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MISSÃO
Defensor dos necessitados, o novo papa não hesita em trocar os gabinetes
pela presença nas ruas, ao lado dos mais necessitados

Em um dos protestos na Praça de Maio, em dezembro de 2001, o então arcebispo de Buenos Aires, Jorge Mario Bergoglio, avistava da janela de seu apartamento, localizado no prédio da Cúria ao lado da Catedral, os manifestantes gritando palavras de ordem contra o então presidente Fernando de la Rúa, que acabou renunciando. No principal palco dos grandes dramas argentinos, os gases lacrimogêneos chegavam até seu quarto, no segundo andar do edifício. Ao perceber que uma senhora apanhava de policiais, decidiu telefonar para o ministro do Interior. Foi atendido por um assessor a quem pediu que as forças de segurança não agissem com violência contra a população.

Na democracia, o papa Francisco sempre se mostrou um cidadão ativo politicamente. Que vai para as ruas acudir os necessitados. Que sai em marcha com os pais que perderam filhos na tragédia da boate Cromanon, na qual morreram 194 pessoas em 2004. Na ditadura em que a Argentina esteve mergulhada entre 1976 e 1983 seu papel é mais obscuro. É acusado de colaborar com os agentes da repressão, o que ele nega e classifica de calúnia.

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TENSÃO
A pregação por justiça social fez do cardeal Bergoglio o principal opositor do
ex-presidente Néstor Kirchner, com quem manteve apenas relação protocolar

Nos últimos anos como arcebispo, ele falava em seus sermões de justiça social, da destruição do trabalho digno, criticava a corrupção e a falta de transparência do poder público. Também mencionava em suas homilias o sentido da pátria e das instituições. Por suas declarações, converteu-se em um adversário do casal Kirchner. O ex-presidente Néstor chegou a chamá-lo de “chefe da oposição”. Com a presidenta Cristina conseguiu manter uma relação mais cordial. O maior embate entre os dois ocorreu em 2010, quando a Argentina se tornou o primeiro país latino-americano a aceitar o casamento homossexual. Ortodoxo em temas morais como união gay – que classificou como “plano do diabo” – e aborto, o papa Francisco bateu duro na presidente. A saudação fria e formal da Casa Rosada à sua eleição é um indicativo da distância que os separa. Enquanto a população foi às ruas comemorar, o governo soltou uma nota oficial na qual congratulava burocraticamente a chegada do primeiro pontífice argentino ao trono de Pedro. Cristina, no entanto, anunciou que irá assistir à poss e em Roma, na terça-feira 19.

Apesar de seu discurso focado em justiça social, o papa Francisco não abraçou a Teologia da Libertação, corrente católica que defendia uma visão marxista do cristianismo e se aliou à esquerda, como fizeram outros religiosos latino-americanos nos anos 1970. Como chefe regional dos jesuítas na Argentina, tentou dissuadir seus companheiros da militância política pura e simples. Preferia que eles continuassem o trabalho nas paróquias.

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Papel na ditadura

O papel do novo papa durante a ditadura Argentina é alvo de grande polêmica. A Igreja Católica é acusada de silenciar – e em alguns casos até colaborar – diante das torturas, raptos e assassinatos engendrados pelos militares nos anos de chumbo. Por conta dessa postura, a instituição, em 2000, pediu desculpas publicamente aos argentinos por falhar em se posicionar claramente contra os generais. O caso mais grave envolvendo o pontífice refere-se ao rapto de dois padres jesuítas, Orland Yorio e Francisco Jalics, por oficiais da Marinha em 1976, quando Bergoglio era a maior autoridade da Ordem no país. Os dois permaneceram em cativeiro na Escola Mecânica da Armada por cinco meses. Depois foram liberados.

O jornalista Horacio Verbitsky, autor de um livro sobre a Igreja chamado “Silêncio”, o acusa de retirar a proteção aos padres que realizavam trabalhos sociais em bairros pobres. Jalics hoje mora em um mosteiro na Alemanha e Yorio morreu há 13 anos de ataque cardíaco. Familiares dos religiosos dão apoio à tese de Verbitsky. “A Igreja Católica escolheu uma pessoa que é cúmplice de um governo genocida”, afirma Graciela Yorio, para quem o novo papa é o autor intelectual do sequestro de seu irmão Orland. Instado a depor na Justiça sobre o caso, Bergoglio se recusou a fazê-lo por duas vezes. Somente em 2010 deu seu testemunho, considerado “evasivo” por perseguidos do regime. O papa Francisco nega as acusações. No livro autobiográfico “O Jesuíta”, publicado há três anos, ele se defendeu: “Fiz o que pude com a idade e as poucas relações que tinha para defender as pessoas sequestradas.”

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DIPLOMACIA E ENGAJAMENTO
Com o ex-ditador José María Vilela e numa marcha com familiares
de vítimas da Cromanon, boate na qual morreram 194 pessoas

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Seus colaboradores enaltecem seu papel na época. Sustentam que, nas sombras, ele ajudou a salvar a vida dos dois padres e protegeu outros potenciais alvos dos militares. Numa ocasião, o novo pontífice teria dado seus próprios papéis de identidade para um dissidente parecido com ele deixar o país. O papa Francisco tem um defensor de peso, o argentino ativista de direitos humanos Adolfo Perez Esquivel, prêmio Nobel da Paz em 1980. “Ele não tinha vínculos com a ditadura”, afirmou Esquivel à rede BBC. “Houve bispos que foram cúmplices da ditadura, mas Bergoglio não.” Segundo o ativista, muitos membros do alto clero pediam aos militares a liberação de prisioneiros e sacerdotes, mas não eram atendidos. Agora, no trono de Pedro, a voz do papa Francisco estará mais forte do que nunca.

Foto: Ansa/Zuma Press/Glow Images; Diego Fernandez Otero


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