Hélcio Nagamine

Kadu descobriu a velha-guarda do samba nos discos do pai e frequenta com o primo Fernando as rodas de SP

O nome apareceu pela primeira vez em uma capa de disco em 1917, mesmo ano em que o termo jazz estreou na indústria fonográfica. A faixa chamava-se Pelo telefone e, registrada por Donga, abriu alas para a evolução do mais brasileiro dos gêneros musicais. Quase 90 anos depois, o mesmo samba consagrado por Sinhô, Ismael Silva, Noel Rosa e Adoniran Barbosa pode virar patrimônio cultural da humanidade. O ministro da Cultura, Gilberto Gil, e o presidente do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), Antônio Arantes, apresentaram a candidatura do samba ? música e dança ? para o título de ?Obra-prima do Patrimônio Oral e Intangível da Humanidade?, criado há três anos pela Unesco. ?A cada edição, são nomeados estilos musicais, pratos típicos, coreografias e festas populares do mundo todo. Cada país só pode apresentar uma candidatura por ano. Desta vez, escolhemos o samba?, explica o presidente do Iphan. Até setembro, será elaborado um dossiê para fundamentar a candidatura. ?No ano passado, foi feito o primeiro registro brasileiro, concedido à arte gráfica dos índios waiãpi, do Amapá. Este ano, optamos por uma expressão encontrada em todo o Brasil?, exalta Arantes.

Derivação da palavra ?semba?, que, segundo o folclorista Luís da Câmara Cascudo, designava o movimento da umbigada na língua nativa dos negros de Luanda, em Angola, o samba não pára de ganhar adeptos. ?Os jovens da zona sul do Rio de Janeiro introduziram o ritmo em seu repertório há alguns anos. Hoje, a garotada de classe média alta é predominante nas rodas de todo o Brasil?, avalia o carioca Ney Silva, 56 anos. Há 14 anos, Ney mudou-se para a capital paulista e, nas tardes de sábado, comanda o agito em dois bares da Vila Madalena. ?O samba é o tempero da feijoada servida nesses bares. Antes, a moda em São Paulo era misturar feijoada com pagode, um samba achatado, com menos variações e síncopes. A turma resolveu voltar à raiz?, arrisca.

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Nos fins de semana, o Carioca da
Gema, no Rio, recebe até 600
pessoas por noite

Divulgação Nos fins de semana, o Carioca da Gema, no Rio, recebe até 600 pessoas por noite Para Ney Silva, os louros desse resgate podem ser atribuídos a dois compositores que, a cada dia, fazem crescer sua legião de fãs: Paulinho da Viola e Zeca Pagodinho. Esses fãs foram buscar os ídolos dos seus ídolos e descobriram a velha guarda. ?Conheci Paulinho da Viola, João Nogueira e Paulo César Pinheiro nos discos do meu pai, há três anos?, lembra o estudante da sétima série Kadu Aguilera, de 13 anos. Hoje, o rapaz não escorrega nas letras enquanto cumpre, com o primo Fernando, 17 anos, o itinerário completo das rodas de São Paulo. Enquanto seus colegas escutam Iron Maiden, Kadu faz aulas de cavaquinho. ?O samba tem um balanço que nenhuma música tem?, justifica.

Multidão ? A opinião do rapaz é endossada pela multidão que lota casas paulistanas como São Cristóvão, Salve Simpatia e O Samba. O mais recente fenômeno de São Paulo leva no letreiro o título de uma parceria de Martinho da Vila e João Bosco. O Traço de União, conhecido como ?sambão do Largo da Batata?, nasceu de uma roda amadora existente há oito anos na cidade. Desde novembro, a casa leva para Pinheiros um público eclético. Na quinta-feira, virou balada para mauricinhos. Na sexta, imperam o choro e a gafieira. No sábado, palco e platéia se confundem e as canjas rolam soltas. ?A partir deste mês, traremos todas as sextas nomes de peso para contar a história do samba?, diz Jorge Almeida Ribeiro, que comanda a casa ao lado de Roberto Suplicy, Cidinha Zanon, João Paulo, Germano Fehr e Laerte Assunção. O primeiro espetáculo da série foi comandado pela veterana Dona Ivone Lara, que quase pôs a casa abaixo com seus 83 anos de samba nos pés. ?O momento é maravilhoso. Nunca vi tantos jovens na platéia. Vai ser muita emoção me tornar, a essa altura, intérprete de um patrimônio da humanidade?, diz ela.

