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Uma Thurman: vingança sob banho de sangue falso, humor e canções clássicas

Durante a rodagem de Pulp fiction – tempo de violência, o diretor americano Quentin Tarantino pensou em ter a atriz Uma Thurman, estrela do filme, num trabalho futuro interpretando uma assassina sanguinária e vingativa. Por ora era só o que ele sabia. A idéia passou a persegui-lo com tamanha obsessão que ele cunhou até um slogan para a sonhada fita, repetido o tempo todo no set: “Uma Thurman will kill Bill (Uma Thurman vai matar Bill).” No fim de um dia de trabalho, meio alcoolizada numa conversa de bar, Uma resolveu entrar no jogo. A primeira imagem que lhe veio à cabeça mostrava-a jogada ao chão, toda ensanguentada e vestida de noiva. Foi o mote para Tarantino criar a trama de Kill Bill: volume 1 (Kill Bill: vol 1, Estados Unidos, 2003), em cartaz nacional na sexta-feira 23. O seu aguardado quarto trabalho aparece depois de um silêncio de seis anos. Segue os passos de Uma Thurman no papel de A Noiva, ex-integrante do grupo de extermínio Esquadrão Assassino Víboras Mortais, vítima de um espancamento cruel, posto em prática pelos parceiros na cerimônia de seu casamento. A surra termina com um tiro na cabeça, dado pelo ex-amante, Bill (David Carradine, da série Kung Fu), visto apenas das pernas para baixo, de quem só se ouve a voz durante todo o filme.

Para a infelicidade das “víboras” Cobra Venenosa/Vernita Green (Vivica A. Fox), Boca de Algodão/O-Ren Ishi (Lucy Liu), Cobra Californiana/Ellen Driver (Daryll Hannah) e Budd (Michael Madsen), A Noiva (o nome real da personagem nunca é revelado) sobrevive. Livre do coma pela picada de um pernilongo e prestes a ser estuprada por um brutamontes, ela comete a primeira vingança de uma série: mata o necrófilo com uma mordida de pit bull. Na sequência, elimina o enfermeiro, que a vendera por
US$ 75, com repetidos golpes de porta na cabeça. Foge em seguida, na camionete do cafetão hospitalar, um utilitário amarelo coberto de línguas de fogo vermelhas, apelidado Picape das Gostosas (No original, pussy wagon). Sua missão: matar Bill, de quem estava grávida. Por esse intróito já se tem idéia do que reserva a uma hora e meia da mais nova extravagância cinematográfica de Tarantino. Kill Bill: vol 1 – que foi dividido em dois devido à longa duração e cuja segunda parte estréia esta semana nos Estados Unidos – é um autêntico filme B de luxo, feito para ser cult ao preço de US$ 55 milhões e 450 galões de sangue falso. Inspirado nos filmes chineses de kung fu, nas aventuras japonesas de samurais, nos mangás e nos westerns spaghetti, Tarantino realizou uma história em quadrinhos sanguinolenta – existe até uma real no meio da história –, cheia de referências à produção audiovisual série Z. Para se ter uma idéia, já teve fanático que listou mais de 90 citações na fita, de títulos obscuros de kung fu a séries japonesas de televisão. Passando até por enredos eróticos com enfermeiras de tapa-olho, traje usado em cena pela estonteante Daryll Hannah, que entra em cena como a heroína de Marnie, confissões de uma ladra, de Hitchcock.

Cultura inútil – Ninguém precisa saber, contudo, que o macacão amarelo usado por Uma Thurman é do mesmo modelo escolhido por Bruce Lee em Jogo da morte, de 1978. Nem que as máscaras do bando yakuza 88 Lutadores Loucos, comandado por O-Ren Ishi, saíram da série de tevê The green hornet, de 1966. Mas o prazer fica maior de posse desta cultura inútil. Apesar do fiapo de história, contada em capítulos e naquele vai-e-vem habitual das obras do diretor, Kill Bill: Vol 1 tem humor e sofisticação visual suficiente para não afugentar ninguém da sala do cinema. Nem mesmo diante do festival de mutilações, cortes profundos, esguichos e ducharadas de líquido vermelho, sempre terminado com boas risadas da platéia. Que sirva de exemplo a cena do garotinho metido a mafioso, antecedida de um banho de sangue memorável. Depois de ver sua lâmina de samurai decepada quatro vezes por A Noiva, ele leva dela algumas “espadadas” no traseiro com a advertência: que isso sirva de exemplo por se meter com yakuzas.

Avesso aos efeitos digitais, Tarantino seguiu o que chama de “estilo chinês”, investindo na montagem. Chega a grandes momentos, como na luta de silhuetas diante de um fundo azul. Perfeccionista, filmou na China, no Beijing Film Studios, e em Hong Kong, nos estúdios dos cultuados Shaw Brothers, clássicos do gênero kung fu, homenageados na abertura. Usou até um procedimento comum nos anos 1970, o da foto em preto-e-branco nas cenas mais violentas, um artifício para driblar a censura, e a coloração típica do sangue dos filmes de samurai.

Seriados – Nesta primeira parte, que abusa das fórmulas narrativas dos seriados,
A Noiva elimina Vernita Green sobre os destroços de sua cozinha. Depois parte em direção a O-Ren Ishi, que havia se tornado chefona da máfia japonesa. Para tanto, torna-se exímia em golpes de espada samurai com um mestre em Okinawa, puro clichê reformulado. A sequência em que A Noiva enfrenta ao som da arqueológica Nobody but me, dos Human Beinz, os 88 Lutadores Loucos vestidos de terno preto e máscara – denominada O Confronto Final na Casa das Folhas Azuis – dura 20 minutos e demorou oito semanas para ser filmada. Termina com um duelo belíssimo entre A Noiva e O-Ren Ishi, que desfecham coreografados golpes de espada enquanto a neve cai em flocos do céu azul-escuro da noite. Na trilha sonora, outra especialidade tarantinesca, o início espanholado da música Don’t let me be misunderstood, do grupo Santa Esmeralda. Difícil não se render ao charme debochado de Tarantino.