O presidente Fernando Henrique Cardoso sabia que acabaria tendo um acerto de contas com o governador de Minas Gerais, Itamar Franco, em seu segundo mandato no Palácio do Planalto. Montou até uma estratégia para adiar esse confronto. Escalou os ministros dos Transportes, Eliseu Padilha, e da Justiça, Renan Calheiros, para fazer o meio de campo com Itamar e evitar que os arroubos do ex-presidente entornassem o caldo. Não deu certo. No mesmo dia em que tomou posse como governador, Itamar estava irritado com dois fatos. Teve que comprar com dinheiro do próprio bolso lençóis e fronhas para poder se mudar para a residência oficial no Palácio das Mangabeiras. Mais grave: confirmou que os cofres do governo mineiro estavam vazios, sem dinheiro suficiente para pagar os salários dos funcionários e despesas como a comida dos presidiários. Na quarta-feira 6, cinco dias depois de ameaçar suspender o pagamento da dívida de Minas com o governo federal, Itamar fez uma declaração de guerra. Numa nota de 14 linhas, redigida de próprio punho, formalizou uma moratória de 90 dias que pegou a equipe econômica no contrapé. "Por falta absoluta de dinheiro, deixaremos de cumprir o acordo financeiro feito com o governo anterior." Além de ter feito despencar os índices das Bolsas de Valores no Brasil e as cotações dos títulos da dívida externa brasileira, a decisão de Itamar pode provocar uma crise federativa e agravar ainda mais a delicadíssima situação econômica que está acuando Fernando Henrique contra a parede.

Ao voltar a exibir o velho topete rebelde, o ex-presidente acabou puxando um bloco de governadores que encontraram seus Estados na mesma situação de penúria e assumiu, na prática, o comando das oposições ao Planalto. O Planalto sentiu a pressão e foi à luta. Pediu aos governadores do Ceará, Tasso Jereissati (PSDB), e do Maranhão, Roseana Sarney (PFL), que liderassem um movimento contra a ofensiva mineira. "Isso é coisa de caloteiro. Trata-se de uma atitude irresponsável e inconsequente de quem não tem noção e coragem para enfrentar seus problemas", disparou Tasso. Ao mesmo tempo que arregimentava aliados, o governo tentava dividir as oposições. Depois de receber um aceno do ministro da Fazenda, Pedro Malan, o governador do Rio de Janeiro, Anthony Garotinho (PDT), disse preferir o diálogo ao confronto nas relações com o governo federal. "O Garotinho é mais flexível do que o Olívio Dutra. Estamos agindo porque não podemos deixar que a rebeldia de Itamar vire um rastilho de pólvora na federação", explicou um dos principais articuladores políticos do governo.

Apagando o fogo Enquanto tenta esvaziar a onda que a moratória de Minas pode criar entre os governadores, o Planalto está pressionando o PMDB a cortar as asas de Itamar. Afinadíssimos com o governo, os ministros Eliseu Padilha e Renan Calheiros cancelaram um almoço que teriam com o governador mineiro na última sexta-feira, mas continuam agindo nos bastidores para baixar o facho do ex-presidente. "Nós tínhamos acertado que o Itamar poderia bater à vontade na política econômica, mas seus parlamentares no Congresso seguiriam o partido e votariam com o governo", conta um dirigente do PMDB, que também entrou no circuito para tentar apagar o fogo.

Duas alternativas estão sendo examinadas pelos bombeiros em Minas Gerais e em Brasília para ajudar a superar o impasse. A primeira, um encontro entre FHC e Itamar, ficou difícil depois que o governador decretou a moratória, porque a partir daí, em qualquer acerto, um deles acabaria saindo com a autoridade arranhada. Quando Itamar reuniu seu secretariado no sábado 2 e avisou que o Estado não tinha condições de pagar suas dívidas de curto prazo, esperava que Fernando Henrique tomasse a iniciativa de chamá-lo para uma conversa. Como o presidente não fez nenhuma sinalização e orientou seus auxiliares a descartarem a renegociação do contrato com o governo mineiro, Itamar resolveu radicalizar e formalizar a moratória. Na quinta-feira 7, FHC conversou com Henrique Hargreaves, chefe da Casa Civil de Itamar, por telefone. Ambos tentavam articular um encontro. Só que o governador mineiro não abre mão de que FHC tome a iniciativa. "Quem buscou e proporcionou o confronto é que deve ceder", palpitou o mineiro Pimenta da Veiga, ministro das Comunicações, que tem todo interesse no desgaste de Itamar.

