13/12/2006 - 10:00
O infectologista David Uip é uma referência sobre Aids no Brasil. Estudioso dos caminhos para combater a epidemia desde os seus primeiros anos, na década de 80, ele coordenou por dez anos a Casa da Aids, em São Paulo, um serviço voltado ao atendimento de pacientes com HIV, o vírus responsável pela doença. É homem de opiniões fortes. Por essa razão, envolveu-se em algumas polêmicas. Em uma delas, afirmou que as mulheres se tornariam alvo fácil da enfermidade quando isso estava longe de ser um fato. Agora, aos 54 anos, Uip se declara pessimista em relação ao controle da doença. O principal motivo é a resistência que as pessoas mostram para mudar de comportamento, ter mais proteção e não expor seus parceiros. “Este é um dos maiores desafios na luta contra a Aids hoje”, afirma.
Uma das alegrias do especialista é o trabalho que realiza há quatro anos, em Angola, com uma equipe de médicos e enfermeiros. Eles foram chamados pelo governo do país africano para implantar um programa de combate à transmissão do HIV da gestante para o feto. Ainda não há estatísticas definitivas dos resultados, mas as indicações mostram que o problema regrediu muito em relação ao que havia quando estiveram lá pela primeira vez. “O caminho é respeitar a cultura do país, usar o conhecimento da academia e a prática para criar algo que funcione”, explica. David Uip deu a ISTOÉ a seguinte entrevista.
Descobrimos o modelo certo. Provamos que oferecer o remédio gratuitamente melhora a sobrevida, dá dignidade e recoloca o paciente na linha produtiva. E isso deve ser imitado para outras doenças. Mas estou muitíssimo preocupado com o programa de Aids.
Aumenta a sobrevida, o total de pacientes com indicação de remédios, o número de drogas ofertadas, mas há um orçamento engessado. Por isso, a conta não fecha. Há o risco de o programa ficar sem sustentação. E hoje a negociação está baseada em apertar os laboratórios, com ameaça de quebra de patentes, coisa que sou contra. Isso é quebra de intelectualidade. É preciso fazer uma negociação dura, pelo melhor preço, e lutar para que os laboratórios farmacêuticos tragam a pesquisa básica. E é necessário aumentar os recursos.
Apesar de a parte de atenção e medicamentos funcionar, os programas de prevenção ainda estão longe do ideal.
Os programas estão defasados. Hoje, por exemplo, existem situações de enfrentamento protagonizadas especialmente por adolescentes e jovens que não viram as mortes produzidas pela Aids no passado. Na cabeça dessa nova geração estamos diante de uma doença que não mata mais, que tem remédio gratuito. Então ela abre mão da proteção e vai para o enfrentamento.
Assumem um comportamento que inclui desde fazer sexo não protegido até grandes loucuras. Nas baladas, uma coisa que está acontecendo é a roleta russa com sexo e droga. Eles pegam seringas – uma usada e quatro novas – e se injetam para ver se irão se contaminar com o HIV. Fazem sexo desprotegidos para ver o que acontece. Os próprios jovens contam. Além disso, na faixa de 16, 17 anos, não estão mais interessados na forma de se prevenir da exposição ao vírus. Querem saber o que fazer depois, o que é essa história de tomar remédios pós-exposição (tratamento preventivo de urgência, iniciado imediatamente após contato de risco, para tentar impedir a eventual multiplicação do vírus HIV. É feito por alguns meses com drogas anti-Aids). Então vejo que estamos atrasados diante dessas atitudes dos adolescentes. Sem contar a criança de 14 ou 15 anos que está se iniciando no sexo. É muito otimismo imaginar que ela consiga se iniciar sexualmente zelando pela proteção dela e do parceiro. A questão é: esta criança está pronta para tudo isso?
Infelizmente, não. Há o cidadão de meia-idade que voltou a ter relações sexuais muito por conta da existência das drogas contra disfunção erétil e aparece contaminado. E note que falo de pessoas com nível intelectual elevado. Pergunto: como você se contaminou? Ele responde: voltei a ter relação sexual, não quis ou não sabia usar camisinha. É isso o que estamos vendo.
É pior. Ela chega num momento em que passa a acreditar na relação e aí se desprotege. Usa o amor como justificativa. E há uma situação muito mais grave, que é a da mulher soropositiva ou casada com um homem infectado que quer ter filho.
Sempre incentivo a relação quando um é soropositivo e outro não. Mas fico falando 12 horas, explicando que tem de ser uma relação protegida. E explico que se a mulher quiser engravidar darei suporte para fazer isso com maior segurança. Para mim é claro o direito de qualquer mulher de gerar um filho. Mas posso oferecer a forma mais segura. Então falo, falo, falo. E de repente, meses depois, recebo um fax com a foto da mesma mulher, uma pessoa esclarecida, informada, mostrando um sorriso anunciando que está grávida. E eu me cansei de falar: esperem. Primeiro vamos baixar a carga viral, depois trabalharemos com a possibilidade de inseminação artificial (hoje pode-se fazer uma“limpeza” do sêmen para diminuir a possibilidade de contaminação). Aí você atende a pessoa com vontade de pegá-la pelo pescoço. Não é só o fato de estar grávida depois de tudo o que você explicou, mas também a chance de ter se contaminado.
