O terremoto de Lula nas urnas produziu um forte abalo no PMDB e no PSDB, a base partidária da coligação que sustentou o derrotado José Serra. A fenda política aberta pela eleição deve balançar a cúpula dos dois maiores partidos da era FHC. Na terça-feira 5, em Brasília, o arranhado comando do PMDB reunirá a Executiva Nacional do partido pela primeira vez com a presença dos cinco novos governadores. E não vão ouvir boas notícias. O segundo na hierarquia do PMDB, deputado César Schirmer (RS), oxigenado pela surpreendente virada de Germano Rigotto contra o PT na disputa pelo governo gaúcho, vai bater com a faca na bota: irá propor simplesmente a renúncia coletiva da atual direção peemedebista. “Esta cúpula não tem mais legitimidade. As urnas mudaram radicalmente a cara do PMDB”, confidenciou o deputado a ISTOÉ na quinta-feira, 31, pouco convencido de que será ouvido. Neste caso, apresentará isoladamente sua renúncia do cargo de vice-presidente. Assim, vai expor ao País a velha face do PMDB de sempre, um partido dividido antes, durante e depois das eleições.

O tremor também chacoalha os tucanos que camuflaram, mas não desarmaram a crise latente no poleiro do PSDB. Os novos governadores, intramuros, se articulam para “despaulistizar” o comando do tucanato. Na reunião da cúpula na terça-feira 29, em Brasília, os atuais caciques – a grande maioria serrista de carteirinha – conseguiram emplacar uma nota oficial de oposição ao governo Lula. A nota foi lida ao telefone pelo líder Jutahy Magalhães ao derrotado José Serra. “Tá certo. A eleição nos colocou na oposição”, carimbou Serra. Mas esse não é o sentimento geral, especialmente entre os governadores eleitos que dependem de uma sintonia fina com o Palácio do Planalto para liberação de verbas, renegociação de dívidas e recursos para novos projetos. Apesar de a nota ter sido escrita por uma caneta oposicionista, os novos governadores do Pará, Simão Jatene, e da Paraíba, Cássio Cunha Lima, protestaram. “Estamos indo na contramão da história”, chiou o paraibano Cunha Lima, que, ironicamente, derrotou o PT no Estado, mas não quer saber de oposição ao governo federal. De outro lado, o presidente da Câmara e governador eleito de Minas Gerais, Aécio Neves, costura o apoio a Lula. Esta semana, telefonou para governadores de outros partidos. A um deles Aécio disse: “No interesse do País, não vou ser contra só para ficar contra.”

Com um sorriso rasgado no rosto, que não lembrava em nada o foco de tanta turbulência, Lula fez na última terça-feira uma triunfal passagem por Brasília, onde foi inaugurar a fase de transição de um governo para outro. Trocou um abraço apertado com FHC no Planalto, que pela primeira vez viu uma manifestação de militantes do PT em apoio ao presidente – no caso, ao eleito – na Praça dos Três Poderes. Inaugurando o que deve ser um hábito do novo governo, Lula foi recebido em clima de Copa do Mundo, festejado nos salões e corredores com a histeria de astro de rock sob a trilha sonora do hit “Olê-olê-olé-olá, Lulá, Lulá!” Nas conversas com Aécio Neves e com o presidente do Senado, Ramez Tebet (PMDB-MT), Lula reforçou sua promessa de governar com o ouvido colado ao Congresso: “Vocês nunca verão ninguém como eu tão dedicado ao entendimento”, jurou. “E, quando houver dúvidas, o presidente chamará sempre os partidos para conversar.”

Ali mesmo, com a experiência de quem passou a vida negociando com patrões e empregados, Lula começou a conversar. Pegou no braço do líder do PFL, Inocêncio Oliveira, que tinha prometido abrir guerra contra o PT, e brincou: “É lógico que vou ter o apoio do Inocêncio. É um privilégio para Pernambuco ter um presidente pela primeira vez”, disse o filho de Garanhuns para o constrangido deputado de Serra Talhada (PE). No Senado, ao dar um abraço em Pedro Simon (PMDB-RS), Lula brincou: “Então, me derrotaste no Sul, Pedro?” “Não, eu te ajudei”, rebateu o senador, deixando claro que a vitória do PMDB sobre o PT gaúcho – a ponta mais xiita da estrela petista – livrou Lula de uma ala ideológica radical que poderia embaçar sua imagem de paz e amor e constranger o futuro governo. Lula não ficou na retórica. Pediu o telefone de Rigotto ao senador. No dia seguinte, Simon localizou o governador eleito numa praia catarinense, onde descansava, e avisou que o presidente o procurava. Rigotto ligou para Lula, em São Paulo, e ouviu dele o que nenhum petista do Sul ousaria dizer: “Você ganhou, foi uma vitória democrática, e não vai ter um milésimo a menos da atenção que eu possa dispensar a qualquer outro Estado.”