"Pimenta nos outros" Ainda assim, o presidente do PMDB, senador Jader Barbalho (PA), entrou no circuito na última sexta-feira para tentar promover uma conversa a dois entre FHC e Itamar. "Houve um ruído de comunicação entre o segundo escalão dos dois governos. O diálogo é possível, necessário e existe uma base técnica para o entendimento", aposta Jader. Pouco antes de fazer essa proposta pacificadora numa entrevista à imprensa, Jader acertou a estratégia do partido durante almoço com os ministros peemedebistas. Na conversa, a cúpula do PMDB avaliou que a crise estava sendo inflada pelos tucanos. "Pimenta na veiga dos outros é refresco", ironizou um dos ministros, referindo-se ao ministro Pimenta da Veiga.

A segunda fórmula para uma conciliação poderá sair da reunião dos governadores de oposição na segunda-feira 18 em Belo Horizonte. Os bombeiros esperam que Anthony Garotinho apresente uma proposta capaz de abrir o diálogo com o Planalto. Assim, Itamar recuaria em nome de uma posição unitária.

A abertura de uma nova rodada de discussão sobre a dívida dos Estados vai ser difícil de ser engolida pelo Ministério da Fazenda. Nos últimos dez anos, foram três renegociações em que a conta da reestruturação das dívidas dos Estados – acumuladas, em muitos casos, devido à gestão temerária de governantes que deveriam zelar pelas contas públicas – foi, invariavelmente, pendurada na conta da Viúva. A última renegociação, detonada pela crise do Banespa e que teve seus termos acertados em 1997, foi penosa e saiu muito cara para o governo federal, que arca com subsídios para rolar junto aos bancos R$ 82 bilhões de dívidas que pertenciam aos Estados e foram assumidas pela União.

O subsídio decorre da diferença entre a taxa de juros que é cobrada dos Estados, que varia de 6% a 7,5% ao ano, e a que o governo federal paga para rolar as dívidas no mercado financeiro, hoje acima de 29%. De cara, o acerto com os Estados significou um subsídio de R$ 13,1 bilhões que foi bancado pelo Tesouro Nacional, ou seja, os contribuintes. Há projeções que indicam que só com São Paulo, responsável por mais da metade das dívidas assumidas pela União (R$ 46 bilhões), o estrago da renegociação, ao final dos 30 anos dados aos Estados para quitação de seus débitos, poderá chegar a mais de R$ 200 bilhões. No caso de Minas Gerais, segundo maior Estado da federação, o contrato foi igualmente danoso para o Tesouro. Desde fevereiro passado, o governo federal já pagou R$ 5,6 bilhões para rolar as dívidas de Minas. "Foi um péssimo negócio para a União", avalia o secretário do Tesouro Nacional, Eduardo Guimarães. O que ele não diz é que essa rolagem beneficiou os bancos privados, credores dos Estados.

Reabrir a negociação das dívidas dos Estados é ampliar as incertezas sobre o cumprimento das metas acertadas com o Fundo Monetário Internacional (FMI), que garantem o empréstimo de US$ 41 billhões, a bóia salva-vidas da economia brasileira. O acordo com o FMI prevê também que os Estados façam sua parte no ajuste fiscal, e a renegociação das dívidas foi um dos instrumentos utilizados pelo Ministério da Fazenda para forçar os governadores a cortar despesas, privatizar estatais e demitir pessoal. O erro em Minas, segundo a avaliação de uma fonte do Ministério, foi o fato do ex-governador Eduardo Azeredo ter se limitado a enxugar o sistema financeiro estadual, mas preservado programas onerosos como a manutenção de professores temporários e ter dado um aumento de salários aos policiais militares. No Ministério, as autoridades lembram ainda que Alagoas, onde o funcionalismo ficou sem receber nove meses, não atrasou o pagamento de suas parcelas.

