A forte dor que tomava conta das costas e se estendia pelo braço esquerdo fez com que Margareth Bororó telefonasse para o marido logo depois de sair do banho, na manhã do dia 28 de dezembro. Marcos Bororó saíra há pouco de casa para o trabalho, depois do café da manhã. Pelo celular, Marcos instruiu o filho Leandro, 16 anos, a acompanhar a mãe até o Hospital Cruzeiro do Sul, em Osasco, município da Grande São Paulo, numa carona oferecida por um vizinho. Margareth ainda não sabia, mas nunca mais voltaria para casa. Com apenas 32 anos, tinha sofrido um infarto agudo do miocárdio que acabou por necrosar mais de 50% do músculo cardíaco. Apesar de ser jovem e de não estar acima do peso, Margareth fumava e costumava tomar anticoncepcionais, mistura considerada explosiva pelos médicos, por aumentar as chances de problemas circulatórios. Ela precisava de um coração novo.

Durante os nove dias que se sucederam à internação de Margareth, a família passou por uma agonia que aflige dezenas de milhares de brasileiros: a espera por um doador. "As pessoas deixam de doar por vários motivos, medo, religião… quem não está lá no hospital não imagina como é a espera", diz Marcos Bororó. Margareth foi priorizada na lista de espera por causa de seu estado crítico. Mesmo assim, enfrentou uma espera que se estendeu por quase dez dias. Depois de três corações serem descartados por incompatibilidade, na terça-feira 5, foi encontrado um doador. Ricardo Porfírio Andrade, 36 anos, se acidentara no sábado 3, já sofrera três paradas cardíacas e vinha sendo mantido vivo à base de drogas que danificam os tecidos do coração. O órgão, que no jargão médico não era nota "10", foi transplantado na quarta-feira 6, mas não bateu, levando Margareth à morte.

O episódio, ocorrido no mês em que a nova lei de transplantes faz aniversário, mostra como o Brasil ainda tem muito para avançar nesta área. É bem verdade que até mesmo em países como os Estados Unidos há desequilíbrio entre o número de doadores e o de pacientes na lista de espera. O avanço da medicina tornou o transplante mais acessível. Por outro lado, aumentou as chances de sobrevivência dos doadores em potencial. Os números mostram que o brasileiro ainda resiste muito à doação de órgãos. A cada ano, aparecem apenas três doadores para cada milhão de pessoas. No Rio Grande do Sul, o número é superior à média nacional, com oito doadores para cada milhão de pessoas. Nos Estados Unidos, são 20 para cada milhão. Na Espanha, campeã em doações, são 29 doadores para cada milhão de pessoas. Foi justamente no modelo espanhol, inclusive, que o governo brasileiro se inspirou para propor o sistema de doação presumida, que, aliás, teve vida curta.

A regra estabelecia que órgãos e tecidos não seriam retirados depois de constatada morte cerebral somente no caso de a vítima ter registrado em algum documento que não era doador. A lei entrou em vigor em 1º de janeiro de 1998 e a polêmica em torno do assunto acabou derrubando a doação presumida por meio de uma medida provisória editada pelo governo em outubro passado. A mudança coloca a decisão final nas mãos da família. "Não houve debate suficiente. A população foi surpreendida pela medida e todo mundo ficou assustado", afirma o coordenador da Central Estadual de Transplantes de São Paulo, Agenor Spallini Ferraz. Muita gente dizia que não era doadora simplesmente por medo de ser morta para que seus órgãos fossem retirados. Um dos sinais claros de que a doação presumida amedrontou foi o número expressivo de carteiras de identidade emitidas com a mensagem de não doador. Em São Paulo, 62% dos documentos emitidos em 1998 impediam a doação depois da morte.

Outro dado importante mostra que, em média, só 30% das notificações de morte cerebral resultam em doadores efetivos, segundo informa Spallini. "A desinformação ainda é grande e vai exigir um trabalho pesado de esclarecimento para que as pessoas se conscientizem do benefício que a doação traz aos que esperam por um órgão", reconhece o novo coordenador Nacional de Transplantes do Ministério da Saúde, Rafael Barbosa, ao notar, no entanto, que o debate em torno da doação de órgãos foi fundamental para trazer o tema para o cotidiano das pessoas. Embora o número de doadores ainda deixe a desejar, os transplantes em São Paulo aumentaram em 1998. "A situação não é ideal, mas nós avançamos muito com a criação da lista única, que democratiza a distribuição de órgãos", afirma Neide Barriguelli, da Associação Paulista de Renais Crônicos. Além de acabar com a distinção entre ricos e pobres na espera por um órgão, a lei colocou o problema em debate nacional. Este talvez tenha sido seu maior mérito.