Claudio Versiani

Memória: antigo mercado de cavalos, hoje concentra bares, restaurantes e salas de espetáculos.

Em certas horas da noite, no intervalo da madrugada quando o trânsito já acalmou e apenas uma centena de pessoas ainda caminha pelas calçadas, é possível ouvir “o som”. É uma espécie de zumbido, eletrônico – claro – que provoca inquietação. A impressão que se tem é a da aterrissagem de um disco voador monstruoso. É claro que nada tão espantoso está ocorrendo, mas não seria de estranhar. Afinal, qual ponto serviria mais apropriadamente para o desembarque de ETs do que a chamada “Encruzilhada do Mundo”? Times Square, em Manhattan, Nova York, é o palco mais absolutamente correto para um evento tão momentoso. E a quarta-feira 14 foi uma data ideal para um contato imediato do terceiro grau: Times Square fez 100 anos.

Como tudo que envolve este endereço famoso, há controvérsias sobre o momento exato deste centenário. O então prefeito George McClellan assinou o decreto que mudava o nome do lugar no dia 8 de abril de 1904. “Mas pouca gente ficou sabendo disso, na época. Foi apenas quando os funcionários da prefeitura trocaram as placas que diziam Long Acre Square, o nome antigo, para Times Square, que o novo batismo aconteceu. E isso ocorreu no dia 14 de abril de 1904. “Para os nova-iorquinos, a praça nasceu no dia 14”, diz Mark Gelman, um historiador da sociedade civil Times Square Alliance, que cuida daquelas vizinhanças.

Alfred Eisenstadt

Foi lá que o soldado deu o famoso beijo na enfermeira para comemorar o fim
da guerra

Cristais – Por via das dúvidas, o alcaide atual, Michael Bloomberg, resolveu estender as comemorações até o próximo réveillon, quando
o famoso globo de cristais e luzes descer – em ritmo de contagem regressiva para o novo ano – o poste do alto do antigo prédio que abrigou o jornal The New York Times. Nos próximos nove meses, shows gratuitos, desfiles, feiras, concursos e outras atrações vão preencher o pouco espaço que resta no lugar. “Estamos esperando cinco milhões de turistas a mais do que os 30 milhões que anualmente visitam Times Square”, diz o prefeito Bloomberg.

Foi o The New York Times quem deu nome à praça. Adolph Ochs, o proprietário-fundador do que é hoje, talvez, o diário mais respeitável dos Estados Unidos, mais uma vez, enxergou longe. Ele previu que aquela área usada como mercado de cavalos e carruagens se transformaria no epicentro da cidade. A garantia dessa aposta foi a decisão do prefeito McClellan de construir uma linha de metrô que ligasse Long Acre Square à Gran Central Station, que na época era uma estação ferroviária interestadual. “Meu bisavô achou que seria ali o ponto melhor situado para ancorar o prédio novo do The New York Times. E essa decisão foi tão importante para os planos de desenvolvimento da região que a prefeitura deu o nome de Times à praça”, diz o atual diretor do jornal Arthur Sulzberger Jr.

O primeiro dia de atividade da linha do metrô, o “shuttle”, atraiu nada menos que 350 mil pessoas, para uma viagem que demora 45 segundos. Em dezembro daquele ano, Ochs promoveu a primeira grande festa de fim de ano, fazendo com que uma bola iluminada descesse sobre o prédio do jornal. Hoje a sede do The New York Times ocupa um prédio a oeste da 46th Street – uma das ruas que cruzam Times Square. Mas o edifício original continua sendo o marco principal daquilo que na verdade não é bem uma praça, mas a confluência das avenidas Broadway e Sétima. Um traçado que lembra mais a silhueta de uma tesoura.

