Se a crise é econômica, a saída é política. O presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva começou a campanha batendo na tecla da união da sociedade e terminou com a proposta de realizar um pacto nacional, para unir todas as forças políticas e a sociedade. Lula vai “estender a mão ao José Serra e convidá-lo para compor este pacto”, antecipa um membro da cúpula do PT. Não foi à toa que Lula segurou a língua para não aceitar as provocações dos adversários durante os momentos mais quentes da campanha. Ele não queria esgarçar a ponte para as negociações em seu futuro governo. O presidente eleito sempre se disse amigo de Serra. Costumava contar que chegou a indicar o tucano para o Ministério da Fazenda na gestão de Itamar Franco. E Serra também confidenciou durante a eleição que, vencendo, convidaria o PT para ocupar dois ministérios sociais. José Serra e Lula, de fato, têm biografias políticas muito próximas. Além do aceno público, Lula encarregou o presidente do PT, deputado José Dirceu (SP), de marcar um encontro entre os dois para tentar uma conciliação e reiterar a importância do PSDB nessa união.

O pacto idealizado pelo PT é um binômio que costura maioria ampla no Congresso e a criação de um fórum de notáveis batizado de Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social. Trata-se de um órgão de assessoria para o presidente da República. Um grupo eclético e conflitante que reúne Fiesp, Febraban, CNI, CGT, CUT, Força Sindical, CNBB, MST, ONGs, intelectuais e ex-ministros. “É claro que o presidente não depende deste conselho e vai tomar as iniciativas que forem necessárias”, adianta o líder do PT, João Paulo Cunha (SP). Coordenador do Programa de governo de Lula, Antônio Palocci, prefeito licenciado de Ribeirão Preto, explica que a inspiração partiu dos países europeus. “Na Europa, quase todos os países têm um conselho consultivo deste tipo. Na França, por exemplo, há um conselho bastante ativo”, disse. O esforço pelo pacto é uma tentativa de preservar a credibilidade externa e neutralizar as reações dos setores mais ortodoxos. Na verdade, há meses Lula vem testando na prática a idéia de dialogar com todos. Destacou representantes do PT para negociar projetos comuns com a Bolsa de Valores de São Paulo (Bovespa) e com a Associação Brasileira das Indústrias de Base (Abdib), numa iniciativa inédita em campanha eleitoral. “Vocês vão cansar de tanto conversar com o governo”, disse várias vezes o presidente eleito nas muitas reuniões que teve com empresários durante a campanha.

Treze dias depois do primeiro turno das eleições, Lula ensaiou o que será o conselho. Reuniu-se durante três horas e meia com 90 empresários, sindicalistas e representantes de ONGs em um hotel de São Paulo. O clima foi de paz e amor. No meio da conversa, depois de tanto ouvir Lula tratá-los de companheiros, como sempre fez, o empresário Eugênio Staub, presidente da Gradiente, comentou: “Gostaria de chamá-lo de companheiro também, mas não tenho a estrelinha do PT.” Lula não titubeou. Tirou a sua estrelinha vermelha de metal do paletó, levantou-se e foi até Staub, que saiu da reunião com o adereço pregado na roupa. Ao se despedir do companheiro empresário, Lula lhe contou, ao pé do ouvido, uma história que ilustra que o pacto contaminou até o linguajar das elites: “Staub, outro dia eu estava numa reunião e um dirigente do MST tratou cada um dos participantes por companheiro. Quando chegou no José Alencar (empresário e vice de Lula), ele o tratou de doutor Alencar. Ele se levantou e perguntou por que não mereceu o tratamento de companheiro. Queria ser tratado como os outros.”

No final da reunião, Lula leu um pronunciamento no estilo presidencial, com o título “União pelo Brasil”. A mudança, disse ele, não é obra de um homem só ou de um único partido. “Meu governo terá a marca do entendimento e da negociação. Trabalhamos por uma inédita reunião de forças sociais capaz de produzir os melhores remédios para a crise”, afirmou. Os elogios foram gerais. “Saí da reunião tranquilo. O PT está aberto para o diálogo”, opinou o presidente do Banco Itaú, Roberto Setúbal. “Esse conselho é um espaço no qual todos nós teremos a tarefa de pensar o País”, definiu a empresária Viviane Senna, do Instituto Ayrton Senna.

