Uma frase atribuída a São Francisco de Assis traz a essência do pensamento franciscano: “Devemos ser simples, humildes e puros.” Em sua primeira aparição pública como papa, o argentino Jorge Mario Bergoglio, agora apenas Francisco, parecia encarnar essas três virtudes. Na sacada do Vaticano, o papa Francisco foi simples, como provavelmente poucos líderes católicos jamais foram, até na indumentária sagrada. Ele vestiu a batina branca, apenas ela, e abdicou do manto vermelho que cobre os ombros dos papas nos grandes acontecimentos. Francisco deu uma lição de humildade. Quebrando a tradição de abençoar os fiéis como primeiro ato, ele, em um discurso memorável, exortou a todos para que rezassem por seu pontificado: “Antes de o bispo abençoar o povo, peço-vos que rezeis ao Senhor para que abençoe a mim.” Depois, se curvou diante da multidão de fiéis espremida no frio trepidante de Roma. O gesto durou só dez segundos, mas estava carregado de simbolismos. Significa muitas coisas, mas certamente isto: para o novo papa, os fiéis terão voz tão ativa quanto a dele. Naquela sacada do Vaticano, o líder dos católicos pareceu mesmo ser um homem puro. Ao se despedir, anunciou que, no dia seguinte, rezaria “aos pés de Nossa Senhora, para que guarde Roma inteira”.
Pelo menos na fria noite romana, o papa Francisco seguiu à risca a cartilha de São Francisco de Assis.

chamada.jpg
AMOR AO PRÓXIMO
Em Buenos Aires, o futuro papa repete o gesto memorável de São Francisco de Assis e
beija os pés de um enfermo, em cena registrada em 2006. Era hábito de Bergoglio dar
demonstrações de amor como essa a viciados em drogas e portadores do vírus HIV

O nome escolhido pelo novo papa evoca, na verdade, dois santos: São Francisco Xavier, fundador da Ordem dos Jesuítas, e São Franciso de Assis, inspirador de todas as horas do argentino. Preste atenção na foto da página anterior e você verá a verdadeira face franciscana do papa. De joelhos, ele beija os pés de uma criança enferma, numa cena que se repetiria várias vezes enquanto foi arcebispo de Buenos Aires. O papa Francisco já beijou os pés de moradores de rua e viciados em drogas. Em 2001, fez o mesmo com portadores do vírus HIV, mas não deixou que a mensagem escapasse. Depois do gesto, disparou um eloquente discurso contra o preconceito. Impossível não lembrar de São Francisco de Assis, que teria beijado as mãos de leprosos quando estes eram aviltados pela sociedade (leia quadro). “A Igreja vai ter um novo rosto porque senão ele não teria escolhido o nome Francisco”, disse na semana passada o ex-frade franciscano Leonardo Boff, um dos fundadores da Teologia da Libertação. “São Francisco é um símbolo de humildade, fraternidade e de amor aos pobres. Por isso, Francisco é muito mais do que um nome. É uma filosofia de vida.”

O papa Francisco sempre desprezou qualquer tipo de afetação. Jamais gostou de ser chamado de “cardeal” e “sua eminência”, preferindo um simples “padre Jorge”. Na condição de arcebispo de Buenos Aires, tinha o direito de morar em uma residência luxuosa e com motorista disponível 24 horas por dia. Preferiu, porém, viver em um modesto apartamento de dois dormitórios e usar o transporte público para se locomover. No metrô, costumava ser visto com um surrado sobretudo preto e gostava de puxar conversa com trabalhadores para saber de seus dilemas. Também evitava restaurantes e dizia que jamais entraria em um lugar que um pobre não pudesse pagar. Frugal, cozinhava o básico para sobreviver: grelhados combinados com verduras. “Ninguém pode dizer que é realmente livre e feliz enquanto houver miséria e fome neste mundo”, afirmou em uma entrevista concedida para a imprensa argentina.

Carona

Como papa, Francisco dá sinais de que pretende seguir o mesmo desprendimento. Na quinta-feira 14, dispensou a limusine oficial do Vaticano e pegou carona em um Volkswagen de um funcionário da igreja. “Temos dinheiro para pagar a gasolina?”, brincou Francisco, conhecido também por suas tiradas. No jantar logo depois de sua primeira aparição pública, fez mais uma de suas graças. “Que Deus os perdoe pelo que fizeram”, declarou, entre risos, para os cardeais que o elegeram papa. Tudo indica que sua cruzada em prol dos pobres e desvalidos não será aplacada pelos compromissos do papado. Muito pelo contrário. Também na quinta-feira 14, pediu, em um comunicado oficial, que os argentinos não viajem para a Itália para assistir à sua entronização. O papa Francisco quer que esse dinheiro seja doado aos pobres. Logo após o anúncio de seu nome, começaram a surgir críticas contra o estilo do argentino. Não foram poucos os que disseram que tudo não passa de populismo. Mesmo que seja apenas uma estratégia de marketing pessoal (e ninguém até agora usou argumentos convincentes para garantir isso), cabe uma pergunta: não é melhor a defesa incansável do fim da pobreza no planeta do que não fazer nada?

