Dono de um site com 1,4 milhão de visitas mensais. Campos exibe laptop com foto de Tosatti, o brasileiro que se destaca por aprimorar o sistema Linux

Computador, mouse, conexão, banda larga. Servidores e navegações pelo mundo virtual. Nos últimos anos, os brasileiros mergulharam fundo, por necessidade, impulso ou mero prazer, na tarefa de aprender o significado de conceitos do gênero. Efeito da onda criada pela obrigação de se preparar para entrar na era da internet e da informatização em massa. Agora, com a bênção oficial do governo, empresas públicas e privadas, Estados, municípios, universidades e entusiastas da tecnologia começam a transformar o Brasil num dos precursores de uma nova onda dentro desse universo fascinante e aparentemente interminável. É o movimento dos adeptos dos softwares livres. Ao contrário dos programas de empresas proprietárias, como os da Microsoft e Adobe, que possuem os códigos de comando fechados para modificações dos clientes, os softwares livres permitem que qualquer um faça uma cópia, use-a como quiser e a distribua, na forma original ou com modificações, sem pagar royalties ou licenças. Eles já fazem parte da rotina de instituições como as universidades de São Paulo (USP), Brasília (UnB), Rio de Janeiro (UFRJ) e do Tribunal de Contas da União (TCU). Lá fora, mostram resultado na Bolsa de Valores de Nova York, na gigante IBM, nos servidores que alimentam os 30 mil terminais do Google, o maior site de busca do mundo, e no sistema de defesa virtual da Casa Branca. No Brasil, até a Receita Federal colocou uma versão livre do programa para a declaração de imposto de renda pela internet.

Fotos: José Leomar

Criador de rede operada com software livre em Solonópole, o prefeito Odorino (no alto, à esq.) com pescadores beneficiados pelo projeto e o agricultor Silva (abaixo)

Software livre e gratuito não são a mesma coisa. Muitos programas oferecidos de graça têm o código fechado. Por outro lado, empresas que trabalham com software livre não cobram propriedade intelectual (licenças ou royalties), como os proprietários, mas os serviços de treinamento, assistência técnica e instalação são, em alguns casos, remunerados. Há milhares de programas livres no mundo, mas nada representa melhor o novo movimento do que o simpático pinguim preto e amarelo do Linux, símbolo do sistema operacional criado e disponibilizado em 1991 pelo matemático finlandês Linus Torvalds, hoje com 35 anos. Desde então, Torvalds e equipe trabalham simultaneamente em duas versões do programa, com sugestões de mais de 100 mil linuxmaníacos espalhados pelo mundo. Os serviços da versão de desenvolvimento são liderados pelo finlandês. A outra, chamada de estável, colocada à disposição dos usuários, é aprimorada atualmente por um grupo liderado pelo brasileiro Marcelo Tosatti, 21 anos, um paranaense de cabelos longos e desgrenhados que arrumou seu primeiro emprego de programador, num provedor de internet de Curitiba, aos 13. “O software livre, além de eficiente, é também uma plataforma da pluralidade intelectual. Atrás de um computador, mandando sugestões, pode estar um menino precoce, um técnico de uma grande empresa ou um acadêmico de respeito”, filosofa o programador. Quando atinge o equilíbrio, a versão de Torvalds é lançada ao consumo. Em seguida, Tosatti passa a trabalhar em outra e começa tudo de novo. No Brasil, a página sobre software livre mais procurada, com 1,4 milhão de visitas mensais, é a www.br-linux.org, do analista de sistemas Augusto Campos. “Trabalho para mostrar que o software livre é vantajoso em várias situações e, na maioria das vezes, consigo provar isso”, diz Campos. “Penso, porém, que as pessoas devem usar o aplicativo que resolva seus problemas, seja ele qual for.”

Fotos: João Primo

Disposta a adotar softwares não proprietários, a Prefeitura de
Joinville está treinando servidores
até em ônibus, transformados em sala de aula

Sem pirataria – No mundo livre da informática, experiências curiosas, elogiáveis e até mesmo comoventes começam a surgir. Encravada no sertão central do Ceará, a pequena Solonópole (www.solonopole.ce.gov.br) está na vanguarda desse movimento capitaneado pela União. Essa posição privilegiada de Solonópole parece tão improvável quanto o transbordamento de água de seus açudes – o que está acontecendo neste verão, por causa das fortes chuvas. Historicamente acostumada a sofrer com a seca, a cidade nunca teve nenhuma indústria ou grande empresa. A maioria de seus 17 mil habitantes vive da lavoura e da pecuária de subsistência. Lá não tem nem sinal de celular, mas os moradores contam com uma rede de comunicação eficiente e gratuita, sem fio, operada com software livre e transmitida por ondas de rádio. Ela conecta a administração a pontos distantes como a comunidade do açude Boqueirão, de cerca de 100 pescadores. Um deles, Francisco Orismar da Silva, 34 anos, conta que, antes da internet, ninguém tinha documento ou plano para o futuro. E muito menos e-mail. “A gente vivia tudo esquecido”, diz. “Agora estamos usando isso até na hora de correr atrás de um salário (seguro-desemprego) para compensar a piracema”, completa, referindo-se ao período de desova, no qual a pesca de rede é proibida. O responsável por essa metamorfose é o prefeito Odorino Filho (PSDB), empresário da área de informática que fez carreira em São Paulo e Fortaleza (CE). “É tudo muito simples, barato e sem pirataria”, resume. “Nesse sistema, até computador obsoleto tem grande utilidade”, completa, esclarecendo que a máquina ultrapassada, sem grandes poderes de processamento, serve-se dos recursos de um computador central, através do sistema Linux. Entusiasta da rede de comunicação, o agricultor Joaquim Rocildo da Silva, 60 anos, lembra que, no início, poucos entendiam o projeto do prefeito. “Hoje, só não usa quem não quer”, diz. “A gente não precisa mais ir a Senador Pompeu (cidade a 54 quilômetros de distância) para resolver os problemas.”