Apesar de estar aberto a dialogar com todos, incluindo os partidos mais conservadores, Lula pretende pôr em prática o velho sonho de construir um governo de centro-esquerda. Dez entre dez analistas concordam que o País deu uma guinada para a esquerda, tanto no Congresso quanto na Presidência. A contabilidade eleitoral revela que o PT abocanhou 126,7 milhões de votos, o PSDB 84,1 milhões e o PMDB 57 milhões nos seis cargos disputados nesta eleição. “Os números demonstram que a sociedade quer ver implementado um programa de centro-esquerda”, avalia o cientista político Paulo Kramer. O recado das urnas, na opinião dele, é que a população espera ver concretizados programas de distribuição de renda, políticas sociais ousadas, crescimento econômico, redução da pobreza e geração de empregos. Depende, e muito, da consolidação do pacto defendido por Lula. O caminho perseguido pelo PT já foi tentado antes e não é fácil, mas agora parece mais próximo por causa da crise externa que acabará favorecendo uma acomodação interna. “A viabilidade do pacto ficou muito clara quando o PT quebrou as resistências da elite e do setor financeiro, moderando o discurso”, avalia o cientista político Fábio Wanderley dos Reis. “Dá para costurar o pacto durante a lua-de-mel, logo nos primeiros meses do governo. Isso é fundamental”, diz o presidente do PPS, Roberto Freire.

A coalizão de centro-esquerda no Congresso uniria o PT ao PSDB, ao PMDB e aos demais partidos de esquerda, além do PL, o que daria uma bancada governista de 349 deputados e 56 senadores, suficientes até para aprovar as reformas constitucionais. Mas há dificuldades. No PSDB, a tropa de choque do ex-candidato José Serra tem declarado publicamente que descarta a participação no governo do PT. Um dos principais coordenadores da campanha, Jutahy Magalhães (BA), é veemente. “Cabe ao PT governar o sonho abstrato de mudança que ele vendeu”, ataca, antecipando que o partido vai brigar pelo comando da Câmara contra o PT. “Por que temer? Esse será o governo mais fraco desde João Goulart”, repete o ex-ministro de FHC, Arthur Vírgilio (AM). O próprio Serra sempre reagiu mal à coalizão. “O PT é um partido que defende corporações”, criticou recentemente. O presidente FHC também tem dado declarações de que o PSDB deve ir à “oposição consequente”.

Mas o pendor oposicionista de parte do tucanato promete espalhar um bocado de penas. De olho em seu projeto de disputar a Presidência daqui a quatro anos, o novo governador de Minas Gerais, Aécio Neves, vai tentar levar o partido para o pacto. “A situação externa não é favorável. Devemos buscar a governabilidade”, afirma. Entre seus aliados estão outros líderes tucanos. Na quinta-feira 24, Aécio encontrou-se com o senador eleito Tasso Jereissati (CE) para discutirem a formação de um grupo, junto com o governador de São Paulo, Geraldo Alckmin, que tire o partido das mãos dos serristas. Nas redefinições internas deve prevalecer a tese da governabilidade. Caso Aécio leve a melhor, além de verbas para Minas, poderá ter o apoio do PT na escolha de um tucano na presidência da Câmara ou do Senado. Para Serra, a reaproximação com o PT pode evitar o embate com o grupo de Aécio. E, no caso de FHC, o pacto garantiria a tranquilidade do País na fase final de sua era, podendo lhe valer até uma rede de proteção para os primeiros tempos fora do poder.

Além disso, como aponta o líder do PT João Paulo: “O PSDB não é a única opção. O PMDB também é um bom parceiro.” Antes do segundo turno, Lula despachou José Dirceu e o próprio João Paulo para costurar o plano B, que seria buscar uma maioria simples no Congresso, com 268 deputados e 45 senadores, ou seja, excluindo o PSDB e ficando PT-PMDB-PPS-PDT-PSB-PL. Aproveitando-se do fato de que o PMDB esteve junto com o PT em vários Estados, José Dirceu e João Paulo procuraram todos os chefões do partido. Num encontro com o presidente do PMDB, Michel Temer (SP), às vésperas do segundo turno, Dirceu engatilhou: “Michel, precisamos conversar após as eleições.” “Quando você quiser”, retribuiu Temer.

