Um dos principais nomes do programa das Nações Unidas para o combate à doença, o médico acredita que a epidemia deve acabar em 15 anos no mundo

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Foi a experiência com as políticas nacionais de enfrentamento à Aids que levou o médico brasileiro Luiz Loures para o Programa Conjunto das Nações Unidas sobre o HIV/Aids (Unaids), em 1996. E foi a competência demonstrada no trabalho que o fez ser recentemente nomeado vice-diretor-executivo do órgão. A chegada do brasileiro a um dos mais altos cargos do Unaids reforça o pioneirismo do País no combate à doença e o reconhecimento de que iniciativas nacionais podem ser bons exemplos para outras partes do globo. Para Loures, grande parte do que se tem atualmente em nível global se deve às ações brasileiras. Ele se recorda de uma de suas primeiras reuniões em Genebra, em 1997, pouco depois de chegar às Nações Unidas. “O establishment todo insistia que não era possível o acesso ao tratamento em países em desenvolvimento. Eu era o único da sala que defendia a ideia, baseado na experiência brasileira”, afirma. Hoje não há mais embate em relação ao assunto. Uma certeza que surgiu ao longo dos anos é que só é possível vislumbrar o fim da epidemia de Aids porque se investiu em tratamento – e o primeiro país a comprovar essa tese foi o Brasil. O cuidado agora, alerta Loures, é não deixar a oportunidade única de controlar a doença ser comprometida pela falta de investimento dos governos.

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"Temos de ser realistas. O HIV é um ‘supervírus’.
Hoje, o que estamos falando é no fim
da pidemia, não em erradicar o vírus"

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"O número de crianças infectadas por HIV
caiu 40% de 2003 para 2011. Só nos últimos
dois anos a diminuição foi de quase 25%"

ISTOÉ

Como o sr. avalia o trabalho do governo brasileiro no combate à Aids?

Luiz Loures

O Brasil pode ser o primeiro país a controlar a Aids. Ele foi o primeiro entre os países em desenvolvimento a dar um passo em direção a uma resposta efetiva à epidemia de Aids. Vale lembrar que, desde o começo, 90% dos casos estão no Sul, não no Norte. Além disso, o País agiu corretamente quando, em uma fase bastante preliminar, optou pelo acesso universal e gratuito ao tratamento.

ISTOÉ

Essa escolha pode ser considerada a chave para o sucesso do programa brasileiro?

Luiz Loures

Sim. Isso ocorreu em uma época em que o mundo todo, e principalmente os países desenvolvidos, eram contra o tratamento. Achavam que seria muito caro e que o vírus criaria resistência. Mesmo assim o Brasil deu esse passo. Hoje temos evidências de que o tratamento em larga escala é uma das formas mais efetivas para se prevenir a transmissão. Tratando-se, há uma possibilidade de redução da transmissão de 96% em casais nos quais um é positivo e o outro é negativo. Quem trata não transmite. Além disso, o Brasil combinou progresso científico e mobilização social desde muito cedo, o que foi muito positivo.
 

ISTOÉ

Quando o sr. fala em fim de epidemia, qual é o prazo?

Luiz Loures

Quinze anos é um tempo seguro. Essa estimativa se baseia na minha experiência e no tempo gasto para que tivéssemos o coquetel disseminado no mundo em desenvolvimento e principalmente na África. No início dos anos 2000 o tratamento começou a ser disseminado entre os países do Sul e levou dez anos para que isso atingisse a escala esperada.

ISTOÉ

No Brasil, que está em um estágio mais avançado, pode ser que ocorra antes?

Luiz Loures

Sem dúvida. Quinze anos é para dar uma estimativa mais confortável, baseando em uma análise histórica. A batalha final será a mais difícil. Globalmente, hoje, estimamos oito milhões de pessoas em tratamento. É a primeira vez que temos mais gente recebendo o medicamento do que na fila de espera para se tratar. Cerca de sete milhões teriam plena indicação para receber o coquetel, mas estão sem acesso. Esses sete milhões serão mais difíceis de acessar que os outros oito milhões já acessados.
 

ISTOÉ

Por quê?

Luiz Loures

Porque são as pessoas em situação mais complicada. Na Europa do Leste, por exemplo, apenas 22% estão em tratamento. Na Ásia, os remédios chegam a apenas metade dos pacientes. Na África, mesmo com todo o progresso, ainda há dificuldade em alguns segmentos populacionais. Fundamentalmente são indivíduos que pertencem a grupos vulneráveis, como, por exemplo, os usuários de drogas ou os gays em países onde há restrições à homossexualidade.
 

ISTOÉ

A parte mais difícil será atingir esses grupos vulneráveis?

Luiz Loures

Sim. Porque é onde também existe mais discriminação. A gente sabe o que fazer, tem os instrumentos científicos, tem a experiência, mas as restrições estão relacionadas ao acesso aos direitos humanos. Por exemplo, a questão dos usuários de drogas: há políticas bem-sucedidas de redução de danos para barrar essa transmissão, mas essas iniciativas não são aceitas em países nos quais o usuário de drogas é tratado como caso de polícia e não como de saúde – o que ainda ocorre na Europa do Leste. O mesmo vale onde a relação homossexual é penalizada com pena de morte. Não se pode esperar que nesses lugares um gay masculino busque atendimento abertamente.

ISTOÉ

Mesmo nos países em que há boas políticas de combate à Aids, como o Brasil, a taxa de infecção estacionou. Isso não atrapalha os planos de erradicação da doença?

