Durante a campanha à Presidência da Rússia, em 1999, uma imagem televisiva se repetiu inúmeras vezes: o então primeiro-ministro Vladimir Putin se aquecendo numa academia de judô e dando um golpe que derrubava seu sparring. O “durão”, como passou a ser chamado, foi eleito em março de 2000, em grande parte graças às táticas agressivas adotadas como premiê na repressão aos separatistas chechenos, que naquele ano tomaram o vizinho Daguestão e ainda realizaram atentados em Moscou, que mataram mais de 300 pessoas. O durão Putin, mais uma vez, voltou a reforçar a imagem do valente que não negocia com os terroristas chechenos. O presidente ordenou que as forças especiais invadissem o Palácio da Cultura em Moscou, na manhã da sexta-feira 25, numa operação para tentar salvar os mais de 750 reféns retidos durante 57 horas de cerco, sem alimentos e água. Mesmo com o desfecho trágico (115 reféns e 50 terroristas mortos, em grande parte pela inalação do gás usado para imobilizar os sequestradores, e duas pessoas assassinadas pelos rebeldes), o ataque ordenado por Putin foi apoiado por 85% dos russos. “A Rússia nunca chegará a um acordo com terroristas e não se deixará extorquir”, afirmou o presidente, depois de pedir perdão às famílias das vítimas.

O tipo do gás utilizado na ação (leia quadro) só foi revelado na quinta-feira 31 depois de muita pressão por parte da imprensa nacional e do Exterior. Como ex-chefe do KGB e, portanto, grande conhecedor dos serviços secretos russos, Putin conhecia o alto risco da operação. O chefe dos terroristas, Movsar Barayev (morto na invasão), desafiava o Kremlin ao aparecer na televisão envolto em pacotes de explosivos junto aos reféns. Segundo o Serviço Federal de Segurança (sucessor do KGB), os rebeldes tinham mais de 110 quilos de explosivos, o suficiente para mandar o teatro pelos ares.

O sigilo governamental sobre o tipo de gás utilizado recebeu críticas até do embaixador americano na Rússia, Alexander Vershbow. “Talvez, com mais informação, um número um pouco maior de reféns teria sobrevivido”, afirmou o diplomata. Mas Washington tratou de calar rapidamente a voz do embaixador. O presidente George W. Bush apoiou decisivamente a atitude de Putin contra os terroristas, dizendo que ele teria ficado sem alternativas. Desde o 11 de setembro, o Kremlin tem sido um fiel aliado da Casa Branca na campanha antiterrorismo e foi uma peça fundamental nas negociações com as ex-repúblicas soviéticas Uzbequistão, Azerbaijão e Quirguistão – todas de maioria muçulmana – para conduzir as ações militares americanas na guerra contra o Afeganistão. Bush voltou a reafirmar a necessidade de se combater o terrorismo no mundo e Putin aproveitou a fala do presidente americano para mais uma vez sustentar que os separatistas chechenos têm ligações com a rede de Osama Bin Laden e, assim, justificar sua política de endurecimento contra a Chechênia, república do norte do Cáucaso de maioria muçulmana que declarou independência em 1991, depois do colapso da União Soviética.

Se o sequestro chamou a atenção do mundo para o drama da Chechênia, como pretendiam os terroristas, o resultado político pode ter sido desastroso para a causa independentista. A ação só fez aumentar o sentimento de ódio que os russos alimentam contra os chechenos, considerados bárbaros sanguinários. Desde 1994, a Rússia invadiu duas vezes o território da Chechênia, provocando a morte de mais de 100 mil pessoas. A união de facções terroristas rivais tornou o espaço para negociação quase inexistente. Para Anna Politkovskaya, vice-presidente da Duma (Parlamento russo), que dialogou com os terroristas no teatro, é praticamente impossível negociar com facções como a do líder
rebelde Barayev. Em artigo publicado no jornal britânico The Guardian, Anna afirmou que o terrorista “não esperava perdão e sonhava morrer
no campo de batalha”. Para o analista britânico Thomas Waal, autor do livro Chechnya: a small victorious war (Chechênia: uma pequena
guerra vitoriosa), há pelo menos três facções rebeldes, e a que tomou o Palácio da Cultura é a mais radical delas. “São extremistas islâmicos que recebem dinheiro do Oriente Médio e são vistos com grande
simpatia pelo mundo árabe”, afirmou ele.

Por isso, a repressão corre solta. Em menos de uma semana, centenas de chechenos foram presos. Na Dinamarca, a pedido das autoridades russas, foi detido um líder checheno moderado, Akhmed Zakayev, que participava de uma conferência internacional de chechenos exilados. Tudo indica que há poucos horizontes nessa guerra do fim do mundo.

OS EFEITOS DO GÁS

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Gás usado na operação para acabar com o sequestro dos reféns pelos chechenos é derivado do anestésico fentanil, da classe dos opióides (derivados do ópio), assim como a morfina. A droga é muito usada para tratar dores provocadas pelo câncer. O medicamento diminui gradativamente o nível de consciência do indivíduo, mas se for utilizado incorretamente pode levar ao coma e ser fatal. “É óbvio que essas consequências dependem da dose e do tempo de exposição à substância”, alerta Sérgio Graff, médico especializado em toxicologia de São Paulo. Como as vítimas não tiveram tempo de reagir, os médicos desconfiam que foram usadas doses altas de fentanil. “Se fossem quantidades pequenas e os terroristas começassem a sentir sonolência, por exemplo, daria tempo de eles detonarem as bombas”, comenta Graff. Falta descobrir como os russos aplicaram o anestésico fentanil na forma de gás. “Isso porque a droga existe no mercado na forma de líquido injetável”, garante Ligia Fruchtengarten, médica do Hospital Jabaquara, de São Paulo.

Juliane Zaché


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