O incentivo maior para transformações como as provocadas pelo prefeito Odorino vem do Planalto, que, inclusive, lançou um site de apoio ao movimento (www.softwarelivre.gov.br), vinculado à Casa Civil. De acordo com o Ministério da Ciência e Tecnologia, o Brasil gastou no ano passado US$ 1,1 bilhão, ou cerca de R$ 3,1 bilhões no pagamento de licenças e royalties ao Exterior pelo uso de programas. A União, os Estados e os municípios pagaram cerca de 40% dessa fatura. Empresas privadas e clientes particulares, os outros 60%. Tendo em conta que a metade dos programas usados fora do setor público é pirata, pode-se concluir com facilidade que o mercado ainda tem muito o que evoluir. “O Brasil vê o software livre como emblemático da sociedade da informação e de uma nova cultura de solidariedade e de compartilhamento, um instrumento para garantir o acesso e domínio, por todos, dessa linguagem universal”, declarou o embaixador brasileiro Samuel Pinheiro Guimarães Neto, na condição de ministro interino das Relações Exteriores, na Cúpula Mundial sobre a Sociedade da Informação, organizada em dezembro último, na Suíça. Foi o primeiro pronunciamento oficial de um país a favor do software livre em uma reunião de cúpula internacional.

Depois disso, a Casa Civil enviou uma circular a todos os ministérios e órgãos públicos sugerindo que se avaliasse “a conveniência de utilização preferencial do software livre” nas novas compras de computadores. “Usar o software livre é como comprar um bolo e receber junto a receita. Além de poder fazer outro bolo igual, o consumidor pode alterar a receita de acordo com sua conveniência”, explica o sociólogo Sérgio Amadeu da Silveira, presidente do Instituto Nacional de Tecnologia (ITI), criado pelo governo Luiz Inácio Lula da Silva para incentivar a implantação desses sistemas. “O software livre possibilita ampliar a inteligência coletiva e a capacidade tecnológica locais. Estamos certos das vantagens e queremos convencer a sociedade”, completa.

Os executivos da Microsoft, líder de vendas de software proprietário para governos, empresas e pessoas físicas no País e no mundo, pensam diferente. Pelos dados da empresa, suas vendas para todo o setor público brasileiro representam apenas 6% de seu faturamento anual de R$ 945 milhões por aqui. Não é muito, mas o que preocupa são os ecos das ações e do discurso do governo no outro lado do campo, onde fica o mercado privado. “A concorrência não é novidade. Nós a enfrentamos há mais de dez anos com bons resultados”, afirma o gerente de estratégia da Microsoft Brasil, Eduardo Campos de Oliveira. “Nossas pesquisas mostram que os custos de migração e de manutenção de plataformas livres acabam sendo mais altos. Queremos disputas livres, e não as marcadas por leis e medidas de direcionamento, como as que começamos a ver”, completa o diretor de governo da multinacional, Lorenzo Madrid. Amadeu da Silveira discorda. “Não são leis de preferência, mas de incentivo nos casos em que o livre resolve o problema. A maioria dos estudos de custo independentes nos dá respaldo”, diz. Semanas atrás, ele visitou Solonópole e sugeriu a incorporação de um sistema de voz à rede que permitirá atrair empresas de telemarketing para a região, usando mão-de-obra local. O prefeito Odorino adorou a idéia. “Aqui, quem ganha um salário mínimo é rei”, entusiasma-se.