Luiz Loures

A epidemia e a resposta a ela não evoluem de uma maneira linear. A experiência mostra que a evolução é feita em ondas. Reduz-se o número de pessoas sob risco até se chegar a um ponto em que ficam só as parcelas mais difíceis da epidemia. É o que vem acontecendo nos países que estão avançando mais: eles estão batendo justo nessa barreira. Um exemplo é o paradoxo da dinâmica entre gays. Se por um lado avançamos com os programas de prevenção, tratamento e inclusão social, por outro observamos o crescimento da contaminação entre jovens.

ISTOÉ

E como vencer esse paradoxo? Como conseguir um equilíbrio entre acabar com o estigma contra quem tem Aids e, ao mesmo tempo, mostrar que é uma doença perigosa?

Luiz Loures

Talvez esse seja nosso maior desafio. A epidemia não acabou. Políticas têm de ser revistas e é preciso dar mais atenção a algumas populações. Crianças e adolescentes devem ser os focos principais. Esses públicos precisam aprender a lidar com a noção de risco relacionada à Aids e a outras doenças sexualmente transmissíveis. Para isso, porém, é preciso ter abertura da sociedade para se falar sobre sexualidade desde cedo. E aí ainda existe uma barreira.

ISTOÉ

O senhor fala da erradicação da epidemia, não da doença. É utópico crer que o vírus será erradicado?

Luiz Loures

Temos de ser realistas. O HIV é um “supervírus”. Um dos maiores desafios que ele apresenta do ponto de vista de desenvolvimento de uma vacina é a sua capacidade de mudança.

ISTOÉ

Vacinas contra o HIV estão longe de ser uma solução viável?

Luiz Loures

Há esperanças de uma vacina, mas não seria correto dizer que caminhamos hoje no mesmo passo em direção a erradicar o vírus e controlar a epidemia. O que estamos falando é no fim da epidemia, em reduzir as taxas de transmissão para níveis não epidêmicos.
 

ISTOÉ

Cortes financeiros vêm sendo realizados nos órgãos das Nações Unidas devido à crise. Como está o orçamento da Unaids?

Luiz Loures

A Unaids tem resistido à crise até pela importância da epidemia, mas o que as Nações Unidas como um todo empregam no controle à Aids é uma parcela pequena se considerado o gasto mundial. Estima-se que em 2011 o gasto global com a Aids foi de US$ 17 bilhões. Ainda são necessários pelo menos 30% mais de recursos e tem havido uma mobilização muito grande, apesar da crise financeira.

ISTOÉ

Alguns países europeus têm anunciado o corte do acesso de estrangeiros ilegais ao coquetel. Isso pode ameaçar os bons resultados globais no controle da epidemia?

Luiz Loures

Estrangeiros devem ter acesso à prevenção, ao tratamento e ao cuidado onde quer que eles estejam. O vírus não respeita barreira geográfica, nem de onde é seu passaporte ou se você tem ou não um passaporte. O acesso não é um benefício ao indivíduo, mas sim uma questão de segurança social.

ISTOÉ

O Plano Global para a Eliminação de Novas Infecções do HIV em Crianças tem como prazo para seu cumprimento o ano de 2015. É uma meta alcançável?

Luiz Loures

Sim. O número de crianças infectadas por HIV caiu 40% de 2003 para 2011. Só nos últimos dois anos a diminuição foi de quase 25% e isso tem acontecido nos países com os maiores volumes de transmissão de mãe para filho. Não é uma tarefa fácil, mas existe uma forma relativamente simples de cumpri-la, basta decisão política. Há, claro, fatores que vão além da epidemia de Aids, como o acesso ao pré-natal, mas o crescimento recente e importante no número de mulheres que o tem acessado nos dá esperanças.

ISTOÉ

Outra questão quando se fala em Aids é o subdiagnóstico. Só no Brasil, cerca de 135 mil pessoas têm o vírus e não sabem. Como melhorar isso?

Luiz Loures

Esse é um problema sério e especialmente importante hoje, que sabemos o que fazer e o que oferecer para o indivíduo soropositivo. É preciso quebrar o tabu do teste. Ele não pode ser visto como um bicho de sete cabeças. São necessárias campanhas massivas de acesso ao exame, como o Brasil fez recentemente. Essa é, inclusive, uma das minhas prioridades a partir de agora.

ISTOÉ

No último ano, José Graziano assumiu a direção da FAO devido à sua experiência com o Bolsa Família. Agora o senhor passa a ocupar um dos postos mais importantes da Unaids também por causa da sua experiência no programa brasileiro de erradicação da Aids. As experiências brasileiras estão, finalmente, sendo reconhecidas internacionalmente?

Luiz Loures

Sim. Aprendi a lidar com a Aids e com políticas públicas para a doença no Brasil. Já estou fora há mais de 15 anos, mas sempre uso a experiência brasileira. Em qualquer fórum internacional, as políticas brasileiras de combate à Aids são as mais avançadas e as mais inclusivas. Você citou o exemplo do Graziano e as políticas brasileiras de combate à fome. O Brasil está dando exemplo nessa área e continua dando exemplo em relação à Aids. Somos uma liderança em nível internacional nesses assuntos, isso é incontestável e esse espaço deve ser reivindicado.

ISTOÉ

Qual o maior desafio do sr. no novo cargo na Unaids?

Luiz Loures

Passar a mensagem de que a epidemia não acabou, mas que, por outro lado, nós nunca tivemos uma chance tão boa de controlá-la. Será um erro histórico comprometer essa possibilidade por causa de uma crise econômica ou qualquer outra coisa. Costumo dizer, aos economistas, em especial, que ou pagamos a conta agora ou vamos pagar muito mais caro se deixarmos para mais tarde.