Assista a vídeo com depoimentos, ideias e mensagens do cardeal antes de virar o Papa Francisco:

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Jorge Mario Bergoglio, então com 21 anos, transpirava por causa da febre provocada por uma pneumonia. Em um tempo em que o uso de antibióticos não estava disseminado, depois de passar três dias entre a vida e a morte, ouviu dos médicos que perderia a parte superior de seu pulmão direito. Agarrando-se à freira Dolores, responsável por prepará-lo para a primeira comunhão, escutou: "Com tua dor, você está imitando Jesus." A passagem é narrada pelo próprio papa Francisco no livro "O Jesuíta", escrito pelos jornalistas portenhos Francesca Ambrogetti e Sergio Rubin.

Bergoglio fez a cirurgia e até hoje vive sem um pedaço do pulmão. Segundo o Vaticano e especialistas independentes, a intervenção em nada afeta o desempenho físico do papa. Ele, porém, jamais se esqueceria da religiosa Dolores e nem da frase dita por ela. Quando a freira morreu, ele permaneceu por toda uma noite ajoelhado ao lado de seu corpo. A história, que vem sendo reconstruída paulatinamente, dada a reserva com a qual o ex-cardeal de Buenos Aires costuma falar sobre sua vida particular, é apenas um fragmento de seu périplo pessoal rumo ao pontificado – uma difícil jornada que começou na Itália, muito antes de seu nascimento.

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ESTUDOS
Bergoglio (à direita, na foto), nos anos 1950, com amigos da
escola em Buenos Aires, onde se formou técnico em química

Liderados pela avó Rosa, com quem o papa mantinha uma estreita relação, os Bergoglio deixaram a região italiana do Piemonte rumo à Argentina em 1929. A viagem só foi bem-sucedida por conta de um desses imprevistos que, ao final, mostram-se oportunos. A família não conseguiu vender um de seus bens, o que lhes obrigou a mudar a data da passagem. Ela havia sido comprada para o navio Principessa Mafalda, que naufragaria em 1927 na costa da Bahia, matando 382 pessoas. Em Buenos Aires, os Bergoglio se instalaram em um imóvel de 80 metros quadrados compartilhado com outras famílias no bairro de Flores. Ali nasceu Jorge, o primeiro dos cinco filhos – os outros são Alberto Horacio, Oscar Adrián, Marta Regina (já faleceu) e Maria Elena – da dona de casa argentina Regina María Sivori e do ferroviário José Mario Francisco Bergoglio, que mais tarde trabalharia na indústria têxtil.

A vida ali era simples e se desenrolava entre o pátio da casa, a praça Herminia Brumana, onde Jorge jogava futebol, e a Igreja Nossa Senhora da Misericórdia, localizada a apenas um par de quadras da residência. Foi lá, sob os auspícios da irmã Dolores, que o garoto cursou o pré-escolar e recebeu a primeira comunhão, no dia 8 de outubro de 1944. "Mesmo depois de muito tempo, ele continuou vindo à missa para celebrar a data de sua comunhão ao nosso lado", contou à ISTOÉ a irmã Martha Rabino, responsável pela igreja. Ela também lembra que a mãe de Jorge fazia questão de que a família assistisse junta a missa do domingo. "Essa religiosidade pode tê-lo influenciado. Mas a verdade é que ele era uma criança normal", diz. Normal e prestativa. Sua mãe ficara paralítica após o parto do quinto filho. Para ajudá-la com as tarefas da casa e a cuidar dos outros irmãos, Bergoglio aprendeu inclusive a cozinhar.

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FAMÍLIA
Um retrato dos Bergoglio: acima, da esquerda para direita, o irmão Alberto,
Jorge, o outro irmão, Oscar, e a irmã Marta. Abaixo, da esquerda para a
direita, sua irmã Maria Elena, sua mãe, Regina, e seu pai Mario
 

PAIXÃO ADOLESCENTE

Aos 12 anos, Jorge apaixonou-se pela amiga Amália, como poderia acontecer com qualquer garoto de sua idade. "Se não me casar com você, viro padre", teria dito a ela antes de ser impedido pelo pai da menina de seguir investindo no flerte. Também como costumava acontecer na vida de meninos como Jorge, ele começou a trabalhar cedo, fazendo faxina em uma fábrica de meias para ajudar com as contas da casa. Tinha 13 anos. "Era um menino verdadeiramente divino", diz a freira Marta.