Cobiça – A conversa fraterna entre o presidente eleito e o homem que derrotou o PT mais belicoso do País mostra a nova realidade política do Brasil, que muda hábitos e nomes no coração dos partidos. Toda essa gentileza, mais do que pessoal, reafirma um interesse político: o PT cobiça os votos do PMDB no Congresso. Deputados tentam decifrar, na ponta do lápis, a cara do PMDB que brota das urnas. Dos 75 deputados eleitos, a terceira maior bancada da Câmara, pelo menos 40 já são pró-Lula. “A tese de oposicão a Lula dentro do PMDB perderia feio numa convenção”, aposta o deputado Eunício Oliveira (CE), membro da cúpula e candidato a substituir o atual líder, Geddel Vieira Lima (BA), o mais agressivo opositor a qualquer entendimento com o PT. “O povo nos botou na oposição”, diz Geddel, hoje pregando num deserto. Na segunda-feira, Geddel tentou inutilmente atrair o governador catarinense, Luís Henrique, para sua trincheira. “Aqui, todo mundo está na linha da oposição”, forçou Geddel. Antes que continuasse, o governador, eleito só depois que apoiou Lula no segundo turno, atalhou: “Eu não acho. Temos que ir para a governabilidade. Aqui, eu vou dar a presidência da Assembléia para o PT.” E encerrou a discussão. Foi o mesmo discurso que Luís Henrique repetiu na quarta-feira 30, ao presidente do PMDB, Michel Temer, que afinou o discurso também com os governadores Jarbas Vasconcellos (PE), Joaquim Roriz (DF) e Germano Rigotto. Só ficou de fora o governador eleito do Paraná, Roberto Requião, um lulista de primeira hora que também quer a destituição da atual cúpula do PMDB. “Nem s vou à reunião de terça-feira”, desdenha Requião.

Má fama – Antes mesmo da eleição, o presidente do PMDB, Michel Temer, já advogava o apoio a Lula. “Nosso caminho é a governabilidade sem ganhar cargos do governo”, repetiu agora, num esforço para apagar a má fama fisiológica do partido. Sentindo que corriam o risco de perder os dedos e os anéis depois do fracasso eleitoral, os atuais chefões do PMDB se anteciparam e colocaram na mesa seu objeto de desejo nessa negociação – a presidência do Senado. Um dia depois que o inimigo doméstico, José Sarney, começou a cabalar votos para a presidência da Casa, o líder Renan Calheiros foi escalado para dar uma entrevista pró-Lula e colocar o próprio nome como alternativa. Na terça-feira 29, enquanto Lula desfilava pelo Congresso, o senador José Sarney (PMDB-AP) mostrava -se estranhamente desinibido: “A hora de ir para o governo é agora”, repetiu a vários colegas do Senado, espantados com o novo figurino agressivo do maranhense. Sarney sofre resistências na esquerda e tem dificuldades em sua própria bancada do PMDB. “Primeiro ele tem que entrar no partido, trazer seus aliados e parentes que estão no PFL”, critica o senador Ney Suassuna (PMDB-PB), numa alusão aos filhos Zequinha e Roseana Sarney, ao governador eleito, José Reinaldo Tavares, e ao senador Edison Lobão, aninhados no PV e no PFL. Suassuna já está fechado com Renan.

Enquanto os sismógrafos do Senado indicarem confusão à vista, o PT tentará se manter longe do epicentro. Lula não sabe ainda com qual pedaço do PMDB conversa, mas desde já descarta entendimentos com Geddel e com o ex-ministro Eliseu Padilha (RS). As negociações, quando começarem, vão transitar pelo presidente Michel Temer, pelo líder do Senado, Renan Calheiros, e pelos governadores. As lideranças do partido de Lula não admitem entrar neste jogo agora: “Ainda faltam 100 dias para a questão do comando do Congresso. O PT tem outras prioridades. Presidência do Senado
ainda não está na nossa agenda”, diz um dos petistas influentes da transição. Assim, nesta crônica da guerra anunciada entre Sarney e Renan, pode sobrar para um terceiro nome, que não provoca tremores nem calafrios: o insosso Ramez Tebet, o atual presidente, que não entusiasma o PMDB, mas não desagrada o PT.