 Ricardo Giraldez

Programador autodidata, Cléber
se destacou tanto em telecentro paulistano que atraiu a atenção
de Stallman, um dos gurus do mundo livre

Inclusão digital – No Sul e no Sudeste do País o entusiasmo não é menor. Porto Alegre foi uma das pioneiras no trabalho em administrar rodando sobre plataforma livre. Sua tradição na área é tamanha que, no final de maio, abrigará o 5º Fórum Internacional Software Livre. O exemplo da capital gaúcha está sendo seguido nos Estados vizinhos. Amparada por uma lei estadual de incentivo, a Assembléia Legislativa de Santa Catarina migrou para o Linux. “Além da economia com royalties, a mudança permitiu o uso de máquinas que seriam descartadas”, explica Jean Carlos Sestrem, diretor de informática da casa. A Prefeitura de Joinville, a maior cidade de Santa Catarina, acaba de iniciar a caminhada para a implantação dos softwares livres em todos os terminais e sistemas do município. Para isso, foram criativos: imprimiram apostilas, recrutaram técnicos, lançaram textos na internet e transformaram ônibus em salas de aula para treinar servidores em vários pontos da cidade. “Nossos estudos mostraram que o software livre pode gerar uma economia de pelo menos R$ 6 milhões em licenças nos próximos dois anos”, contabiliza o chefe da divisão de informática do município, Marcos Lombardi. Perto de Joinville, em Guaramirim, os educadores da nova Faculdade Metropolitana (Fameg), com 1,8 mil alunos e mais de 160 terminais, usam plataforma livre desde a inauguração, há três anos. “É melhor educar nossos alunos assim”, afirma seguro o responsável pelo setor de informática, professor David Jourdain. “A mensalidade, paga em dia, custa R$ 298. Com software proprietário, seria pelo menos 35% mais cara”, calcula o superintendente-geral, Balduíno Raulino.

O selo do software livre é vital também para programas de inclusão digital como o dos telecentros da Prefeitura de São Paulo. São 105 salas com mais de 2,1 mil terminais ligados a servidores com plataforma livre. Nesses espaços, montados em regiões pobres, há aulas de informática e internet a custo zero. Um deles fica na Cidade Tiradentes, um dos lugares mais violentos do País, distante 40 quilômetros do centro da cidade. Antes da inauguração, a praça onde está a sala era território controlado pelo narcotráfico. Hoje, além do serviço prestado à comunidade, o telecentro revela talentos. Há dois anos, quando visitou São Paulo, o americano Richard Stallman, um dos gurus do movimento software livre, fez questão de conhecer, no bairro, Cléber de Jesus Santos, atualmente com 19 anos. Programador autodidata, filho de uma faxineira e de um padeiro desempregado, o garoto na época havia desenvolvido dois jogos. Num deles, um pinguim precisa pilotar um disco voador ao mesmo tempo que se desvia de mísseis. “Vá em frente, você tem futuro”, incentivou Stallman. Dono de sorriso contagiante, Cléber tenta seguir o conselho. Hoje funcionário do mesmo telecentro no qual se encantou com o brilho do mundo virtual, ganha R$ 500 mensais enquanto luta por um patrocínio para manter no ar o site que desenvolveu, o Conexão Cidade Tiradentes. “Com esses programas, ninguém precisa apelar para meios errados, como roubar e piratear”, afirma.

Hélcio Nagamine

Vial, Ventura (ao centro) e Pinho, pilotos do vôo digital da Varig, que tem 54 sites sobre plataforma livre e adaptou o código-fonte de 60% de seus programas

Supercomputador – Essa liberdade de opção conquistou instituições tão diferentes como a Petrobras, a Itautec, a Pastoral da Criança, a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) e a Varig. Recentemente, a Petrobras substituiu o trabalho de um supercomputador que precisaria comprar por US$ 8 milhões, com sistema Windows, por um cluster (rede de computadores ligados para alto processamento) operado com plataforma livre e desenvolvido pela Itautec. O sistema saiu por US$ 200 mil. A Pastoral da Criança, em parceria com a Universidade Federal do Paraná, desenvolveu um CD, a ser atualizado a cada três meses, para distribuição em 350 pontos. “A utilização do Linux veio ao encontro das necessidades da pastoral, por ser mais simples e barato, como todas as ações da entidade”, empolga-se a coordenadora, Zilda Arns. “Não teríamos recurso para pagar as licenças”, completa o assessor de informática da pastoral, Renato Kajita.

Por iniciativa da Embrapa, o software livre começa a ocupar espaço nos computadores de propriedades rurais. Acaba de entrar em operação a Rede AgroLivre (

www.agrolivre.gov.br

), que coloca à disposição do produtor rural programas de software livre desenvolvidos pela empresa, entre eles o Lactus, de gerenciamento do gado leiteiro. O site da Varig, utilizado por passageiros e pilotos, é outro caso. O uso desse tipo de programa começou em 2001, quando o número de usuários de e-mail da empresa passou de três mil para seis mil contas, o que, à época, representaria uma despesa de US$ 240 mil só no pagamento de licenças. “Hoje, essas contas somam 19 mil”, contabiliza Sílvio

Vial, gerente de tecnologia de informação da empresa. “Temos, no total, 54 sites

com plataforma livre”, completa Jorge Ventura, o gerente operacional. Responsável direto pelos sistemas webs, Mário Pinho conta que 60% dos programas utilizados pelo grupo têm o código-fonte adaptado às nossas necessidades. “Ganhamos também em eficiência e em segurança”, comenta Pinho. Todas essas experiências mostram que, no fundo, a busca de liberdade é sempre positiva. De ação, de pensamento e, o que é melhor, de opção