Outro elemento que ajuda a reforçar a imagem simples do "papa de bairro", como Bergoglio vem sendo chamado em Flores, é sua assídua presença no estádio do San Lorenzo de Almagro. A paixão pelo time de futebol portenho, fundado em 1908 por um padre salesiano, está estampada na carteirinha que o ex-cardeal carrega ainda hoje. Até descobrir o sacerdócio, era com o futebol que o jovem gastava seu fôlego. "A gente se encontrava na igreja e de lá ia para a praça jogar", diz Néstor Carvajo, colega de Jorge na escola secundária Hipólito Yrigoyen, onde ambos se formaram técnicos em química. É dessa época também que vem o gosto pelo tango – seus cantores preferidos são Carlos Gardel, Julio Sosa e Ada Falcón – e pelas milongas, quando, vestido com roupa elegante, tirava as moças para dançar.

Assim como a mãe participava de sua formação religiosa, o pai seguia de perto sua trajetória acadêmica. Carvajo, que depois de formado se tornou reitor do Hipólito Yrigoyen, conta que Jorge o visitava com frequência na escola. "Sempre pegava o ônibus 109 no centro da cidade e vinha até aqui", diz. "Nunca vinha de carro e só às vezes aceitava minhas caronas." Para ele, o amigo tinha todas as características necessárias para o trabalho religioso. "Bergoglio se dedicava quase que exclusivamente a ajudar. Sempre foi solidário e levava fixas na cabeça ideias sobre educação e pobreza", afirma.

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Não é de se estranhar, portanto, a naturalidade com que ele começou o sacerdócio no seminário Sagrado Coração de Jesus, em 1958. Pouco depois, entraria para a Companhia de Jesus, onde percorreria uma rápida trajetória até se tornar provincial, o principal superior da ordem no país. A ascensão acompanhou o seu investimento nos estudos e no magistério. Entre duas breves passagens pelo Chile, em 1960, e pela Espanha, lecionou em diversos colégios argentinos. Um deles foi o El Salvador, na capital. Segundo o padre Jose Cantó, reitor das faculdades de filosofia e teologia da cidade de San Miguel (cargo que Bergoglio ocupou entre 1979 e 1985), o papa Francisco era responsável por duas disciplinas no colégio, uma de teologia pastoral e outra sobre as sagradas escrituras. "Ele era uma pessoa com uma capacidade enor­me de escutar." A mes­ma impressão é compartilhada pelo padre Mário Geremia, que foi aluno de Bergoglio em San Miguel entre 1987 e 1988 e hoje é pároco no Rio de Janeiro. "Era catedrático, mas dialogava com os alunos e sempre procurava responder a suas questões", lembra.

Um período permanece pouco elucidado na biografia de Bergoglio – sua viagem à Alemanha em 1986. É o padre Cantó quem dá pistas sobre a tese de doutorado que o ex-cardeal teria elaborado na Europa. Segundo ele, o estudo era sobre Romano Guardini, um sacerdote italiano radicado na Alemanha que se tornou alvo do nazismo. Guardini compartilhava com Bergoglio a paixão pela literatura. Não são poucas as menções do argentino à obra do escritor russo Fiódor Dostoiévski, assim como ao compatriota escritor Jorge Luis Borges.

Ao voltar da Alemanha, Bergoglio mergulhou em um período de recolhimento que duraria até 1992, quando foi nomeado bispo de Buenos Aires. O salto definitivo em sua trajetória viria em 1997, quando foi ordenado arcebispo coadjuntor. No ano seguinte, foi alçado ao cargo de arcebispo. Passaram-se três anos até se tornar cardeal pelas mãos do papa João Paulo II. A ascensão nunca o afastou da vida do bairro onde cresceu. Com as vestes de sacerdote, o papa que empana e frita seus próprios bifes à milanesa (receita da mãe) pegava quantos trens e ônibus fossem necessários para chegar a tempo para o chá da tarde em Flores com as irmãs da Igreja Nossa Senhora da Misericórdia – uma rotina simples que o novo homem mais poderoso da Igreja Católica foi obrigado, finalmente, a abandonar.

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Fotos: Courtesy of Sergio Rubin/AFP Photo; Courtesy of Sergio Rubin/afp photo Ivan Fernandez/ap photo; Carolina Camps/reuters; RICARDO CASTEIRA/AFP Photo