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DISPUTA SEM ROSTOS
Cardeais rumam para o conclave: duelos nos bastidores
pelo controle de uma estrutura inchada e envelhecida

Reza a lenda que, certa vez, em uma conversa informal, um repórter perguntou ao então papa João Paulo II quantas pessoas trabalhavam na Cúria Romana, a máquina burocrática sediada em Roma responsável pela administração da Igreja Católica, do Vaticano e da Santa Sé. “Metade”, teria respondido o sumo-pontífice, de forma bem-humorada e eloquente. Não se sabe se o diálogo de fato aconteceu, mas a verdade que ele desnuda é inquestionável. Não é de hoje que a baixa eficiência e a rede de intrigas da Cúria Romana incomodam quem ocupa o trono de Pedro. O exército de burocratas de Roma foi uma pedra no sapato do andarilho João Paulo II, teria sido um dos motivos para a renúncia de Bento XVI e agora se apresenta como um dos grandes desafios a ser enfrentado pelo papa Francisco.

O escândalo do Vatileaks
E que desafio. A Cúria com que o novo papa se depara foi a que, durante o pontificado de Bento XVI, deu forma a um dos maiores, senão o maior, escândalo interno do Vaticano de todos os tempos – o Vatileaks. Com papéis da escrivaninha pessoal do sumo-pontífice roubados e divulgados por seu mordomo, e uma teia de intrigas e interesses digna dos melhores livros de suspense, a roupa suja da Santa Sé foi lavada em público durante meses. Quando decidiu renunciar, Bento XVI teria dito a pessoas próximas que seria necessário um papa mais jovem do que ele, com energia e vigor, para enfrentar o mal que havia se instalado no coração da Igreja Católica. O tempo dirá se Jorge Mario Bergoglio é o homem certo na hora certa. Com uma carreira construída à margem da Cúria Romana, o papa Francisco não tem compromissos com o status quo e sua formação jesuíta lhe dá um forte senso de hierarquia e de missão.

Vícios da burocracia
Uma transformação de tamanha envergadura não é algo que aconteça da noite para o dia. “Do mesmo jeito que nenhum país muda o Senado inteiro de uma vez, o papa também não pode trocar todo primeiro escalão da Cúria em uma tacada só”, diz o brasileiro Silvonei Protz, funcionário da Rádio Vaticano que trabalha na cidade-Estado há 23 anos. Trocas na burocracia, prega a experiência, precisam ser feitas paulatinamente para não quebrar a continuidade da instituição que, mal ou bem, administra um rebanho de fiéis de 1,2 bilhão de pessoas, mais de cinco mil bispos, 400 mil sacerdotes e 220 mil paróquias.

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Porém, o engessamento da cúria não pode ser explicado integralmente por essa preocupação com a preservação da continuidade da Igreja. Outros fatores contribuem para a aversão à mudança. Um deles é a idade avançada de quem trabalha por lá. Os ocupantes dos 69 cargos mais importantes do órgão têm em torno de 64 anos. Outro é o fato de que o apadrinhamento de funcionários e a hereditariedade de alguns cargos ainda subsiste na cidade-Estado, o que faz com que um contingente razoável de funcionários trabalhe de forma acomodada. Até uma regra criada pelo Vaticano justamente para estimular a renovação de pessoal – ela estabelece que todo funcionário deve ter seu vínculo com a instituição revisto a cada cinco anos – é pouco respeitada. “Como qualquer grande instituição com funções de Estado, o Vaticano tem seus vícios”, resume o padre Márcio Fabri dos Anjos, professor emérito da Faculdade de Teologia Nossa Senhora da Assunção.

Mas a mudança, apesar de difícil, não é impossível. E há precedente histórico para isso. Quando João Paulo II assumiu, ele estava empenhado em fazer da cúria um órgão internacional, como havia sugerido o relatório final do Concílio Vaticano II. Embora não se possa dizer que a burocracia de fato se internacionalizou sob João Paulo II, é inquestionável que ele alavancou esse processo. E é, necessariamente, do sumo-pontífice que partem iniciativas grandiosas como essa. Nesse sentido, uma reforma da Cúria atual tem de nascer de um desejo claro e objetivo do papa Francisco.

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Caminhos desconhecidos Francisco visita igreja em Roma em
seu primeiro dia de papado: pouca intimidade com os meandros
do Vaticano pode atrasar reformas no centro do poder

O número 2
O novo pontífice em seu tempo como cardeal passou por quatro importantes congregações da Cúria Romana – entre elas a congregação para o clero e a congregação para o culto divino e disciplina dos sacramentos –, mas nunca trabalhou na Santa Sé. Para o vaticanista americano John L. Allen Jr., a falta dessa experiência poderia limitar suas habilidades no trato com a complicada burocracia interna. Soma-se a isso o fato de o papa Francisco ser um jesuíta, ordem tida, historicamente, como mais afeita ao proselitismo e ao trabalho missionário do que ao gabinete. “E o nome escolhido por ele invoca tanto a figura de São Francisco de Assis quanto a de São Francisco Xavier, ambos pouco confortáveis com as exigências e confortos da Cúria”, ressalta o padre Márcio Fabri. Se decidir encarar de frente esse desafio, Francisco pode, por exemplo, nomear um competente secretário de Estado para dar conta do imbróglio. É possível que ele lance mão de algum dos cinco cardeais ou das dezenas de bispos jesuítas que comungam de ideais semelhantes. Vaticanistas também arriscam que o arcebispo de Milão, Angelo Scola, um dos papáveis mais cotados até o conclave, pode ocupar o segundo posto mais importante do Vaticano. O fundamental é que seja alguém que não mine seu papado, como o cardeal Tarcísio Bertone – o número 2 de Bento XVI – fez com o agora papa emérito, mas que o ajude na hercúlea missão de renovação e transformação.

Foto: Spencer Platt/Getty Images
Fotos: Michael Kappeler/EFE; Cezaro De Luca/EPA; Baczewski Jaroslaw; Paul Haring/CNS photo
Foto: L’Osservatore Romano, ho/AP Photo