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COMOÇÃO E FÉ
Na catedral de Buenos Aires milhares de fiéis comemoram a eleição do papa,
que ajudou a melhorar a autoestima de um país abatido pela derrota no plebiscito das Malvinas

O arcebispo Jorge Mario Bergoglio rezava a missa de Natal na catedral de Buenos Aires quando um mendigo bêbado entrou aos gritos naquela igreja sem torres e campanário, austera e fria como sempre. O homem jogou no chão a garrafa que carregava, espalhando cacos e medo por todo lado. Os seguranças imediatamente correram para expulsar o mendigo, mas Bergoglio ordenou que parassem. Pediu que conduzissem o intruso até o altar e concedeu-lhe uma bênção no mesmo tom suave com que fazia seus sermões densos, mas jamais professorais. Histórias como essa são repetidas pelos fiéis desde que, na quarta-feira 13, se juntaram na catedral para homenagear Francisco, o papa argentino. Eles lembravam as missas dominicais conduzidas por um líder de pensamento pragmático, simples e objetivo como os jesuítas, com predileção por comentários do evangelho voltados para o cotidiano dos ouvintes.

Os argentinos foram surpreendidos pela escolha de Bergoglio. Até o ambulante que vendia bandeirinhas amarelas do Vaticano para a multidão que se formava na catedral admitia ter dado um golpe de sorte: elas eram encalhe da visita que João Paulo II fizera à Argentina em 1978. A imprensa jamais havia listado seu cardeal entre os favoritos, como aconteceu com dom Odilo Scherer no Brasil. E o próprio Bergoglio, antes de viajar para Roma, colocara uma pedra sobre suas chances, apesar da boa votação que conseguiu no conclave que elegeu Bento XVI: “Não tenho nenhuma possibilidade de ser papa”, disse ele. “Desta vez a idade joga contra mim.” O país celebrou essa vitória inesperada como triunfo esportivo. Um grito típico das arquibancadas tomou as escadarias da catedral: “Olelé, olalá, si esta no es la iglesia, la iglesia donde está?”

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Quem se chateia com a autoestima inflada dos argentinos pode esperar mais incomodação pela frente. A amarga derrota que eles haviam experimentado dias antes com o plebiscito a favor dos ingleses nas Malvinas acabou superada com folga pela sagração de Bergoglio. Como torcedores fanáticos, contabilizam cinco prêmios Nobel, duas estatuetas do Oscar, a próxima rainha da Holanda, Máxima de Orange, o maior craque do mundo, Lionel Messi, o deus Maradona e agora seu representante terreno, o papa Francisco. Tudo isso, porém, ainda não parece suficiente para romper uma sina: a Argentina segue comportando-se como uma nação feita de adversários, mais do que compatriotas. Justamente o sucesso de Bergoglio é o novo motivo para rachar o país. O papa Francisco tem um notório passado de militante peronista, a mesma corrente partidária de Cristina Kirchner e de seu falecido marido, o ex-presidente Néstor Kirchner. Mas os peronistas, ao longo da história, jamais precisaram de outra agremiação para dividir a Argentina em disputas cruentas. Os Kirchner e seus seguidores tratam Bergoglio como inimigo.

Chávez ou o papa?

Os sinais da luta surgiram bem perto da catedral onde os fiéis comemoravam. Do outro lado da rua, a Plaza de Mayo curiosamente não estava tomada como costuma acontecer nas manifestações apoiadas pelo governo. Um quarteirão mais adiante, a Casa Rosada, sede da Presidência, mantinha um estranho silêncio, enquanto, noutro ponto da cidade, o Congresso Nacional trepidava com um bate-boca entre as bancadas governista e oposicionista em torno da notícia de que um argentino ocuparia o trono de São Pedro. A Câmara dos Deputados se dedicava a homenagear o ex-presidente venezuelano Hugo Chávez quando o presidente da Casa, o oposicionista Julián Dominguez, interrompeu os discursos para anunciar: “Hay papa y es argentino.” Os deputados pediram então que a sessão fosse interrompida para que ouvissem as primeiras palavras de Bergoglio. A bancada oficialista negou o pedido e manteve a homenagem a Chávez até que surgisse a notícia de que a presidenta Cristina Kirchner lançara uma nota oficial, seca e protocolar.

Já havia se passado quase duas horas do anúncio da escolha de Bergoglio quando Cristina resolveu se manifestar. Primeiro ela estava recolhida à residência oficial de Olivos, preparando um encontro com sindicatos. Depois manteve a programação e só no final do longo discurso em que anunciou benefícios para trabalhadoras de cooperativas acrescentou: “E hoje também é um dia histórico: pela primeira vez, em dois mil anos, vai haver um papa latino-americano.” A seguir, saudou o novo pontífice e, então, passou a sugerir-lhe linhas de ação: “Espero que ele leve mensagem às grandes potências para que dialoguem e olhem um pouco para os emergentes.”

