Stefan Zaklin/FE

Fogo cerrado: soldado americano em meio à fuzilaria provocada por xiitas, que tomaram várias cidades. Os combates provocaram mais de 150 mortes em quatro dias, 30 delas entre os americanos

Na terça-feira 6, o senador democrata Edward “Ted” Kennedy disse que o Iraque se transformou no Vietnã de George W. Bush. A comparação é equivocada: o Iraque de abril de 2004 está cada vez mais parecido com os territórios palestinos ocupados por Israel. No mesmo dia em que o senador de Massachusetts evocava a imagem da guerra que seu irmão, ex-presidente John F. Kennedy, ajudou a fomentar, centenas de fuzileiros navais americanos e soldados iraquianos cercavam a cidade de Fallujá, a 60 quilômetros de Bagdá. Tratava-se de expedição punitiva às mortes, no último dia 31, de quatro mercenários que trabalhavam para empresas dos Estados Unidos. Nesta ação, o modus operandi parece ter saído diretamente das cartilhas militares israelenses, especialmente no capítulo da demolição de casas de insurgentes. Oito residências viraram pó. Paralelamente, uma poderosa intifada xiita era executada, ao Sul e na capital do país, com os mesmos refinamentos táticos que se vêem nas ruas da Cisjordânia e da Faixa de Gaza. A Palestina expandiu-se até as margens dos rios Tigre e Eufrates. Os americanos, agora, lutam em duas frentes: contra os insurgentes sunitas e os extremistas xiitas.

A incursão a Fallujá progrediu, apenas esporadicamente, ao centro da cidade de população sunita e reduto maior dos insurgentes fiéis ao deposto ditador Saddam Hussein. Falta ainda o traquejo israelense para que os marines possam invadir e ocupar o lugar. Somente neste estágio inicial da operação, seis americanos e 100 soldados iraquianos morreram sob fogo de forte resistência. “E o pior ainda está por vir. As indicações são de que teremos batalhas quarteirão-a-quarteirão, casa-a-casa”, disse a ISTOÉ o general da reserva Barry McCaffrey, ex-chefe do Comando Sul dos Estados Unidos. Na terça-feira 6, no povoado de Ramadi, na mesma região, morreram outros 12 marines, depois de um ataque rebelde à sua base, o que elevou para 30 o número de americanos mortos no Iraque desde o domingo 4. No dia seguinte, os americanos responderam com três mísseis disparados de helicóptero contra a mesquita de Abdul-Aziz al-Samarrai, em Fallujá, matando nada menos que 40 fiéis, inclusive mulheres e crianças. O comando americano garante que ali estava localizado um dos QGs da insurgência. No total, cerca de 150 pessoas já morreram em conflitos neste início de mês.

Maurizio Gambarini/EFE / Stefan Zaklin/EFE / Stefan Zaklin/EFE

Rastilho de pólvora: crianças se armam, militantes xiitas adeptos de Al-Sadr se agitam e mortes de iraquianos em confrontos aumentam, ameaçando a entrega do poder aos iraquianos

Nos últimos dias, multidões xiitas, obedecendo ao comando do jovem líder radical Muqtada al-Sadr, tomaram as ruas de quatro cidades, inclusive Bagdá. Nesta capital, rumores de que um tanque americano se aproximava do mercado de Khadamiya fizeram surgir uma turba xiita fortemente armada. Em pouco tempo, o bazar transformou-se em fortificação com centenas de homens e até crianças armadas de fuzis, metralhadoras e lançadores de granada. Testemunhas no local contabilizaram esta força em mais de mil pessoas. “Se esta conta for correta, vão por água abaixo as estimativas do comando americano de que Al-Sadr reúne tropa de três mil homens. Pelo visto, na insurreição que já engolfou seis cidades xiitas, o poderio do inimigo é muito superior a este número. E o pior é que, como ficou provado no mercado de Khadamiya, a população está dando total apoio. O que não acontecia, nestes níveis, com os insurgentes sunitas”, diz o general McCaffrey.

O estopim da explosão xiita teria sido o fechamento de um jornal radical, porta-voz do clérigo Al-Sadr. “Trata-se, óbvio, de uma confusa lição de democracia que nós demos aos iraquianos”, diz o ex-candidato à indicação democrata à Presidência Howard Dean. Às dificuldades de exportação da Primeira Emenda da Constituição americana – aquela da liberdade de expressão – para o Iraque, soma-se o fato de Al-Sadr ser adepto de um regime teocrata islâmico puro e duro. E essa disposição autoritária deu origem à formação de milícias de jovens saídos dos seminários religiosos fundamentalistas. Tropa formada rapidamente por Al-Sadr, logo que as forças americanas entraram no Iraque. É o chamado Exército Al-Mahdi, que ocupou pontos estratégicos em Najaf, Kufa, Kur, Karbala, Basra, Nassíria e Bagdá – onde a favela que era conhecida como “Cidade Saddam” foi rebatizada “Cidade Sadr”, em homenagem ao clérigo. Foram membros destas tropas que assassinaram a facadas, tiros e bombas o aiatolá Sayyed Abdul Majid al-Khoei, um mulá moderado rival, na saída de uma mesquita em Najaf, no mesmo dia em que as tropas americanas capturaram Bagdá, em abril de 2003. Foram precisos 12 meses para que a Autoridade Civil da Coalizão finalmente emitisse mandado de prisão contra Al-Sadr, em conexão com este crime.

Tornado fugitivo da Justiça, o líder xiita já demonstra que não será presa fácil. De imediato, transformou em fortaleza a mesquita de cúpula dourada Iman Ali, em Najaf, um dos locais mais sagrados para os xiitas. Centenas de milicianos do Al-Mahdi guardavam o local, onde supostamente Al-Sadr estaria entrincheirado. “Aposto US$ 100 como Al-Sadr não está naquele lugar. O território dele é em Kufa e sua popularidade entre a população de Najaf – que é mais moderada – é fraca”, diz uma fonte de ISTOÉ no Pentágono. De todo modo, o administrador civil americano no Iraque, Paul Bremmer, foi à tevê prometer para breve a captura do clérigo. Enquanto isso não ocorre, o próprio Bremmer e o enviado especial da Organização das Nações Unidas ao país, Lakhdar Brahimi, encontravam-se às pressas com o maior líder xiita local, grão-aiatolá Ali al-Sistani. Ele é justamente o homem que exigiu eleições diretas-já para a nação e está longe de ser um moderado. Mas com a intifada correndo solta nas ruas, Al-Sistani pode perceber que até mesmo seus planos de tomar o poder através dos votos da maioria xiita podem ser levados na correnteza do sangue que vai rolar.

“O grão-aiatolá Ali al-Sistani é homem sério e deseja o melhor para o país. Uma revolta xiita fora de controle, ou controlada por Muqtada al-Sadr, que é um clérigo menor em busca de aumentar seu poder, é com certeza uma receita para o desastre de uma guerra civil. Acho também que a data prazo, de 30 de junho, para a entrega do poder civil a um conselho provisório iraquiano deve ser repensada pelo governo dos Estados Unidos. Também neste caso, os riscos de guerra civil entre as múltiplas etnias iraquianas são enormes”, disse a ISTOÉ Sergey Lavrov, representante da federação russa no Conselho de Segurança da ONU.