Judite era pele e osso há dois anos, quando perambulava pelas ruas em busca de comida e água. Hoje, seu cardápio é farto, e entre suas regalias estão um médico e um treinador. Judite é o pônei que virou xodó do Centro de Controle de Zoonoses, na capital paulista. No começo, ela era arredia aos mimos e carinhos de Vanderlei Ferreira, seu domador. Agora, tem crises de ciúme e faz manha quando Ferreira cuida de outros animais.
Para chamar a atenção, ela manca
de uma perna e dá mordidas no braço
do domador ao pegá-lo de conversa
com alguém. Costuma entrar no meio do papo, sem-cerimônia, e empurrá-lo para longe com o focinho.

Durante décadas, a ciência se recusou a aceitar que os animais são inteligentes e têm a capacidade de nutrir sentimentos como amor, raiva e ciúme. Os psicólogos que estudavam o comportamento dos bichos diziam que suas reações eram respostas a estímulos externos geradas a partir de hormônios injetados na corrente sanguínea. Um gato assustado, por exemplo, sairia em disparada porque o excesso de adrenalina em seu corpo o faria sentir medo. Para o biólogo Marc Bekoff, uma das maiores autoridades mundiais no assunto, isso é coisa do passado. “Não é porque os seres humanos não conseguem medir e analisar as reações do gato que podemos dizer que não há inteligência em sua fuga”, diz.

Os estudos de neurobiologia e psicologia comportamental mostraram que é possível demonstrar a inteligência dos bichos. Em 1961, a cientista americana Jane Goodall se aventurou nas selvas africanas de Gombe e observou que os chimpanzés fabricavam facas ou martelos laminados quando precisavam cortar frutas. Esse comportamento só poderia ser entendido se nele existisse um ingrediente fundamental, a cognição, que é a capacidade inata de aprendizado. Com isso, a cientista provou que os primatas tinham mente.

A agência espacial americana Nasa já tinha dado sinais da veracidade das pesquisas de Jane. No auge da corrida espacial, os EUA lançaram ao espaço um foguete levando a bordo o chimpanzé Enos, treinado durante 16 meses para realizar todo tipo de comando. Sempre que uma luz acendia no painel da nave, Enos realizava uma tarefa. Se acertasse, ganhava uma banana. Caso contrário, tomava pequenos choques elétricos. A primeira órbita de Enos ao redor da Terra foi um sucesso. Uma falha no sistema elétrico do foguete fez o sistema de castigo e recompensa entrar em pane. O chimpanzé passou a levar choques mesmo quando fazia tudo certo. Para espanto dos técnicos, ele foi mais esperto do que o sistema da Nasa e conduziu a missão até o fim, sem errar, apesar dos choques.

Só que ainda era pouco para derrubar a crença de que um chimpanzé não pensa. Afinal, se eles fossem inteligentes, por que não se expressavam como os humanos? Essa tese ruiu no início da década de 1970 com o psicólogo americano Roger Fouts, da Universidade de Nevada. Ali havia uma chimpanzé chamada Washoe, a quem o cientista ensinou a linguagem dos sinais. Sua tese era correta: a fala não é a única forma inteligente de comunicação. Em anos de pesquisa, o chimpanzé não só aprendeu os sinais como criou um repertório próprio, elaborou pensamentos, dividiu experiências de vida e expressou sentimentos. Em seu livro O parente mais próximo, Fouts conta em detalhes como o processo de aprendizado dos sinais por Washoe era idêntico ao de seu filho Joshua, que ensaiava as primeiras palavras em inglês. Viva até hoje, a chimpanzé ensinou seu filhote a se comunicar usando a língua de sinais.

Prozac animal – Vários centros de pesquisa iniciaram o estudo de outras espécies. O que se sabe é que o mecanismo de funcionamento do cérebro da maior parte dos animais, como gatos, cachorros, elefantes, cavalos, golfinhos, é muito parecido com o dos humanos. “A ciência já aceita que esses animais têm mente e que nossos mecanismos bioquímicos e nervosos são muito parecidos”, explica Irvênia Prada, professora de neurociência animal da Universidade de São Paulo (USP).