FILOSO-G-IE-2261.jpg
HOMEM DO POVO
O metrô de Buenos Aires sempre foi o meio de transporte de Bergoglio (em primeiro plano)
até virar papa. Era a forma que ele tinha de estar em contato regular com o seu rebanho

Até os rivais do novo papa afirmam que a pregação da humildade não deve ser confundida com fraqueza. O papa Francisco, afinal, é homem de convicções fortes, que costuma defender suas ideias com paixão. Na Argentina, seus adversários dizem que não há inimigo pior para enfrentar. Ele é o que os italianos chamam de uomini rispettati (homem de respeito, em tradução simples) quando se referem a algumas figuras ilustres. “Uomini rispettati são homens ao mesmo tempo grandiosos e humildes, amados por todos e generosos por natureza, homens fortes cujas mãos são beijadas quando vão de aldeia em aldeia”, na descrição precisa do escritor Gay Talese.

O peso do nome

Talvez por isso mesmo, o papa Francisco seja a pessoa indicada para transformar uma igreja assombrada por perversões sexuais e corrupção dentro de suas próprias fileiras. Também nesse aspecto, sua missão se assemelha à do santo franciscano. “São Francisco de Assis intimou a igreja de seu tempo a deixar o luxo e a vaidade pela simplicidade”, diz o padre Antônio Aparecido, vigário episcopal da Cúria Metropolitana de São Paulo. Mais do que isso: São Francisco também quis limpar uma igreja manchada por desvios morais.

Por todas essas razões, carregar o nome Francisco é uma responsabilidade que poucos são capazes de suportar (o que explica, provavelmente, o fato de que nenhum líder da Igreja usou essa designação até hoje). Em 1969, o papa Paulo VI expôs o fardo a que seriam submetidos os que cometessem essa ousadia. “Com este Vaticano, nunca haverá um papa chamado Francisco, porque Francisco destruía as regras humanas apenas na obediência ao Evangelho”, disse Paulo VI. “Francisco não aceitaria nenhuma estrutura piramidal, nenhuma burocracia, nenhum privilégio.” O humilde argentino aceitou o imenso desafio. Que São Francisco de Assis o ilumine.

O santo dos pobres

FILOSO-H-IE-2261.jpg

Símbolo de humildade, da renúncia e do desapego aos bens materiais, São Francisco de Assis, conhecido como o santo dos pobres, fundou a ordem franciscana no século XIII num momento em que a Igreja enfrentava uma série de escândalos morais. Nascido em 1181 em Assis, na Itália, Francisco era filho de um mercador de tecidos. Durante a infância e a adolescência, gozou das benesses de uma família rica. Até os 20 anos, atraía uma multidão de jovens às festas que promovia, alimentando uma vida de pecados. Depois, seguiu o caminho comum dos aristocratas que buscavam glórias terrenas: se tornou um cavaleiro. Entre as duas guerras de que participou, foi capturado por inimigos e passou um ano preso num calabouço. Ao partir para a segunda contenda, sonhou que Deus o alertava sobre suas escolhas equivocadas. Voltou para casa humilhado e passou por um período contemplativo, dedicado à fé. Um dia, voluntariamente, Francisco se aproximou de um leproso e beijou sua mão. Para a história, esse foi seu primeiro teste divino. Tempos depois, enquanto rezava na Igreja de São Damião, ouviu outro chamado de Deus: “Francisco, repare minha Igreja em ruínas.” A partir de então, Francisco abdicou da herança do pai e se despiu de toda vaidade – passou a vestir apenas uma manta e a andar descalço. Seguindo a orientação divina, começou sua pregação. Na linha contrária à opulência e suntuosidade da Igreja Católica medieval, conquistou seguidores ao praticar uma vida semelhante à de Cristo, de verdadeira liberdade e amor. Em seus discursos, pedia aos ricos para doar dinheiro aos pobres. Extremamente ligado à natureza, Francisco tem ainda uma passagem que inclui a domesticação de um lobo selvagem. Os anos de pobreza e abdicação material, porém, o fizeram adoecer e lhe cegaram os olhos. Francisco morreu em 1226, aos 45 anos.
Mariana Barboza

Foto: Gustavo Cherro/Diario Clarín; Pablo Leguizamon/AP Photo