O mais novo papa inicia seu pontificado às voltas com o mesmo problema enfrentado por seus 265 antecessores. As formas se modificaram, a geografia nem sempre foi a mesma, mas a pergunta fundamental não se alterou tanto quanto se poderia imaginar. Consiste em saber o que fazer com aquela imensa parcela da humanidade que não segue os ritos católicos, não acredita em seus dogmas e insiste em viver conforme outros mandamentos – e ainda por cima frequenta outros cultos, obedece a outros líderes, venera outras verdades.

Religiões de um Deus único acreditam numa força única, presente no céu e nas paisagens subterrâneas, capaz de movimentar oceanos, afastar as doenças e estimular as colheitas, mas, antes de tudo, aquecer o coração de homens e mulheres na dor e no sofrimento. Por isso é difícil, para qualquer cristão – mesmo que essa palavra seja empregada aqui como uma figura de linguagem, podendo ser substituída por muçulmano, evangélico, budista ou judeu –, entender o Outro, aquele diferente absoluto mas que precisa ser visto como um igual em direitos e oportunidades.

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Esse foi o ensinamento produzido em 2013 anos de história do cristianismo e que o papa Francisco começa a enfrentar desde que foi escolhido para substituir Bento XVI. Globalizado, frenético, inseguro, do ponto de vista católico o mundo do século XXI é o universo dos Outros, cabe admitir de uma vez por todas. Em tempos recentes, os muçulmanos saltaram de 21,2% para 23,1% e formam hoje a mais numerosa corrente religiosa mundial. Os evangélicos – somando-se todas as suas denominações – chegaram a 17%, o mesmo porcentual reservado aos católicos. Não é um mundo hostil ao papa, que mantém uma influência universal que nenhum de seus pares de qualquer religião conseguiu igualar – mas uma demografia assim tão desfavorável recomenda humildade.

Os papas já foram incrivelmente poderosos, de uma forma que o ouro e a prata da Santa Sé ajudam a recordar apenas remotamente, até porque representam uma força que não era apenas material. No fim do século XV e início do XVI, Alexandre VI e Júlio II puderam dividir o mundo entre duas potências de então, Portugal e Espanha, numa proeza que só seria repetida cinco séculos depois, quando a União Soviética comunista e os Estados Unidos capitalista experimentaram partilhar o mundo em dois – a base já não era a fé, mas o poder mortífero de seus respectivos arsenais nucleares e a qualidade de vida que ofereciam a seus povos.

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A Igreja apequenou-se, ficou insignificante e até cruel, quando se mobilizou para impor crenças e valores a tantos gentios, como se viu em epopeias chamadas Cruzadas que cobriram contemporâneos de glória, mas hoje são motivo de revisão, arrependimento e vergonha, o que também aconteceu em tempos recentes, quando Pio XII fechava os olhos por trás daqueles óculos redondos de tartaruga para fingir que não enxergava os esqueletos humanos massacrados no holocausto da Segunda Guerra Mundial. A mudança que permitiu ao catolicismo chegar aos nossos dias e ir até “o fim do mundo” como o próprio Francisco disse, para encontrar um papa argentino, aconteceu na aventura colonial. Foi então que padres e bispos definiram uma contribuição inesquecível para a construção da humanidade não só como espécie animal, mas também como forma de civilização. Numa posição de vanguarda em relação às ideias políticas da época, a Igreja percebeu que os selvagens – nós, em resumo – podiam dançar fumando charutos, andar de tanga pela selva e até apreciar carne humana em seus banquetes, mas também tinham alma e podiam ser salvos para a vida eterna, como também acontecia com aqueles fiéis mais antigos de pele branca e calça que parecia almofada. Essa compreensão revolucionária abriu as portas da América – e da África, e da Ásia – para os exércitos de jesuítas e permitiu que o Vaticano tirasse sua parte imensa na riqueza do Novo Mundo. Essa ideia também deixou uma semente: a noção de igualdade entre homens e mulheres, independentemente de cor, raça, gênero e credo, ainda que, como se sabe, nem todos esses aspectos e alguns detalhes importantíssimos tenham sido percebidos no mesmo dia e hora. Os direitos humanos começaram a nascer na alvorada dessas nações, nesse encontro da fé, da guerra e da história, quando os mesmos padres que procuravam a alma considerada primitiva eram os grandes inimigos da escravidão indígena, postura que ajuda a entender por que o rebanho latino-americano até hoje tem uma dívida de fidelidade em relação ao Vaticano, o que não se vê nas regiões onde vivem aqueles que eram chamados de mouros, perseguidos até onde foi possível.

Criada para dar continuidade à obra de um homem que andava sobre as águas, multiplicava pães e peixes, nasceu sem ser concebido de forma humana e morreu após torturas indizíveis apenas para fazer bem aos outros, na semana passada a Igreja deu posse ao argentino Francisco num ambiente cultural em que os milagres são vistos como metáforas da condição humana e nem todos os fiéis conseguem acreditar neles. O mundo se desencantou. A ciência tomou o lugar da fé. Com o avanço do conhecimento, o maravilhoso tornou-se explicável. Em toda parte, as pessoas não deixam de manifestar a vontade de serem autônomas, com direito a gostos e prazeres, sem regras nem imposições de fora. Há muito o sexo, a grande praga bíblica, deixou de ser pecado e punição. Só é condenado em formas pervertidas, como tantos bispos e padres demonstraram em casos insuportáveis de pedofilia. O passado que foi buscar Francisco do outro lado do Atlântico guarda uma evolução de dois milênios, ora em acordo, ora em conflito com a vontade dos papas, e não há muito que se possa fazer a respeito. Envolve a evolução democrática, um caminho que pode ter tremores, mas não tem volta. Guardião do maravilhoso, do que se chama de eterno, Francisco terá a missão de ser pequeno, de ouvir aqueles que sofrem e procurar a alma humana dentro daqueles que parecem não possuir nenhuma e até ousam comungar com outras crenças. Isso permitirá a sua Igreja ter a grandeza possível no mundo sem encantos do século XXI.

Fotos: AP Photo/L’Osservatore Romano; Montagem sobre foto: Arabian Eye/Getty Images; Xinhua/Zuma Press/Glow Images; Shutterstock


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