Reuters

Festa: no réveillon, milhares se reúnem para ver os fogos

  Por mais que os descendentes de Ochs se orgulhem de ter dado nome ao lugar, foram os artistas e empresários de teatro que descobriram o potencial daquelas freguesias. “Em 1895 o então Rei do Vaudeville, Oscar Hammerstein abriu o Olympia, entre as ruas 44 e 45, o primeiro teatro da região”, diz o historiador de Nova York Barry Lewis. “Bares, prostíbulos, restaurantes e outros teatros seguiram o exemplo. Estavam em busca do dinheiro que corria solto com o comércio de cavalos e carruagens. O que transformou aquela confluência, desde o início, num misto maníaco de centro do capitalismo exacerbado e teatro a céu aberto. Times Square não deveria ser chamada de ‘o coração de Nova York’, mas sim ‘o subconsciente’”, diz Lewis.

Luzes – E este comércio amalucado explica o zumbido de que se fala no começo desta história. Existem atualmente 50 megacartazes eletrônicos em Time Square. “A energia elétrica consumida por esses placares brilhantes daria para iluminar uma cidade de um milhão de habitantes”, disse a ISTOÉ Gary Johnston, da companhia de energia da cidade. O que parece o barulho de uma nave espacial é, na verdade, toda essa difusão de força. “Desde o começo do século as placas de anúncios publicitários formam a distinção mais marcante do cenário de Times Square. A própria proximidade do jornal The New York Times atraía os anúncios daqueles que também veiculavam nas páginas do diário. Nos anos 20 e 30, alguns cartazes fizeram história, como o dos cigarros Camel – no qual um fumante soltava anéis de fumaça pela boca. Ou da Coca-Cola, que era derramada num copo. Hoje essas peças parecem ingênuas perto do que se tem em Times Square. Telões com notícias instantâneas vindas de todo o mundo. Cotações de Bolsas de Valores de países que muitos dos transeuntes nem sequer sabem que existem.

Uma polegada quadrada de anúncio iluminado em Times Square não sai por menos do que US$ 5 mil por mês – e, em alguns pontos mais atraentes, esta quantia pode chegar a US$ 20 mil. Multiplique-se isso por três quilômetros quadrados de espaço horizontal e vertical compreendidos entre as ruas 42 e 47 – limites sul e norte da praça – e as avenidas Broadway e Sétima, que perfazem a largura da área. “O faturamento publicitário de outdoors (“billboards”, em inglês) em 2003 foi de
US$ 2 bilhões”, diz o analista publicitário Arnold Rosemberg.

Acotovelando-se neste universo ainda estão 40 salas de espetáculo, 250 corporações, 12.500 quartos de hotéis e mais centenas de lojas, restaurantes e bares. Pelo menos 30 mil nova-iorquinos vivem ou trabalham no local (calcula-se que o número de ratos fazendo o mesmo seja por volta de 210 mil). Talvez a
imagem mais marcante do lugar tenha sido capturada pelas lentes do fotógrafo Alfred Eisenstadt: um marinheiro beijando a boca de uma enfermeira. Os dois
não se conheciam, separaram-se depois daquele momento e nunca
mais se reencontraram.

Diversão – Relações sexuais rápidas – mesmo que seja um beijo – sempre foram características da região. Durante os anos 70 e 80, o lugar era ocupado por prostitutas, drogados, traficantes e vigaristas dos mais variados calibres. O prefeito Rudy Giuliani acabou com a zona nos anos 90. A área entrou num período que os críticos chamam de “disneyficação de Times Square” – com a limpeza das ruas e a proliferação de entretenimentos chamados “familiares”. Tempos de O rei Leão e “A bela e a fera”, peças responsáveis pela invasão de alienígenas ao local: as crianças.

Mas quem reparar bem verá que nem tudo mudou radicalmente. Aqueles que, como Anthony Bianco, autor do livro Ghosts of 42nd street: a history of America’s most infamous block” (Fantasmas da rua 42: história do quarteirão mais famigerado da América), forem durante a madrugada à 11ª Avenida – uma via paralela a Times Square – poderão ver que as prostitutas, cafetãos, drogados e traficantes apenas caminharam quatro quarteirões para o lado oeste. Lá, longe da luz eterna da praça e do zumbido sinistro dos cartazes, o passado sombrio de Times Square sobrevive