, conheça alguém e minta para o parceiro seu verdadeiro sexo.

ISTOÉ – Nesse caso o Estado seria responsabilizado?
Sylvia Mendonça do Amaral

Aí fica a questão de até onde o Estado deve interferir na vida das pessoas. A corrente mais liberal diz que todo mundo percebe, quando chega num certo ponto do casamento, com a intimidade, que o parceiro é um transexual operado. Tem outra corrente que diz que se o transexual muda seu sexo no registro civil ele pode usufruir de direitos que são exclusivos da mulher, como a licença-maternidade, por exemplo.

ISTOÉ – O Rio Grande do Sul aprovou a lei da união civil e em Curitiba aconteceu o primeiro registro de união estável entre dois homens. Qual o caminho que o Brasil deve seguir depois de mudanças tão significativas?
Sylvia Mendonça do Amaral

Sou otimista. Está acontecendo uma movimentação superintensa para que cada vez mais leis sejam aprovadas. O ano de 2003 foi marcante, foi pró-homossexuais. Por várias vezes, a sociedade foi confrontada com as situações mais diversas. Este ano mesmo, foi aprovada a lei no Rio Grande do Sul; em São Paulo um shopping foi obrigado a indenizar um casal homossexual que foi discriminado por estar se beijando; e um homossexual obteve a guarda de uma criança cuja mãe cumpre pena no Distrito Federal. E isso só nos três primeiros meses.