Os sócios comemoram o recorde de até 900 pessoas por noite e a visita de personalidades como Aécio Neves e Drauzio Varella. Como na maioria das rodas, esbarram-se no Traço de União bambas da velha guarda e “neo-sambistas” egressos das baladas eletrônicas. “Se por um lado há o risco de essa superlotação afastar o sambista de raiz, é positivo que a juventude descolada descubra o samba. Quem sabe ele não ganhe mais espaço na mídia”, sugere a jornalista Fernanda Oening. Sambista da escola Camisa Verde e Branca, a moça de 24 anos frequenta o Traço de União há um ano, quando a roda era improvisada em um estacionamento no Itaim. Seu pique lhe rendeu a faixa de musa da casa, ostentada por ela todas as quintas e sábados.

Fotos: Hélcio Nagamine

Dona Ivone Lara agitou a moçada no Traço de União, em São Paulo

Boêmia – A apropriação do batuque pela elite começou nos anos 60, quando João do Vale e Zé Keti desceram o morro para cantar com Nara Leão, carioca da zona sul, no lendário show Opinião. As apresentações caíram nas graças da intelectualidade e abriram caminho para que o sambão chegasse às salas da classe média. Apenas no ano 2000 o gênero foi consagrado fora dos redutos intelectuais. “A salvação da lavoura foram as rodas de samba organizadas na Lapa, velho reduto da boêmia carioca. Foi um sopro de vida no coração dos sambistas”, conta o compositor Moacyr Luz, satisfeito com o resgate promovido no mesmo bairro que, nos anos 80, lançou o rock de Barão Vermelho, Blitz e Paralamas do Sucesso.

Hélcio Nagamine

Musa da casa, Fernanda é entusiasta do ritmo

Nas primeiras décadas do século XX, a Lapa era frequentada por Orlando Silva, Francisco Alves, Noel Rosa e Wilson Batista. Hoje, são pelo menos sete os estabelecimentos dedicados ao samba. Em maio, serão nove. “A Lapa atrai gente de vários níveis sociais em busca da confraternização que o ritmo proporciona”, explica Carolina Cesário Alvim, uma das proprietárias do Carioca da Gema, restaurante que há quatro anos faz ecoar o som da cuíca. Nos fins de semana, a casa recebe até 600 pessoas por noite. Sacrilégio, Casa da Mãe Joana, Dama da Noite e Centro Cultural Carioca são outros bares da moda. “Estreamos no bairro em 1994 e nem podíamos sonhar com essa multiplicação de casas”, recorda Luciene Menezes, do conjunto Dobrando a Esquina, que se apresenta toda quarta no Carioca da Gema.

Até na Bahia, onde o axé e o forró pareciam não baixar a guarda, o samba virou febre. As bandas Batifum e Samba Eu, Você e Sua Mãe viraram queridinhas do público. “Cansamos de ir à periferia em busca dos autênticos sambistas. Aprendemos a traduzir essa musicalidade para a linguagem dos mauricinhos e conseguimos tirar o samba dos guetos”, explica Tiago César, 26 anos, violonista do Samba Eu. A estratégia do grupo, lançada no verão, foi interpretar sucessos de axé em ritmo de samba. A idéia foi reciclada no projeto Arraial do Samba Eu. Todo domingo, mil pessoas vão à boate Fashion Club, na Pituba, para ouvir clássicos do forró em ritmo de samba. “Alternamos o forró-samba com o samba de raiz. Os jovens acabam descobrindo sambistas da velha-guarda, como os baianos Gal do Beco e Edil Pacheco”, diz o vocalista Thiago Gonçalves, 23 anos. Alguém consegue ficar parado?