Muitos e muitos deles têm o sobrenome do presidente, Silva. Maria, João, Rafael, Sebastião, Benedita… A mais conhecida delas é Bené, a senhora Benedita da Silva, governadora do Rio de Janeiro. “Não tem coisa mais indigna que a fome”, diz ela com conhecimento de causa. Durante muito tempo na vida, a ex-favelada Benedita comeu fubá puro no almoço e no jantar. Só isso. A brava Benedita da Silva superou a miséria e a fome, mas o fubá puro continua sendo o alimento básico de 54 milhões de brasileiros, quase um terço do total de habitantes do País, de 175 milhões.

São pessoas que vivem com menos (às vezes muito menos) de um dólar por dia e colocam o Brasil como um dos países mais desiguais do mundo: 10% de sua população concentra mais da metade da riqueza. É a maior de todas as tragédias brasileiras. “Estou seguro de que o combate ao flagelo da fome é, hoje, o clamor mais forte do conjunto da sociedade, disse Luiz Inácio Lula da Silva ao anunciar a criação de uma Secretaria de Emergência Social com verbas e poderes para iniciar já em janeiro a urgentíssima missão de pôr fim à pior forma de exclusão, a de um prato de comida.

A fome, que faz um copo de água doer quando bate no estômago vazio, é a grande desgraça da humanidade. Seis milhões de crianças morrem por desnutrição a cada ano, a maioria nos países em desenvolvimento. As mais recentes estimativas da Organização das Nações Unidas para a Agricultura e Alimentação (FAO) indicam que, por dia, morrem 25 mil pessoas vítimas da fome e da pobreza. “A tragédia da fome em meio à opulência é dramática na realidade atual do mundo”, diz o diretor-geral da FAO, Jacques Diouf. Ao apresentar o estudo “O estado da insegurança alimentícia no mundo em 2002”, Diouf disse que virtualmente em todos os países há grupos de pessoas que não podem realizar plenamente o seu potencial humano porque passam fome ou são subnutridas, o que mina suas forças e paralisa o sistema imunológico.

No Brasil, o custo para erradicação da indigência corresponde a R$ 1,69 bilhão mensais ou 2% do PIB, de acordo com o estudo Mapa do Fim da Fome no Brasil, elaborado no Centro de Políticas Sociais da Fundação Getúlio Vargas, do Rio de Janeiro, divulgado em julho e baseado em dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio (PNAD), de 96 a 99. O estudo mostra que a aplicação de R$ 1,69 bilhão por mês significaria uma contribuição mensal de R$ 10,4 por brasileiro, tendo como base a renda per capita do País, que é de R$ 262. “A idéia desta pesquisa é mostrar como custa pouco erradicar a pobreza e fornecer dados exatos de quanto seria preciso para tirar 50 milhões de brasileiros da indigência”, explicou o economista Marcelo Neri, chefe do Centro. Esse contingente, que chega perto da população da França e da Inglaterra (60 milhões) e deixa para trás, com folgada distância, uma Argentina inteira (38 milhões), vive com R$ 80 por mês, dinheiro insuficiente para comprar uma cesta de alimentos que cubra as necessidades calóricas básicas dos indivíduos.

Os Estados nordestinos são os que apresentam maior índice de pobreza do País. Todos, à exceção do Rio Grande do Norte, têm mais de 50% de sua população abaixo da linha de pobreza. O Maranhão é o Estado que apresenta a pior situação: mais de 63% de sua população vive abaixo dessa linha. De acordo com a pesquisa, precisariam ser investidos R$ 143 milhões por mês no Maranhão para se reverter esse quadro. O Piauí é o segundo Estado com maior índice de pobreza do País (61,7%), seguido do Ceará (55,7%), Alagoas (55,4%), Bahia (54,8%), Tocantins (21,27%), Pernambuco (50,9%), Paraíba (50,2%), Sergipe (50,14%) e Rio Grande do Norte (46,93%).

A América Latina inteira empobreceu. Dados da Comissão Econômica para o Desenvolvimento Econômico da América Latina e Caribe (Cepal) mostram que os países latino-americanos têm hoje mais 20 milhões de pobres do que há cinco anos, em consequência da retração de suas economias. Afetada por uma contração que começou em 1997, como reflexo da crise asiática, a região latino-americana entrou numa fase de crescimento lento e recessão, enquanto a proporção de pobres passou de 43% a 44% do total da população. “Isto significa que, ao longo destes anos, foram acrescentados cerca de 20 milhões de pessoas à população pobre da América Latina”, disse José Antonio Ocampo, secretário executivo da instituição, em 24 de outubro, durante a cerimônia de comemoração do Dia das Nações Unidas. Segundo as mais recentes estimativas da Cepal, a região terá este ano uma queda de 0,1% em seu Produto Interno Bruto (PIB), com reduções mais acentuadas nas economias de Argentina (-10%), Venezuela (-3%) e Uruguai (-4%), e um menor crescimento no Chile (inferior a 2,5%) e Brasil (1,8%).

