Meu querido dr. Marcelo Cunha,

Sei que já deveria ter voltado ao seu consultório há
uns bons meses. Talvez anos. Essas datas andam me confundindo ultimamente. Tem se tornado habitual eu trocar minha própria idade. Faço contas como se tivesse acabado de chegar aos 37. Como na verdade já completei 47, o erro de cálculo é de uma década! Nada razoável, eu sei. Mas não é proposital. É como eu me sinto. E se te conto essa história, meu caro, é para que você entenda que não tenho condições de usar óculos de leitura nessa idade! Idade espiritual, digo. Afinal, para que ter visão de águia e destrinchar, letrinha a letrinha, a bula do remédio novo? Isso só me faria mal.

Se toco no assunto dos remédios é porque alguns já se tornaram de uso contínuo para mim. Dr. Jairo Hidal, endocrinologista e meu guru da alopatia, diz que conviverei com eles para o resto da vida. Nada contra remédios. Mas a gente só precisa deles quando alguma coisa deixa de funcionar bem. Melhor não pensar demais nisso. Engulo a pílula como se fosse vitamina. Difícil mesmo é a questão do cabelo. Retocar a raiz a cada duas semanas é demais para minha sensação de juventude eterna. Nunca entendi direito a piada que diz que toda mulher, depois dos 40, fica loira ou ruiva. Agora estou sentindo na pele, ou melhor, no couro cabeludo, o quanto é difícil continuar morena diante da invasão dos brancos. Não importa. Resistirei entrincheirada no salão do amigo e mestre das madeixas Marco Antonio de Biaggi! Sei que ainda há muito por vir. E estou em vantagem. Ser chamada de senhora na fila do banco ainda não me aconteceu. Meus dois irmãos, ambos mais novos que eu, já não se surpreendem quando alguém pergunta se sou a caçula da família. Tenho a genética (e as câmeras da tevê, e a maquiagem, e a iluminação…) a meu favor.
Dr. Marcelo, entenda bem, não se trata de pura vaidade.

É bem verdade que aquela armação pendurada na ponta do nariz é uma certidão de nascimento. Mas desnecessária, dado que, numa licença poética, meu caro oftalmologista, os da minha geração viram tudo – e aquilo que aprendi é a prova maior da minha idade. Quando escolhi o jornalismo para ser uma testemunha da história, nunca imaginei que meu desejo me levaria da máquina datilográfica ao computador acionado por voz. Do disco de vinil ao MP3.

Da enciclopédia Barsa ao Google. Da guerra fria à globalização. Não há óculos que me façam enxergar mais
ou melhor! Tivemos, nós que já passamos dos 40, o privilégio de assistir, de olhos arregalados, a incríveis revoluções! Sociais, tecnológicas, econômicas, ambientais. Tudo muito rápido. E nesse caso talvez a velocidade do tempo seja inversamente proporcional à do envelhecimento. Nós, os quarentões, somos tão jovens, dr. Marcelo!
Quanto mais jovens, mais tempo temos. Para ver o que ainda não vimos. A cura para doenças que matam.

A vitória da justiça. Ou apenas o reinado do bom-senso já seria uma esplêndida visão. Sendo menos romântica, pode ser que vejamos, no tempo que nos resta, o fim dos tempos. Não importa. A mim me basta estar aqui para presenciar. Para ver. E ver inclusive, dr. Marcelo, a chegada da cirurgia, sem riscos, que corrija a presbiopia, essa tal de vista cansada. Até lá, vou adiando aquela visita que te devo, ok?

Ana Paula Padrão é jornalista e apresentadora