O PT planeja oferecer ao PMDB algumas jóias do poder: a presidência do Senado ou da Câmara e um ministério. “Pretendemos contemplar os dois grupos do partido”, diz um dirigente petista. A idéia ainda não contagiou todos os peemedebistas. Dentro da cúpula, Temer é, até aqui, o mais permeável à governabilidade, mas quer compromissos prévios para negociar o apoio. “Não pode haver desvios radicais nos rumos do País. Ou seja, romper contratos, negar a globalização e deixar sem controle o MST e os radicais.”

Turma do pior – O líder no Senado, Renan Calheiros, aceita falar em governabilidade, mas insiste em um certo oposicionismo: “Temos de
ser oposição, sem dar as costas para a governabilidade, mas ir para o governo seria oportunismo.” A cúpula peemedebista na verdade suspeita que o fracasso do governo do PT é inevitável, o que poderia alçar o PMDB como alternativa daqui a quatro anos. O líder do partido na Câmara, Geddel Vieira Lima (BA), é claro: “Eu não confio no PT. A possibilidade de dar certo é zero”, afirma, prevendo que as primeiras crises vão pipocar em maio, mês de reajuste do salário mínimo e data-base dos servidores públicos. Mas ele diz que se subordinará à decisão do partido. Já estão ao lado de Lula lideranças peemedebistas de peso, como o ex-presidente José Sarney, os senadores Roberto Requião (PR) e Pedro Simon (RS), que podem convocar uma convenção para declarar apoio formal ao novo governo, desautorizando a cúpula já enfraquecida por ter apoiado a candidatura derrotada de José Serra.

O governo petista assumirá o leme com a obrigação de enfrentar uma tempestade econômica e uma agenda cheia, que inclui promessas e uma penca de problemas. “O aumento de preços é uma ameaça. Um índice elevado pode reacender pressões por reposições salariais”, adverte o economista Fábio Giambiagi. “Economistas erram muito. Poderemos ter um tremendo resultado na balança comercial”, rebate o coordenador do programa econômico do PT, Guido Mantega, que aposta no aumento das exportações.

MUITO TRABALHO NO CONGRESSO

Agenda emergencial
Orçamento de 2003 – Não é só aprovar a proposta de FHC, já no Congresso. O PT terá que cortar gastos e esticar receitas.
Salário mínimo – O previsto no Orçamento é de R$ 211. Alcançar os R$ 240, como já defendeu o PT, só com cortes violentos.
Imposto de Renda – O PT terá que decidir como não perde r R$ 1,7 bilhão de receita com o fim do adicional de 2,5 pontos sobre a tabela do IR.
Banco Central autônomo – O Congresso tem até o final do ano para votar mudança na Constituição facilitando a proposta.
Renegociação das dívidas dos Estados – O PT não quer falar nela, mas os governadores vão pressionar na discussão do pacto.
Acordo com o FMI – Em novembro, o PT participa da primeira rodada de negociações. O Fundo pode exigir mais aperto.

Agenda de médio e longo prazo
Reforma tributária – Medida provisória iniciou a minirreforma diminuindo tributos em cascata. Mas é preciso a reforma ampla.
Reforma política – O Senado aprovou o financiamento público de campanhas. Mas ainda falta o voto distrital misto
e a fidelidade partidária.
Reforma previdenciária – Redefinição das fontes de financiamento da Previdência para diminuir a informalidade.• Reforma agrária – Buscar recursos para acelerar desapropriações, reforçar apoio aos atuais assentamentos e fomentar cooperativas.
Reforma trabalhista – Reduzir a jornada de trabalho e reconhecer as centrais sindicais como representantes legais dos trabalhadores.
Programas sociais – Encontrar recursos para os programas de inclusão social que foram promessa de campanha de Lula.