 

SORRISOS E PROBLEMAS

Os gabinetes, senhas de acesso, cargos comissionados e amistosos sorrisos do governo FHC não vão ajudar muito. A equipe do presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva já percebeu que a transição vai ser dureza, começando pela primeira rodada de negociações com o Fundo Monetário Internacional. Por causa da piora no cenário econômico, é certo que o FMI pressionará por um aperto extra nas contas públicas, além dos 3,75% do PIB fechados no acordo. A primeira rodada de negociação com o Fundo começa em duas semanas e a equipe de Lula, que participará das conversas, tentará adiar a exigência. Já está difícil cumprir o ajuste no seu tamanho atual. Neste ano, quase metade da meta fiscal fechada com o Fundo foi alcançada à custa de R$ 14 bilhões de receitas extraordinárias, um recorde garimpado fora do script orçamentário. Na Receita, calcula-se que é praticamente impossível repetir o feito no ano que vem. Se o PT conseguir uns R$ 8 bilhões, é muito. Sem receitas extras, o presidente eleito enfrenta um outro problemão: o magérrimo orçamento de 2003, preparado pela administração atual. O PT vai recorrer a um exercício matemático para encaixar o projeto Fome Zero, prioridade social de Lula, e o aumento do salário mínimo no Orçamento, que prevê correção de mísero 0,5%. O dinheiro sairá da atualização das receitas de impostos pela inflação, o que vai gerar cerca de R$ 10 bilhões a mais. Mesmo com a verba extra, dificilmente os petistas conseguirão chegar ao mínimo de R$ 240, como defenderam no Congresso. Talvez chegue a pouco mais de R$ 220. Deputados e senadores já brigam para reservar mais da metade da verba para suas emendas estaduais. Sem isso, a aprovação pode emperrar. Não é só. O atual governo vai empurrar para o próximo mais de R$ 7 bilhões comprometidos em convênios com centenas de municípios para realização de obras, até agora congelados por falta de verbas. Diante desse abacaxi orçamentário, o PT recorrerá a outra herança de FHC, muito criticada pelo partido nos tempos de oposição: adiar pagamentos e soltar as verbas a conta-gotas.

Congresso quer aumento

Deputados e senadores querem aumentar seus vencimentos de R$ 8.280 para, no mínimo, R$ 12.720 e, no máximo, R$ 17 mil

Weiller Diniz

Ao contrário das previsões, o primeiro abacaxi no colo do presidente eleito está longe de ser a pressão por um aumento maior do salário mínimo e dos servidores públicos. A encrenca está no coração da Praça dos Três Poderes, beneficia 594 privilegiados e vai explodir antes da posse. A Constituição determina que o Congresso fixe até o dia 15 de dezembro o valor dos salários que deputados e senadores irão receber em 2003. Quem está fazendo os estudos para um aumento muy generoso é o primeiro-secretário da Câmara, Severino Cavalcanti (PPB-PE). Nas contas dele, 80% dos deputados estão devendo cheque especial. Cavalcanti quer resolver a pindaíba dos colegas, elevando o salário para R$ 15.772. “Os parlamentares não podem viver com salário de chofer de caminhão. Não importa o impacto”, derrapa Cavalcanti. Cerca de 10% dos senadores recorrem frequentemente a empréstimos bancários, descontados em folha. O senador Gilvam Borges, por exemplo, teve o talão de cheque cortado pelo banco. Atualmente, um parlamentar embolsa um salário bruto de R$ 8.280, cerca de R$ 5.100 com descontos.

Chegou-se a elaborar um primeiro estudo propondo um salário de R$ 17 mil – equivalente ao maior salário de ministro do STF –, mas a idéia foi abandonada porque incorporaria gratificações pessoais dos ministros, como quinquênios, etc. Agora, as duas propostas em estudo têm como referência os salários recebidos pelos ministros do STF sem gratificações. Os que defendem o novo valor de R$ 15.772 somam o salário dos magistrados – R$ 12.720 – com a bonificação que eles recebem quando acumulam funções no TSE – R$ 3.052. A segunda alternativa, mais modesta, seria fixar o salário nos R$ 12.720 recebidos pelos ministros do STF e ponto final. Na primeira hipótese, significaria engordar os salários em 90%, e, na segunda, o reajuste seria de 53%.