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A militância peronista de Bergoglio vem do início dos conturbados anos 1970, quando os herdeiros de Perón se digladiavam entre a extrema esquerda e a extrema direita, mesmo abrigados sob o mesmo teto. Ele ingressou num agrupamento chamado Guarda de Ferro. Tratava-se de uma organização de inspiração facista que se opunha aos guerrilheiros Montoneros, também peronistas. Néstor e Cristina, que se intitulam “revolucionários”, sempre consideraram Bergoglio um inimigo figadal. O historiador Julio Bárbaro conta que quando Néstor subiu ao poder Bergoglio o procurou para que fizesse uma aproximação entre os dois. “Foi um dos meus tantos fracassos políticos”, diz Bárbaro. “Meu amigo Néstor não se comovia tanto com a espiritualidade.” Pouco tempo depois, quando o presidente Néstor Kirchner participava de um Te Deum na catedral ele teve que ouvir um sermão de Bergoglio condenando o “exibicionismo dos anúncios estridentes” dos políticos. Ofendido, Kirchner respondeu que não recebia “ordens de um homem de ferro”. Depois desse episódio, os Kirchner nunca mais pisaram na catedral. A última vez que Cristina esteve com Bergoglio foi em março de 2010, num despacho na Casa Rosada quando recebeu a cúpula da Conferência Episcopal Argentina. Toda vez que Bergoglio falava de pobreza, os Kirchner tomavam a mensagem como uma crítica a sua gestão. Sempre que o arcebispo se referia à corrupção, isso era recebido como um desaforo. Quando, após um trágico acidente com o metrô, Bergoglio se solidarizou com as vítimas (“gente que para ganhar o pão é carregada como gado”), Cristina tratou-o como “chefe da oposição”.

Vida dura

A consagração do papa argentino não interrompeu as velhas desavenças. Ainda na quarta-feira, Bergoglio foi duramente atacado nas redes sociais por uma turma que é conhecida na Argentina como os “tuiteiros K”, os blogueiros kircheristas que fazem o combate político via internet. Eles reavivaram as denúncias sobre as ligações de Bergoglio com os militares e seu combate à lei que permitiu casamento de pessoas do mesmo sexo (leia reportagem à página 66). Um dos “tuiteiros K” que bateu mais pesado foi o organizador de piquetes Luis D’Elia: “Francisco é para a América Latina o que João Paulo II foi para a União Soviética. Este é o novo intento do império para destruir a unidade sul-americana.” Outros tuiteiros publicaram que “a igreja terá que pedir perdão por ter escolhido Bergoglio papa”. Mesmo na grande imprensa argentina, a proximidade que o novo papa teve com os militares e sua atuação conservadora em questões sociais como o aborto e os direitos dos gays rendeu fortes restrições. Ao lado de manchetes como a do diário esportivo Olé (“La Otra Mano de Dios”) e de exaltações simplórias sobre o jeito “tímido, mas decidido” com que o papa encarou a multidão na praça São Pedro, as bancas de jornais de Buenos Aires exibiram na manhã da quinta-feira 14 a capa estupefata do jornal “Página 12”: “Dios Mio!”, remoendo o passado polêmico de Bergoglio. A reportagem principal desse crítico diário tinha o título “Errar é divino”.

A maneira no mínimo incomum de um país acolher a novidade de que o novo papa é seu compatriota manteve-se no dia seguinte à consagração. Menos de 24 horas após receber a notícia de que Bergoglio se tornou o maior argentino da história, Buenos Aires se rendia à rotina da vida dura que a atormenta nos últimos anos. Na catedral, durante o dia inteiro, havia mais jornalistas à cata de imagens do que católicos em oração. Muitos curiosos circulavam perto da fila de vans das redes de tevê do mundo inteiro, estacionadas na Plaza de Mayo. Mas, dentro da igreja, havia apenas algumas dezenas de fiéis, que volta e meia eram constrangidos pelo barulho das esporas batendo na troca da guarda do túmulo de San Martín. É que por uma dessas estranhezas típicas do caudilhismo latino-americano, o herói da independência argentina está enterrado na quarta capela lateral à direita de quem entra na catedral. Ao lado dele, sob vigia de dois soldados uniformizados em gala, fica a capela de Nossa Senhora da Paz.

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Na quinta-feira à tarde, enquanto Francisco rezava sua primeira missa em Roma, o centro de Buenos Aires estava tomado por ruidosas manifestações. Mas em nenhuma delas se podiam avistar as bandeirinhas amarelas do Vaticano, ou referências ao papa argentino. Em vez disso, o que se ouvia eram os “muchachos” batendo seus bumbos sem breque. Sindicalistas da Central Geral dos Trabalhadores e da Central dos Trabalhadores Argentinos cercavam o obelisco da avenida 9 de Julho defendendo reajustes salariais. A eles vinham se juntar passeatas de diferentes movimentos de esquerda, vindos dos “barrios del sur”. Alguns quarteirões mais adiante, manifestantes de centrais sindicais independentes fechavam o trânsito na avenida Córdoba. Pela calle San Martín, homens e mulheres do movimento dos aposentados, quase todos de cabelos brancos, mostravam que já não se importam de ser tratados como carrapatos. Seguiam em fila, carregando faixas que pediam: “Aguentem os caranchos”. Antes da esquina com a avenida Corrientes os aposentados pararam para não se misturar à passeata dos garis e de mais duas entidades sindicais empunhando bandeiras azuis com siglas de difícil identificação.

Nas rodas de conversa dos cafés do centro que sobreviveram à interminável sucessão de crises econômicas do país, o papa peronista seguia sendo assunto. Mas por uma via transversa e cheia de suspeitas, bem ao gosto portenho: o jogo. Muita gente dizia estranhar o resultado da loteria nacional que correu no dia da sagração de Francisco. Em vez de bichos, como ocorre no Brasil, os números da loteria argentina são relacionados a algumas figuras. Quem sonha com um bêbado, por exemplo, joga no 14. Moça bonita, 21. Soldado, 12. Na quarta-feira foram sorteados os números 20 e 40. O 20, para eles, é padre. O 40 é papa.

Fotos: Mario Tama/Getty Images; /Agustin Marcarian/reuters; Raul ARBOLEDA/afp photo; Paul Hanna, Chris Helgren, Eric Gaillard/reuters