A aprovação de uma lei que proíbe o uso do véu islâmico, do quipá judaico, do crucifixo cristão e de outros “símbolos religiosos ostensivos” nas escolas públicas da França deixou o país em polvorosa. País laico por excelência, a França se vê hoje diante de um intenso debate – que até extrapolou suas fronteiras – sobre o pluralismo cultural e suas possíveis ameaças à laicidade do Estado. O projeto de lei, que na terça-feira 10 recebeu 494 votos a favor e 36 contra na Assembléia Nacional (Parlamento) e deve ser ainda aprovado pelo Senado para entrar em vigor em setembro, foi formulado para evitar a propagação de fundamentalismos no ensino público. Mas a comunidade islâmica francesa – a maior da Europa, com cinco milhões de integrantes – acabou sendo alvo principal dessa lei. De fato, depois da nova intifada no Oriente Médio, em 2000, acirrou-se o confronto entre as comunidades judaica e muçulmana na França. Em dezembro passado, o presidente Jacques Chirac alertou para o aumento de casos de anti-semitismo. Na escola pública francesa, alguns muçulmanos se recusam a estudar o Holocausto ou a teoria evolucionista de Darwin. Outras alunas islâmicas foram expulsas por se recusar a tirar o véu em sala de aula. Tudo isso fez com que o tema saísse da sala de aula e caísse como uma bomba no plenário da Assembléia. “O que está em questão”, disse o deputado francês Jean Louis Debré, “é que a escola pública é lugar para aprender e não para a militância religiosa ou o proselitismo”.

Apesar de o governo negar que a nova lei tem como alvo preferencial o islamismo, o véu tornou-se o maior símbolo da queda-de-braço entre o governo francês e a comunidade muçulmana. Considerado no Ocidente como um marco da repressão à mulher, os islâmicos argumentam que o uso do hiyad está no Corão e, portanto, na lei divina. Entre as lideranças muçulmanas, é frequentemente citado o exemplo das freiras católicas que cobrem o corpo inteiro e não são incomodadas pela comunidade. Existem aqueles que acreditam que o banimento do véu possa ser usado como bandeira dos muçulmanos para confirmar a tese de que há uma perseguição religiosa aos islâmicos desdesde o 11 de setembro de 2001. A proposta do governo tem o apoio de cerca de 70% dos franceses e 49% das muçulmanas. Mas o presidente Chirac, que ganhou popularidade entre a comunidade islâmica posicionando-se contra a invasão do Iraque, perdeu muitos pontos entre os muçulmanos com essa nova lei. Alguns defensores de direitos humanos dizem que a regra esbarra no direito religioso. “A proibição de que estudantes usem símbolos religiosos nas escolas francesas viola o princípio da liberdade religiosa”, afirmou a ISTOÉ Reed Brody, da organização não-governamental Human Rights Watch. Entre esses símbolos religiosos está também o turbante usado por cerca de sete mil sikhs no país. Na Índia, aliás, manifestantes foram às ruas protestar contra a lei francesa.

A França, que há quatro décadas abriga imigrantes de suas ex-colônias, a maior parte oriunda do norte da África, tem uma história peculiar de integração dos imigrantes muçulmanos. A comunidade islâmica é marjoritariamente de renda mais baixa e menos qualificada e, portanto, uma das mais afetadas pela crise do desemprego nas últimas duas décadas. Paralelamente, nesse mesmo período o islamismo se fortaleceu em toda a Europa Ocidental e ofereceu aos jovens muçulmanos uma identidade cultural. No Reino Unido, por exemplo, os imigrantes se reúnem em guetos e têm maior dificuldade de integração. Já na França, é maior o número de casamentos mistos entre os imigrantes e seus descendentes e os franceses. A França também reserva uma atenção especial às políticas de imigração e estabeleceu até um Alto Conselho de Integração para cuidar desses assuntos. No vizinho britânico, o uso do véu, por exemplo, não é uma questão de Estado, mas entidades muçulmanas recebem subsídios do governo para suas escolas. Lá, 12 muçulmanos estão na Câmara dos Comuns representando a comunidade islâmica, enquanto os islâmicos na França não são representados politicamente. Existe o argumento de que a falta de perspectiva de ascensão econômico-social é um prato cheio para fomentar o fundamentalismo.

O professor como juiz

– Mas, como bem argumentou o sociólogo francês Alain Touraine, “o contra-ataque ao chamado fundamentalismo não terá o menor sentido se não ajudar a opinião pública a conviver com a ascensão do pensamento e das atitudes propriamente religiosas. Há muito se tornou impossível sustentar o racionalismo universalista que conheceu o esplendor no século XVIII, mas se revela ridículo numa época em que os pluralismos culturais estão em toda a parte, seja pelo bem, seja pelo mal”. Em termos práticos, não basta a vã filosofia. Enquanto correm os debates sobre a herança do Iluminismo no Estado francês, a escola pega fogo. Na implementação dessa nova lei, poderá caber à direção do colégio ou até mesmo ao professor a tarefa de julgar

o aluno de acordo com sua indumentária. Professores particulares e cursos a longa distância poderão ser alternativas para as estudantes muçulmanas. Mas, assim como as escolas privadas, esses cursos são pagos e de difícil acesso para uma comunidade de baixa renda. “A origem dos conflitos é social. E está relacionada à incapacidade da economia francesa (e européia) de chegar às camadas mais pobres, frequentemente formadas pelos imigrantes que acabaram de chegar”, afirmou sabiamente Gilles Kepel, professor do Instituto de Estudos Políticos de Paris. O debate ainda vai longe. Uma vez implementada, a lei terá um ano para ser avaliada.