“Lula vai exercera escola da negociação”

 

Antônia Márcia Vale

Com a vitória de Lula, o senador José Sarney (PMDB-AP) volta à ribalta política em grande estilo. Em entrevista a ISTOÉ, Sarney anuncia sua candidatura a presidente do Senado e defende um pacto nacional, que deveria começar uma reforma político-partidária. O senador afirma que a maioria dos integrantes de seu partido já apóia a aliança com o PT e, mais, desafia os descontentes do PMDB para uma convenção:

ISTOÉ – O sr. apoiou Lula desde o primeiro turno. Qual será
o seu papel no governo do PT?
José Sarney –
Eu apoiei o Lula porque acho que era o meu dever ter uma posição como ex-presidente e detentor de um mandato no Senado. Em nenhum momento discutimos cargos. A única coisa que eu sugeri foi restaurar o programa do leite e o Lula aceitou. O meu apoio se deu porque eu considero que a eleição do Lula significa um avanço, uma vez que ele é um homem oriundo da área do trabalho. Num momento em que o Brasil se encontra tão dividido e a área social se encontra tão traumatizada, ele tem condições de conter tensões, não só no setor sindical, mas também no campo. Pode obter concessões também das classes conservadoras e realizar um pacto social histórico.

ISTOÉ – Para fazer esse pacto, o presidente eleito vai
precisar do apoio do Congresso. Ele vai ter condições
de aglutinar essas forças políticas?
Sarney –
O contato mais estreito que eu tenho tido com o Lula me deu a certeza e a segurança de que eu tinha dado apoio à pessoa certa. Ele tem se mostrado um homem de grande experiência de diálogo, grande visão da realidade brasileira. Ninguém pense que ele está achando que não vai ter dificuldades. Ele sabe que será difícil e vai exercer a escola de negociação que teve a vida inteira.

ISTOÉ – Mas o que seria melhor, ele trazer parcelas dos
partidos ou tentar um apoio amplo das legendas?
Sarney –
Acho que o modelo de relacionamento do Executivo com o Congresso está muito vinculado ao arcaico modelo político brasileiro, que remonta ao século XIX. Então, primeiro nós temos que fazer a grande reforma política no País, que vem sendo procrastinada. A falta dela é um empecilho para o aprofundamento da democracia. E, feita a reforma, o contato do presidente com o Congresso se dará através dos partidos.

ISTOÉ – Qual é o prazo para essa reforma?
Sarney –
Eu acho que ela deve ser pensada imediatamente. Nós estamos terminando uma eleição, estamos vendo que é impossível continuar com 37 partidos. Não podemos mais manter esse sistema no qual o inimigo está dentro do partido. Os candidatos brigam entre si dentro dos partidos. Não tem debate de idéias, não tem programa.

ISTOÉ – O seu nome é hoje um dos mais cotados
para assumir a presidência do Senado.
Sarney –
Eu acho que a lembrança do meu nome decorre de eu ser hoje o parlamentar mais antigo do Congresso Nacional. Tenho a memória de todos os acontecimentos que a Casa viveu desde 1955. Em ocasiões passadas eu me neguei a ser presidente do Senado. Não aceitei ser candidato. Mas hoje eu aceitarei. Aceitarei justamente porque acho que posso, com a minha experiência, com o meu estilo, de ponderação e equilíbrio, de diálogo, ajudar a fazer essa reforma política e também ajudar o próximo governo nas dificuldades que ele vai enfrentar.

ISTOÉ – O sr. se preocupa com as pressões externas?
Sarney –
Nós temos aí pela frente a dependência do Brasil do capital estrangeiro e uma situação internacional tensa, com a possibilidade de termos uma guerra. O presidente dos Estados Unidos está empenhado nessa direção, mesmo contra as Nações Unidas. Esses problemas afetam o Brasil. Então não há por que nós aqui não possamos nos unir para passar esse momento de dificuldade.

ISTOÉ – Mas alguns líderes, inclusive de seu partido, estão falando que partem imediatamente para a oposição.
Sarney –
No momento que nós estamos vivendo hoje, de dificuldade, numa crise que não é do Lula, é de uma situação internacional adversa, quem entrar para a política da terra
arrasada estará sendo contra o Brasil.

ISTOÉ – Mas há esse risco. O líder do PMDB na Câmara, deputado Geddel Vieira Lima (BA), diz que vai sair para a oposição.
Sarney –
Nós vamos ter que convocar uma convenção para decidir. A maioria do PMDB apóia o Lula.

ISTOÉ – O sr. sai dessa eleição magoado com o
presidente Fernando Henrique?
Sarney –
Não, eu tenho como regra não guardar mágoas de ninguém. Eu lamento pelo processo, que foi de desestabilização. Como dizem os mexicanos, um “aplanamento”, arrasaram tudo. Foi assim desde o princípio, com o Paulo Renato e o Tasso (Jereissati).