Ah! Acordei à noite e… E eu pergunto: por que não colocou a camisinha? Respondem: ah! não deu! E eu penso: isso não é possível!
Informação não educa. E você não muda comportamento. Estou absolutamente pessimista com projetos que pretendam mudar comportamento. Convença um cara de 50 anos a usar camisinha. Ele tem medo de falhar e não foi treinado para isso. E convença uma mulher a obrigar o parceiro a usar preservativo!
Pois é. E como explicar o fato de hoje existirem pessoas de classe média alta e universitários que acabam de adquirir Aids? A explicação é a de que não se conseguiu ter competência para mudar o comportamento deste indivíduo.
Sim. Há horas em que perco a paciência. Pergunto: por que não usou camisinha quando foi transar? E eles me dizem: Ah! Não usei! Outra coisa que também tenho visto é o indivíduo que chega ao pronto-socorro com Aids e não sabe que tem a doença ou não valorizou o diagnóstico. De repente chega ao hospital com insuficiência respiratória, convulsionando, e vai fazer o diagnóstico na UTI. Isso tem aumentado. Como este cidadão, um médico, um engenheiro, um advogado, se expôs, se contaminou, ficou doente e não sabia, sendo que neste período se passaram seis, dez anos?
Não. Quantas vezes cada um de nós falou desse assunto? Prestem atenção: as coisas que falo são fatos reais. Chega um professor universitário e me fala: estou muito preocupado porque talvez tenha adquirido Aids. Indago: como assim? E ele responde: tive muitas relações extraconjugais e não me protegi. E digo: me explique agora como você vai fazer em casa? E ele me diz: este é o meu problema. Nunca usei camisinha com a minha mulher e agora não posso começar a usar porque ela vai desconfiar.
Digo que está na hora de ele ser responsável. E, se não foi até agora, vai inventar uma desculpa, não vai ter relações com a esposa, ou vai usar camisinha até que tenhamos certeza de que não está contaminado. Porque esta mulher, ou homem, quem quer que seja, tem o direito desta proteção. Não posso admitir que esta outra pessoa seja exposta. Mas aí o sujeito diz: ah! isso é muito complicado. Minha mulher vai desconfiar. É muito difícil.
É uma questão de proteção do ser humano. É por isso que falo desse assunto só com pessoas em quem confio. Já fui visto como preconceituoso, estigmatizante, mas não estou nem aí com isso. A mensagem que interessa não é passada. Não entro no mérito das relações, das preferências. Falo do direito da vida do outro. As pessoas não têm o direito de voluntariamente expor o parceiro ao risco. Se o outro quiser é problema dele. Mas ele tem de saber que corre esse risco.
Informação pontual apenas no Carnaval e no Dia Mundial da Luta contra a Aids não muda nada.
A única coisa que pode alterar o cenário é a educação continuada.
Feita na escola. Mas aí é outra grande decepção. Estive em milhões de programas em escolas. E o que acontece nesses locais, sejam públicos ou privados? Você consegue ultrapassar a direção. Eles o apóiam. Depois você tem de abordar os professores, já que em geral o aluno fala com o professor em quem confia. E aí você chama os pais. No entanto, durante a semana eu nunca consegui competir com a novela das oito. E no sábado e domingo, com o sol da piscina. Ninguém vai. Saio sábado da minha casa, vou em qualquer lugar. Vou junto com outras pessoas, levo um portador de HIV, ficamos nós mais uns dez pais…
Ou os pais estão sabendo tudo ou não estão interessados. E aí vem uma história mais complicada. Há muitos pais que acham que o dever de educar é da escola. E não é. O dever é do pai, da mãe, e depois da escola. E, quando você começa a ouvir as perguntas dos pais, fica assustado. Não é que eles sabem. Na verdade não estão bem informados, mas também não gostam de saber. Porque se souberem terão de discutir com o filho. E cria-se um problema para eles.
Não deu tempo para avaliarmos ainda porque nosso programa é pontual, voltado para a interrupção da transmissão do HIV da mulher grávida infectada para o feto. É preciso falar de educação sim, mas tínhamos de agir nesse momento. As mulheres estavam se contaminando, os filhos morrendo. É difícil falar em prevenção se não há uma atitude efetiva de mudança da realidade. Na primeira vez em que falei em público, uma grávida se levantou na platéia e perguntou o que eu faria para salvar a ela e ao bebê. E eu ia responder o quê? No próximo filho a gente vê o que faz?
Criou-se um projeto nacional de terapia para combater o vírus. Na seqüência, começamos a trabalhar na capital, Luanda, tentando fazer com que os partos ocorressem no hospital. Assim é possível identificar as mulheres contaminadas e dar atendimento a elas. Isso inclui oferta de remédio durante a gestação e assistência e medicamentos na hora do parto para a mãe e o bebê.
Os dados não são definitivos, mas mostram que o programa está mudando a evolução da transmissão materno-fetal em Angola. E no final de setembro implantamos o programa em todas as 18 províncias do país. Estamos caminhando bem. Muitos filhos de mães soropositivas já nascem livres da Aids.