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Encontrei Hugo Chávez pela primeira vez em Caracas, num domingo de 1999. Era um dia de glória para o presidente eleito meses antes, com 56% dos votos. Inaugurando uma estratégia de suicídio eleitoral que foi repetida muitas vezes nos 14 anos seguintes, seus adversários haviam boicotado um referendo sobre a convocação de uma Assembleia Constituinte. Os votos ainda não haviam sido apurados, mas já era possível enxergar uma vitória de Chávez por larga margem, fenômeno que, como os boicotes adversários, também seria quase uma rotina de seus 14 anos de governo.

Chávez se encontrava em seu gabinete no Palácio Miraflores, um aposento que traduzia uma atividade política febril e um tanto bagunçada. Eram pastas empilhadas, livros abertos, um aparelho de tevê ligado e, no meio de tudo isso, um chefe de Estado que a maioria dos observadores descrevia como um fanfarrão inofensivo, prédestinado a ser despachado para casa no primeiro solavanco do barril de petróleo.

Na prática, era difícil enxergar Chávez em roupas civis. A imagem do coronel que, sete anos antes, após um levante popular conhecido como Caracazo, tentara derrubar um presidente constitucional, numa quartelada que tinha vários traços semelhantes à Intentona Comunista de 1935, levada a cabo por tenentes orientados por Luiz Carlos Prestes, ainda era muito forte. Numa sala de espera do palácio, uma auxiliar do presidente me ofereceu um brinde para levar como lembrança – uma estatueta de Hugo Chávez em farda de coronel do Exército, com a boina rubra de paraquedista, igual àquela que foi usada em seu funeral, 14 anos depois. Em 1992, ao aceitar a rendição após o golpe derrotado, Chávez anunciou que baixava as armas “por enquanto.” Em 1999, parecia convencido de que havia recuperado seu lugar na história como o sujeito que volta para casa após uma viagem mais demorada.

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Caloroso, sorrindo com facilidade, Chávez falava de projetos para mudar a Venezuela. Em vez de um país com três poderes – Executivo, Legislativo e Judiciário –, queria um Estado com mais dois, o poder Cidadão e o Eleitoral, arquitetura institucional cuja complexidade tinha uma dificuldade imensa de explicar e ninguém, nunca, foi capaz de entender com clareza. Sua meta mais palpável era uma tremenda vontade de unir os povos latino-americanos, do Caribe à Patagônia, numa posição de antagonismo em relação aos Estados Unidos. Sugerindo que o antiamericanismo era uma consequência natural, quase biológica, dos povos nascidos abaixo do Rio Grande, em determinado momento Chávez passou a mão nos cabelos, negros e duros, quase crespos, e, prendendo um tufo entre os dedos, sublinhou: “Essa é a diferença. Da ponta da América do Sul até o Caribe, nós somos assim”, disse. “Nestes cabelos está toda nossa história.”

Naquele momento, esse discurso parecia delírio num continente em outra etapa da história. Os brasileiros haviam acabado de assistir à terceira derrota eleitoral de Luiz Inácio Lula da Silva, batido por Fernando Henrique Cardoso ainda no primeiro turno. Na Bolívia, fora dos movimentos sociais de ultraesquerda, ninguém ouvira falar de um líder de plantadores de coca chamado Evo Morales. No Equador, o economista Rafael Correa era um ilustre desconhecido.

Chávez tinha a conversa daquelas pessoas que acreditam ter o dom de enxergar as mudanças históricas. Fazia ironias, adorava anedotas, mas no fundo era tremendamente sério, atitude que, após o colapso de tantas ideologias, chegava a espantar. Não fazia teatro, ainda que, às vezes, houvesse mais convicção do que consistência.

 

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No início de 2001, Chávez foi a Montreal com uma missão definida – tentar implodir a Alca, aquele projeto de criar uma zona de livre comércio em todo o continente, patrocinado pelos Estados Unidos, com apoio moderado mas real de Brasília. Depois de criar um ambiente de suspense, espalhando o rumor de que nem estaria presente, Chávez apareceu em Montreal. Às vésperas de pronunciar um discurso dramático em que anunciou a saída da Alca, quando fez apelos elogiosos ao “mestre Fernando Henrique Cardoso” para que agisse da mesma forma, usou o saguão do hotel em que se hospedara para falar demoradamente com jornalistas. Passavam garçons com bandejas de uísque, diplomatas carregando pastas de couro, senhoritas que sempre aparecem nessas horas – e o presidente da Venezuela falava, falava, falava. Enquanto chefes de Estado de PIB muito mais relevante não conseguem disfarçar a tensão numa hora como esaa, Chávez estava descontraído. Terno justo, mão no bolso, sem perder a chance de contar uma anedota, parecia um veterano jogador de futebol pronto para entrar em campo para disputar uma partida – apenas mais uma. Suas palavras, tão repetidas, pareciam sair de uma gravação monótona: anti-EUA, a favor dos pobres e dos excluídos. Chávez foi embora da Alca sem arrastar ninguém, mas, três anos depois, por falta de interesse real dos principais interlocutores, a iniciativa foi arquivada sem lamúrias de ninguém.

Na juventude, Chávez integrou uma organização esquerdista inspirada na guerrilha de Fidel Castro que pregava a luta armada como melhor caminho para derrubar o sistema capitalista. Usou codinome, reunia-se em células clandestinas e conspirava contra os superiores, preparando o dia em que iria derrubar a antiga ordem. Após a chegada ao Palácio Miraflores, manteve a devoção por Fidel Castro, com quem mantinha uma relação subordinada, como aluno e mestre. Era capaz de mudar de opinião, durante um encontro internacional, após um telefonema de Fidel – e nem sempre fazia questão de esconder isso de seus interlocutores.

Nem coronel nem presidente, Chávez era um militante, essa criatura política nascida nas grandes lutas sociais do século XIX e começo do século XX. Governava cumprindo tarefas, com frieza e cuidado. Mas prestava questão nas coisas práticas. Seu antiamericanismo profundo nunca impediu que fizesse dos Estados Unidos seu principal parceiro comercial. Ali se encontravam os dólares que ajudariam o PIB do país a crescer quatro vezes em 14 anos, permitindo que o petróleo fizesse jorrar US$ 6 bilhões em programas sociais, elevando apenas os gastos com saúde pública em cinco vezes, em seis anos. Chávez deu a sorte de enfrentar um período de crescimento da economia mundial, que fez o barril de petróleo saltar de US$ 10 na posse para quase US$ 100 nos últimos anos. Mas também fez sua parte. Trabalhou seu antiamericanismo e estimulou a reconstruir a Opep, dos países produtores de petróleo, o que ajudou a manter os preços num patamar mais conveniente.

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Na Venezuela, a cultura política permite que líderes da oposição declamem parágrafos inteiros de Paulo Coelho nos comícios, numa prova de que as ideias têm um curso que os estrangeiros nem sempre têm facilidade para compreender. Nesse ambiente, Chávez não conseguiu construir um sistema coerente de ideias, capaz de sobreviver a sua morte. Também não mostrou o empenho necessário para criar novas fontes de riqueza para a economia venezuelana. Recebeu um petro-país e entregou um petro-país, ainda que muito mais rico. Mas a multidão que chora sua morte mostra que Hugo Chávez foi capaz de vislumbrar a história dos anos seguintes quando falou das pessoas de cabelos negros, duros, quase crespos.

Fotos: divulgação