"Se o presidente piscar e ceder, o governo acaba", diz o deputado Antônio Kandir (PSDB-SP). Por isso, Fernando Henrique está batendo o pé, irredutível, até agora, na exigência do cumprimento dos contratos com os Estados – que manda punir os caloteiros com a retenção das transferências dos recursos feitas pela União e o confisco das receitas do ICMS. "Tratarei os governadores como sempre tratei, com respeito. Mas não admitirei que a lei não seja cumprida por quem quer que seja. A autoridade maior neste país é o presidente da República, que foi eleito e cumpre a lei. Todos hão de cumpri-la, custe o que custar", advertiu FHC, no discurso com que abriu na manhã da sexta-feira 8 a primeira reunião ministerial do segundo mandato.

A reentrada de Itamar em cena ofuscou também a aprovação em primeiro turno no Senado da nova CPMF, a pedra de toque do ajuste fiscal. O governo esperava com essa ampla vitória por 61 votos a 12 criar um clima favorável junto aos investidores internacionais, abrindo caminho para uma redução maior das astronômicas taxas de juros. No script acertado entre Fernando Henrique e um grupo de ministros críticos da política econômica, logo após essa fatura ser liquidada no Senado, o Banco Central, na próxima reunião do Copom (Comitê de Política Monetária), baixará os juros. "A queda ainda vai acontecer, mas por causa da posição assumida pelo governador de Minas será menor do que estávamos prevendo", lamenta o ministro das Comunicações, Pimenta da Veiga, principal articulador político do governo.

 

Frente desenvolvimentista Junto com Pimenta, os ministros do Trabalho, Francisco Dornelles, da Saúde, José Serra, da Educação, Paulo Renato, entre outros, formam uma frente na equipe ministerial disposta a mudar os rumos da política econômica depois de o Congresso ter concluído a aprovação do ajuste fiscal. Esse grupo "desenvolvimentista" aposta que o governador Mário Covas, depois de reassumir o cargo neste domingo 10, fará um contraponto a Itamar levantando a bandeira da derrubada dos juros, principal causa da redução da atividade econômica, do aumento do desemprego e da queda de receita dos Estados. Em São Paulo, houve uma diminuição de R$ 430 milhões na arrecadação nos dois últimos meses de 1998. Ao contrário de Itamar, o disciplinado Covas vem seguindo o regime de aperto fiscal e já determinou um corte de R$ 1,8 bilhão no orçamento do Estado para este ano.

Com todo o rebuliço que causou com sua intempestiva moratória, Itamar pode desde já computar ganhos e perdas políticas. Conseguiu, por exemplo, abrir uma brecha na agenda do Planalto que previa como tema único o ajuste fiscal. Colocou também os governadores e seus problemas no centro das negociações que, pela estratégia do governo, teriam como parceiros apenas os parlamentares. Ao abrir o confronto com Fernando Henrique, Itamar aumenta seu cacife nas oposições, mas também corre riscos. Se persistir na queda-de-braço com FHC, pode vir a perder a cobertura política do PMDB. A opção pela moratória já rachou o seu próprio governo: o seu principal assessor, Henrique Hargreaves, chefe da Casa Civil, está atribuindo a uma avaliação equivocada do secretário da Fazenda, Alexandre Dupeyrat, a decisão do calote. Hargreaves talvez esteja antevendo que Itamar pode enveredar pelo mesmo caminho perigoso que levou outros governadores, que entraram em choque com o poder central, a um desastre administrativo. A retórica do enfrentamento é muito boa para quem está na oposição, mas quem comanda um governo estadual precisa mostrar serviço a seus eleitores e uma mãozinha do governo federal é mais do que providencial.

