André Dusek

Escândalo: o doleiro Kammoun confirmou que trocava os dólares

Polícia Federal abriu investigação sobre fundos secretos clandestinos dos EUA para a própria PF. Concluiu que dólares em espécie são entregues em guichês da repartição, o que é ilegal. O resultado da sindicância 003/2003 – concluída em 5 de maio de 2003 – é explosivo. São 46 páginas com 14 depoimentos reveladores feitos por tiras da elite e pelo doleiro George Fouad Kammoun. Ele diz que um setor da PF, a Coordenação de Operações de Inteligência Especializada (Coie), recebe milhares de dólares em malas da embaixada americana e que, por muito tempo, o dinheiro foi trocado em casas de câmbio da capital. A investigação foi aberta após a denúncia de ISTOÉ, na reportagem “A CIA continua no Brasil”, sobre a atuação clandestina da inteligência americana em solo brasileiro, publicada em novembro de 2002. O delegado Rômulo Barredo, escalado para apurar o escândalo, pediu um inquérito para responsabilizar os culpados. Ele viu crimes contra o sistema financeiro e a Lei de Licitações: “Um setor da PF se acha na mais completa insustentabilidade jurídica, o que ocasionaria a ilegalidade dos atos ali praticados”, diz o relatório final. A sugestão do inquérito levada à “consideração superior” está embolorando há um ano nas gavetas da PF. Confrontado com os papéis da sindicância, à qual ISTOÉ teve acesso, Barredo esbravejou: “Como você conseguiu isso?”

Quem esclareceu a investigação foi a servidora Maria Celina Martins (da contabilidade da Coie). Ela explicou que o sistema de pagamento é feito de acordo com a despesa. “A média de ressarcimento mensal é de R$ 160 a R$ 200 mil com recibos e notas fiscais. Feito o balancete, uma pessoa da embaixada vai à Coie e retira a prestação de contas. Já foram realizadas três ou quatro auditorias pelo governo americano”, revelou. O zelo se explica. Pelos números apresentados, a bolada gira entre R$ 2 milhões e R$ 2,4 milhões por ano, um total de R$ 19 milhões nos últimos oito anos. Celina contou que a operação é feita com grana viva, ora dólares, ora reais.

“O dinheiro do ressarcimento das despesas é sempre trazido ao setor em espécie, sendo guardado no cofre e distribuído conforme a necessidade. Antes de o delegado Rosseti (Disney Rosseti, atual chefe da Coie) assumir a chefia, a verba do setor era recebida da embaixada em dólares americanos (em espécie), os quais eram depositados em conta corrente do delegado Getúlio Bezerra (atual chefe da Diretoria de Combate ao Crime Organizado).” Celina contou que a maior parte do dinheiro ficava mesmo invisível, sem passar por nenhum canal oficial: “Esse trâmite do dinheiro em conta do Getúlio durou pouco mais de um ano. Antes disso, e desde que passei a integrar o setor (em 1996), os dólares recebidos da embaixada americana eram trocados com um doleiro, que era da confiança da embaixada e do Centro de Dados Operacionais (CDO), a antiga Coie.”

Escolta – O doleiro é Georges Kammoun, que confirmou: “Desde 1998 era responsável pela troca de dólares. Quem estabeleceu contato comigo foi o
delegado Edson Rezende.” Kammoun diz que havia escolta oficial para fazer o câmbio no paralelo, acrescentando que o esquema das malas funcionou até
2000. Revelou também que já entregou dinheiro para as funcionárias Celina ou
Marta na tesouraria do CDO. “Não havia valores fixos, variavam de US$ 6 mil a
US$ 170 mil por vez”, relembrou no depoimento. Celina conta que nem a direção da PF ficava sabendo: “Nunca houve um encaminhamento de qualquer prestação de contas ao DPF.” “Tal modalidade de entrega (em dólares) fere a qualquer padrão legal/formal capaz de dar um mínimo de credibilidade ao processo”, reprova o delegado Barredo no relatório.

Dida Sampaio/AE

Duas contas: governo dos EUA depositava para o delegado Bezerra

O chefe atual da Coie, Disney Rosseti, depôs e disse acreditar que o departamento continua frequentado por agentes camuflados da CIA: “Em média duas vezes por semana comparecem à Coie. São sempre oficiais de ligação. Não tenho como afirmar categoricamente se algum deles tem vinculação com a CIA, embora acredite que pertençam à agência americana.” A diretora de inteligência policial (DIP), Mariam Ibrahim, não fala da CIA, mas escancara quem banca tudo até hoje: “Toda verba utilizada nas atividades da Coie é fornecida pelo governo dos Estados Unidos através da embaixada em Brasília.” Mariam também confirma que outro setor da PF, comandado pelo delegado Getúlio Bezerra, recebe dos americanos, mas “não sabe explicar por que os EUA fornecem verbas para dois setores distintos da PF”. Os dois combatem o narcotráfico.

Até aqui, quando surgiam denúncias de dinheiro ilegal na PF, a direção argumentava que o dreno de verdinhas era amparado por um acordo entre Brasil e EUA e que, para receber a grana, só havia a conta 284002-2 em nome do delegado Getúlio Bezerra, no Banco do Brasil. Vê-se agora que há outro canal, e clandestino. Os dólares da Coie – que não é mencionada no tal acordo – são fornecidos em malas e, por período curto, foram esquentados na conta do BB. O próprio Bezerra confirmou a ilegalidade do dinheiro da Coie.“O programa de combate ao narcotráfico gerenciado pela Coie não está nem esteve mencionado nos memorandos de entendimento.” O delegado afirma que a passagem do dinheiro por sua conta foi determinada pelo então diretor da PF, Agílio Monteiro.

Bezerra não recebe dos EUA apenas na conta do BB. A base de dados do Banco Central das contas CC5 (não-residentes) mostra que entre março e setembro de 1999, já como titular da conta 284002-2 do BB – segundo a PF a única para depósitos feitos pelos EUA, Bezerra recebeu através da conta 200323 do Unibanco. Foram sete depósitos que somaram R$ 244 mil. No Banco do Brasil, ele opera desde 25 de março de 1999. Chegou a receber R$ 53,7 mil na conta do Unibanco, no dia 13 de agosto de 1999, e, no mesmo dia, recebeu dois depósitos na conta do BB. O primeiro de R$ 37 mil e o outro de R$ 73 mil. Na conta oficial – a do BB – passaram por Bezerra R$ 11 milhões entre 1999 e dezembro de 2002. Ele não é o único amigo americano na PF. O delegado Mauro Espósito também tem duas contas para receber os mimos ianques. Em 11 de novembro de 1998 recebeu R$ 30 mil na conta 40665 da Caixa Econômica Federal e recentemente mais R$ 20 mil em uma conta não especificada no BB.