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Fome chama pobreza e vice-versa. Inúmeros estudos confirmam que a fome impacta em cheio a condição da pessoa pobre para desenvolver suas habilidades e reduz sua produtividade no trabalho. Nas crianças, afeta o desenvolvimento físico e mental, reduzindo drasticamente sua capacidade de aprendizado. A deficiência de iodo, uma das principais causas do retardo mental, é uma ameaça para 1,5 bilhão de pessoas no mundo. A carência de ferro reduz a produtividade dos trabalhadores braçais em torno de 17%. Além disso, eles são frequentemente incapazes de trabalhar o mesmo número de horas que os bem nutridos porque ficam doentes mais frequentemente. A anemia, sozinha, é capaz de reduzir o Produto Interno Bruto de um país de 0,5% a 2%. Em Bangladesh, por exemplo, o impacto em 2001 foi de 2%, segundo dados do Banco Mundial; na Índia chegou a 1,3%.

Robert Fogel, Prêmio Nobel de Economia em 1993, não tem dúvidas de que “pessoas com fome não conseguem sair da pobreza”. Ele conta que 20% da população da Inglaterra e da França foi efetivamente excluída da força de trabalho em 1790, por causa da subnutrição. O avanço do nível de nutrição, segundo Fogel, é responsável pela metade do crescimento econômico dos dois países entre 1790 e 1880. “Como vários países em desenvolvimento são atualmente tão pobres como eram França e Inglaterra em 1790, a eliminação da fome hoje pode ter o mesmo impacto no desenvolvimento desses países”, escreveu Fogel no estudo da FAO.”

Entre 1998 e 2002, o documento aponta a existência de 840 milhões de pessoas desnutridas, das quais 799 milhões vivem em países em desenvolvimento, 30 milhões nos países em transição e 11 milhões nos países industrializados. Em um nível ligeiramente superior ao da penúria encontram-se mais de dois bilhões de pessoas carentes, chamadas de “micronutrientes”. São pessoas cujas dietas carecem de vitaminas e minerais, sobretudo de vitaminas A e C, e de ferro, iodo e zinco, essenciais para o desenvolvimento e o crescimento dos seres humanos.

O estudo monitora o progresso feito anualmente contra a fome e a má nutrição. Nesta terceira edição verifica-se que houve progressos, mas não com a rapidez exigida pela causa. Nos períodos de 1990-1992 e 1998-2000, o número de pessoas famintas diminuiu apenas 2,5 milhões por ano, e isso graças à média ponderada entre os bons resultados na China (menos 74 milhões), Vietnã, Tailândia, Nigéria, Gana e Peru, onde
a má nutrição retrocedeu consideravelmente (atingindo mais de três milhões de pessoas), e o desastre que ocorre em vários países onde
a fome aumentou, sobretudo na África subsaariana (a Somália detém o triste recorde de subnutrição do planeta, que atinge 75% de sua população). Na verdade, a luta contra a fome sofreu um retrocesso no mundo nos últimos anos, o que torna praticamente impossível atingir o objetivo fixado em 1996 durante a Cúpula de Alimentação de reduzir à metade o número de pessoas subnutridas até 2015. Para alcançar essa meta seria necessário que o número de pessoas desnutridas diminuísse 20 milhões por ano, o que está longe de acontecer. Durante a última década, o total de subnutridos nos países em desenvolvimento caiu aproximadamente 40 milhões, numa média modesta de seis milhões
por ano, dois milhões a menos que a média registrada pela FAO em 1999. Consequentemente, a redução anual agora necessária para
atingir a meta de 2015 passou de 20 milhões para 22 milhões de pessoas. A diferença entre a redução realizada e a redução necessária vem aumentando, o que permite concluir que, nesse compasso, levaria pelo menos 60 anos para atingir a meta definida em 1996.

Aqui ou na Somália, o combate radical à fome é o primeiro e vital passo para erradicar a pobreza. Isso foi reconhecido até pelos integrantes do G8, o grupo dos países mais ricos e poderosos do mundo, durante a reunião do ano passado, em Gênova, na Itália, de onde saiu um comunicado final que dizia que “a estratégia principal para a redução da pobreza consiste no acesso ao alimento e no desenvolvimento rural”.

O que se questiona é por que eles, os países ricos e bem nutridos, contemplam placidamente a morte de 25 mil famintos por dia. No ano, o número, só de crianças com menos de cinco anos, passa de seis milhões. É assustador: a cada 3,6 segundos alguém morre de fome no mundo. “Quem tem fome tem pressa”, dizia Betinho, irmão do cartunista Henfil, o sociólogo militante Herbert de Souza, que, entre outras coisas, criou a organização-não governamental Ação da Cidadania Contra a Fome, a Miséria e pela Vida, em 1994, no Rio de Janeiro. Três anos depois, no dia 9 de agosto de 1997, ele morreu aos 61 anos em sua casa, no bairro de Botafogo, zona sul do Rio de Janeiro. Deixou uma esplêndida história de heroísmo, livros, muitos amigos, a bandeira hasteada contra a fome e a frase que agora ganha o Palácio do Planalto.


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