Colaboraram: Isabela Abdala e Eduardo Hollanda (DF)

 

O brasil cai na rede

 

 

ANDRÉ VIEIRA

Os analistas não tiveram nenhum receio de apontar a moratória decretada pelo governador mineiro, Itamar Franco, como o principal fator de abalo das cotações brasileiras no mercado. Na quinta-feira 7, a Bolsa de Valores de São Paulo caiu 5% enquanto os papéis da dívida brasileira no Exterior desabaram. No dia seguinte, a Bolsa voltou a cair 2,5% e surgiram boatos, reproduzidos pelas agências de notícias, de que o ministro da Fazenda, Pedro Malan, estaria demissionário. O Ministério negou a informação. Pelas dificuldades históricas do governo brasileiro de obter um equilíbrio nas contas públicas, esses analistas crêem que o Brasil terá maiores dificuldades para cumprir as metas fixadas com o Fundo Monetário Internacional (FMI). Obviamente, no lado da banca brasileira, a reação foi a pior possível. "Isso é coisa de um governo de um país centro-africano", esbravejou o banqueiro Fernão Bracher, do Banco BBA, que vê na decisão uma volta à década perdida, quando os investidores internacionais evitavam emprestar dinheiro ao Brasil em função da moratória decretada pelo governo Sarney. Mas houve exageros em relação ao impacto do calote de três meses baixado pelo ex-presidente. Alguns analistas chegaram a relacionar a queda da Bolsa de Valores de Nova York e a desvalorização do dólar frente ao iene japonês à fúria do governador mineiro, quando o principal fator de abalo era a abertura no Senado americano do processo de impeachment contra o presidente Bill Clinton.

A questão da moratória soma-se a outros episódios recentes em que o governo perdeu batalhas para fazer o ajuste de contas, como a derrota na votação da MP do funcionalismo. "Este é mais um na sequência de eventos negativos", opina Armínio Fraga, diretor do Soros Fund Management em Nova York. De acordo com Fraga, que administra o fundo de investimentos do megainvestidor George Soros, se o governo federal peitar Itamar Franco, poderá conseguir reverter os efeitos da falta de confiança externa a seu favor. Como o mercado opera com expectativas, que podem ou não ser confirmadas no futuro, acredita-se que a decisão poderá atrapalhar a tarefa de ajustar as contas públicas. "É mais o efeito das expectativas do que propriamente da medida em si", diz o economista-chefe do ABN Amro, Rubens Sardenberg.

 

O nada-consta do presidente

Depois de uma viagem de cinco dias ao Caribe no rastro do dossiê sobre uma suposta conta do alto tucanato nas Ilhas Cayman, o diretor-geral da Polícia Federal, Vicente Chelotti, procurou na tarde da quinta-feira 7 o ministro da Justiça, Renan Calheiros, para fazer um relato sobre suas investigações. Além de contar toda a sua peregrinação pelo Caribe, Chelotti confessou a Calheiros uma subversão na hierarquia. Revelou que esteve com o presidente Fernando Henrique para lhe informar que conseguiu das autoridades caribenhas uma espécie de nada-consta sobre a existência de contas em nome de FHC, do governador de São Paulo, Mário Covas, e do ministro da Saúde, José Serra. Segundo Chelotti, não foi, porém, possível obter o mesmo documento em nome do falecido ministro das Comunicações, Sérgio Motta. No dia seguinte, o ministro da Justiça esteve com o presidente no Palácio do Planalto e transmitiu a Fernando Henrique o teor de conversa que tivera com o diretor da Polícia Federal. "Posso assegurar que Chelotti não esteve com o presidente", negou Renan Calheiros a istoé na noite da última sexta-feira. À imprensa, o tira Chelotti foi evasivo em suas declarações. "Não tenho nada a falar sobre a viagem. Irei fazer um relatório e anexá-lo ao inquérito", limitou-se a dizer ao desembarcar no aeroporto de Brasília.