André Dusek

“Quando o Brasil deixa de acreditar na utopia que constrói
sua identidade, a crise é mais que econômica. Há necessidade de se rediscutir o que é o Brasil”

O estudo da identidade cultural brasileira acaba de ganhar um reforço considerável. O antropólogo e economista George de Cerqueira Leite Zarur, carioca de 57 anos que está em Brasília há 44, retoma uma tradição teórica praticamente interrompida com a morte de Darcy Ribeiro, em 1997. No livro A utopia brasileira – povo e elite, publicado pela Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais (Flacso) em co-edição com a Abaré/Intertextos, Zarur apresenta a utopia do “país do futuro” como a identidade civilizatória que o Brasil construiu em cinco séculos e aponta um baita dilema para a nação, que só enxerga sua felicidade no tempo futuro. A estagnação econômica iniciada nos anos 80 e a ausência de avanços sociais relevantes tornam o brasileiro órfão da esperança no futuro e, golpeando a utopia nacional, põem em risco o próprio conceito de civilização brasileira. Junto com uma obra consistente e instigante, que demorou dez anos para ser concluída, Zarur oferece uma pergunta de difícil resposta: se não é mais o país do futuro, o que é o Brasil?

ISTOÉ – Qual é a utopia brasileira?
George Zarur –
É uma utopia que sempre existiu, mas está perdendo a força. É a idéia de uma civilização própria, mestiça e original, sem barreiras de classe, raça ou religião. Ela tem raízes messiânicas, no sebastianismo português. Dom Sebastião queria construir um novo império feliz. Depois, foi elaborada por intelectuais como Euclides da Cunha e Sílvio Romero. Euclides sustentava que o Brasil poderia existir como civilização original, como teriam demonstrado os sertanejos de Canudos com sua bravura, uma visão racial. Gilberto Freyre trouxe, três décadas depois, a noção de cultura para dentro do pensamento social brasileiro. Para ele, o Brasil já existia, em condições de contribuir para o mundo. Darcy Ribeiro foi um dos últimos pensadores a ver o Brasil como um todo, sem a tendência das ciências sociais de estudar a minúcia, a fragmentação.

ISTOÉ – Houve tentativas de trazer a utopia para a prática?
Zarur –
O Gilberto Freyre e o Caio Prado Júnior, marxista que estudou a história e a economia do Brasil, têm metodologias opostas, mas se aproximam na idéia da civilização própria. Tudo isso se transferiu dos livros para a ação política e até para a arquitetura. A construção de Brasília foi um marco da afirmação dessa utopia na prática. Os militares se apropriaram da idéia e projetaram uma potência nos trópicos. No lado popular, há toda uma conotação religiosa. Brasília é cercada de lugares e cidades místicas, como Alto Paraíso, que realizam a utopia de Dom Bosco, da capital do terceiro milênio. Temos os santos regionais, como Nossa Senhora Aparecida no Sudeste, Padre Cícero no Nordeste e Nossa Senhora Medianeira no Sul.

ISTOÉ – Mas a idéia de ser uma civilização diferente não é comum
a todos os países?
Zarur –
A idéia de futuro é importante no contraste com outros países. A identidade americana se manifesta no presente, no conceito do “destino manifesto”, o poder nos dias atuais. A européia se firma pela história, o passado. O México e o Peru também buscam suas identidades nas glórias das civilizações pré-colombianas. O fato de o Brasil ser o país do futuro oferece um contraste único.

ISTOÉ – Não é típico de países jovens, como a Austrália?
Zarur –
A idéia da Austrália não é algo tão novo. Os australianos são muito
mais ingleses do que nós somos portugueses. Nós nos enxergamos como
muito mais novos.

ISTOÉ – O que ameaça a utopia brasileira?
Zarur –
O Brasil deveria ter um desenvolvimento econômico e social continuado para manter acesa essa utopia como centro da nossa identidade civilizatória. O futuro teria de parecer mais perto para essa identidade continuar sendo construída. Até o começo dos anos 80, fomos o país que mais cresceu no mundo. No tempo do João Figueiredo, isso começou a acabar. A idéia de um avanço inexorável começou a morrer junto com essa identidade otimista de chegar lá no futuro. Quando acaba o crescimento e o Brasil deixa de acreditar na utopia que constrói sua identidade, a crise é muito mais que econômica. Há necessidade de se rediscutir o que é o Brasil.

ISTOÉ – E o que é o Brasil?
Zarur –
Imaginava-se o Brasil como uma grande comunidade, como se fosse uma enorme tribo, com o povão vinculado às oligarquias regionais, espécies de caciques. Hoje quebrou-se a idéia de uma comunidade partilhada por todos, desorganizaram-se as relações sociais de lealdade. A idéia da cordialidade nas relações sempre existiu, apesar da tradição de repressão aos movimentos populares. A quebra da idéia do pacto, da conciliação, dificulta a própria conciliação.

ISTOÉ – Não é positivo quebrar a tradição de pacto pela submissão da maioria?
Zarur –
Seria positivo se houvesse a substituição por um avanço democrático, mas trocamos uma velha elite de bacharéis e coronéis por uma nova elite fragmentada, de radialistas, estrelas da indústria do entretenimento, líderes evangélicos, sindicais, que representam segmentos, sem a visão do todo. Há representação direta de segmentos mais nítidos, mas vastos setores marginalizados ficaram sem nenhum vínculo concreto com o sistema político. A nova elite não tem noção do todo. A tradicional tratava o País como uma grande fazenda e o povo como escravo, mas o patrimônio era defendido de alguma maneira. É de se perguntar: o que vai acontecer quando se cria uma elite que só representa segmentos, faltando-lhe a noção do todo ou quando o que resta da elite tradicional resolve alienar o povo e a nação em troca de uma passagem de segunda classe para uma suposta elite globalizada?

ISTOÉ – A eleição de Lula, como representante das classes populares e de um segmento da economia industrializada, não dá uma sobrevida para a utopia brasileira do país do futuro?
Zarur –
Deveria representar, se o presidente desse demonstrações concretas de que realizará essa utopia. Como optou por manter as rotinas políticas tradicionais e o PT, pelo imobilismo, no poder, a idéia do país do futuro está sendo mais severamente ferida. O imobilismo é um símbolo exatamente contrário à idéia do futuro. Mas é uma idéia muito forte, que pode renascer mais à frente. Ela continua viva como um motor potencial da ação coletiva dos brasileiros, apesar de estar sendo golpeada como nunca.