As semelhanças são tantas que os veterinários receitam remédios humanos para a bicharada. De olho nesse mercado, os laboratórios farmacêuticos lançam medicamentos específicos. A mais recente novidade é o Clomicalm, um tipo de Prozac para cachorro. A droga
está à venda nos EUA, França e Inglaterra. Ainda não se sabe se chegará às prateleiras nacionais, onde os cães tomam o antidepressivo para reduzir sintomas de ansiedade e agressividade. Outra evidência das semelhanças entre humanos e animais é o surgimento de terapias complementares, como a acupuntura, a hidroterapia e a homeopatia. “Não há a menor dúvida de que essas técnicas funcionam”, garante Marc Bekoff. Existem clínicas do gênero no Rio de Janeiro e em São Paulo, onde há maior concentração de mascotes.

Os brasileiros já despontam em
quinto lugar na lista dos países
com mais bichos de estimação.
Os cachorros são preferência nacional, somando 23 milhões,
contra dez milhões de gatos. Há uma década, o Brasil nem sequer figurava entre os dez primeiros colocados. Dois motivos explicam esse fenômeno, segundo a veterinária e psicóloga animal Hannelore Fuchs, da USP. A agitação do dia-a-dia e o advento da internet afastaram as pessoas, que apelaram para os animais como forma de trocar afeto. Outra explicação é que, cada vez mais, aceita-se que os bichos são capazes de corresponder ao carinho de seus donos.

O poeta maranhense Ferreira Gullar é um dos defensores dessa tese. Seu gato siamês mudou tanto sua rotina que Gullar escreveu um livro em sua homenagem. Diz o poeta: “O gato é uma maquininha que a natureza inventou e dentro tem um motor. (…) É um motor afetivo que bate em seu coração por isso faz ron-ron para mostrar gratidão.” Seu felino é temperamental. Basta o poeta pegar o telefone que Gatinho pula em seu colo e morde sua camisa para que ele desligue. “Ele sabe que tem alguém do outro lado da linha”, diz.

Estudos recentes mostram que os cachorros são os mais habilidosos em entender o comportamento humano. As pesquisas nessa área avançaram tanto que alguns laboratórios criaram tradutores de latidos. Segundo o biólogo Samuel Gosling, da Universidade do Texas, em Austin, como os cães sempre estiveram ao lado dos humanos desde a idade das cavernas, especializaram-se em ler os sinais de humor e emoção. Para eles, era uma forma de ter abrigo e comida garantidos. A simbiose entre humanos e cachorros é tamanha que Gosling identificou quatro tipos de inteligência em cães usando testes psicológicos aplicados em humanos. Não é um exagero, portanto, dizer que o cão é o retrato de seu dono. Os avanços na forma como a ciência encara o “ser animal” trazem consigo uma contradição. Afinal, como seria possível criar animais em cativeiro ou fazer experimentos em laboratórios se eles têm a sua capacidade de pensar e de sentir? Aos poucos, a humanidade aprende a respeitar a bicharada, menos por nossas diferenças e mais por nossas semelhanças.
ÍNDICE DE ESPERTEZA
Para elaborar o ranking de inteligência das raças mais populares
no Brasil, levou-se em conta a habilidade dos cães em resolver problemas ou responder a novos comandos
 
• OS MELHORES ALUNOS
Eles aprendem algo novo com menos de cinco repetições
       
Border collie     Poodle     Pastor alemão
       
Golden retriever     Doberman     Labrador retriever

Rottweiler     
• O EMPENHADO
Faz o dobro do esforço para
executar uma tarefa
Cocker spaniel
• OS DESATENTOS
Só respondem depois de 25 repetições
       
Yorkshire terrier     Pitbull     Pinscher
• OS MARCHA-LENTA
Reagem a novos comandos após 40 tentativas
   
Dachshund     Boxer
Gastam 20 vezes mais tempo do que um border collie para aprender
   
Basset hound     Bulldog