João Carlos Sundfeld (PFL), prefeito de Pirassununga (SP), foi cassado e todos os seus bens estão bloqueados pela Justiça paulista; Umberto Alves da Silva (PDT), prefeito de Martinho Campos (MG), perdeu seu mandato em setembro de 2003 e só continua no cargo por força de uma liminar; Antônio Calixto Portela (PDT), prefeito de Avanhandava (SP), foi afastado do cargo e, no final de janeiro, o prefeito de Carmo do Cajuru (MG), Souza Vilela (PPS), também foi cassado. O que há em comum entre eles é o fato de terem sido acusados de desviar dinheiro destinado à educação fundamental, através de contratos celebrados com o Instituto de Tecnologia Aplicada à Informação (Iteai). Os quatro, porém, são apenas a parte já visível de um golpe que vem se repetindo em todo o País nos últimos três anos. Documentos obtidos por ISTOÉ e posteriormente encaminhados à Procuradoria da República indicam que o Iteai pode estar protagonizando um milionário esquema de desvio de dinheiro do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e de Valorização do Magistério (Fundef). Na tramóia, só agora investigada nacionalmente, estão centenas de municípios, há indícios de distribuição de propinas para prefeitos e superfaturamento. Contratos exatamente iguais aos que levaram à cassação dos quatro prefeitos foram celebrados pelo Iteai com pelo menos mais 220 municípios.

“O desvio de dinheiro é superior a R$ 60 milhões”, afirma o advogado Antônio Carlos Bueno Barbosa, ex-prefeito de Pirassununga e o primeiro a denunciar o esquema. O Iteai foi criado em agosto de 1997 e seus estatutos estão registrados sob o número 25.033, no cartório do 1º Ofício de Brasília. No papel, trata-se de uma sociedade civil sem fins lucrativos e com objetivos nobres, como o de promover a inclusão digital de alunos das escolas públicas de todo o Brasil. Na prática, porém, a ação do instituto parece ser bastante lucrativa. Pelo menos é isso o que ilustra um caderno espiral, tamanho universitário, onde estão manuscritos os registros da movimentação financeira do instituto em 2001. Apenas entre 3 de agosto e 28 de dezembro daquele ano, o Iteai emitiu 1.289 cheques do Banco do Estado de Goiás que totalizam
R$ 11 milhões. O mesmo caderno, já em poder do procurador da
República Mário Lúcio de Avelar, revela indícios de que boa parte desse dinheiro foi usada para pagar propinas aos prefeitos que assinaram os contratos com o instituto.

Em 10 de outubro de 2001, o Iteai emitiu quatro cheques para um destinatário identificado como “IT”. Segundo uma ex-funcionária
do instituto, “IT” representa Itutinga, nome da cidade mineira com
pouco mais de quatro mil habitantes e receita mensal de R$ 240 mil, que em setembro de 2001, sem licitação, assinou contrato com o Iteai. Um dos cheques, o de número 404.197, no valor de R$ 18.750 foi datilografado e depois endossado por Antônio Alves de Paiva (PTB), o prefeito da cidade. “Compramos dez laboratórios de informática, mas depois percebemos que eles não eram sérios e cancelamos tudo. Essa assinatura no cheque não é minha”, disse o prefeito a ISTOÉ. “Não tenho nada a ver com isso.” Itutinga recebeu apenas um laboratório composto por dez microcomputadores que estão há dois anos encaixotados numa sala anexa ao gabinete do prefeito e jamais foram para alguma escola pública da cidade.

A Prefeitura de Leme, no interior paulista, assinou contrato com o Iteai em 27 de julho de 2001 e, posteriormente, dois aditivos
que totalizam R$ 1.581.249,53. Em 8 de agosto, o instituto emitiu três notas fiscais destinadas à Prefeitura de Leme, referentes a três parcelas dos contratos, cada uma no valor de R$ 52.708,33. Um dia antes, a prefeitura havia emitido as notas de empenho para que fosse feito o pagamento das notas, o que se concretizou em 17 de agosto. No caderno de contabilidade do Iteai, em 8 de agosto, mesmo dia da emissão das notas fiscais, está registrada a emissão de dois cheques (números 439283 e 439284), que totalizam
R$ 186 mil. Como destinatário dos cheques aparece o código “LE”, que, segundo a ex-funcionária do instituto, significa Leme. “Tudo aqui foi correto. O Iteai insistiu para que não houvesse licitação, mas insistimos para que houvesse e não teve disputa porque só o Iteai ofereceu proposta e o que vendeu foi entregue”, afirma o prefeito Geraldo Macarenko (PTB). Quando colocado diante da relação dos cheques emitidos pelo Iteai, ele respondeu: “Se alguém aqui levou alguma coisa, não fui eu.” No final do ano passado, a vereadora petista Bel Parolim tentou criar na Câmara Municipal uma comissão para investigar o caso. Mas, como o prefeito tem a maioria no Legislativo, a comissão não foi aprovada. No Ministério Público local, uma ação civil pública se arrasta desde o segundo semestre de 2003.

Perícia – De acordo com os registros feitos no caderno contábil, além de Leme e de Itutinga, outras 15 cidades de São Paulo, Minas, Rio Grande do Sul, Santa Catarina e Goiás estão codificadas na relação de beneficiários dos cheques do instituto. “O Iteai opera de modo semelhante em todas as cidades”, explica o promotor de Pirassununga, José Carlos Galucci Thomé. “Oferece a implantação de programas de ensino com laboratórios de informática. Convence os prefeitos, que estão vendendo 170 softwares exclusivos com treinamento para os professores. Afirmam, em contrato, que os computadores são doação. Assim, em muitos casos consegue a dispensa da licitação. Mas, na verdade, tudo é feito para iludir. O que eles fazem é a venda de computadores sem origem, com programas piratas e um único software. Tudo superfaturado.”

Em junho do ano passado, um laudo técnico elaborado pela Magnus Auditores e Consultores, de Belo Horizonte, a pedido da Câmara
Municipal de Martinho Campos, comprovou todas as afirmações feitas pelo promotor de Pirassununga.

Segundo os peritos Mário Lúcio dos Reis, André Luiz Rocha Roberto e Vander de Castro Neves, o software vendido pelo Iteai (projeto Despertar) “utiliza técnicas de ensino e metodologia de domínio geral. Não apresenta licença de uso nem registro de propriedade exclusiva.” Mais adiante os peritos afirmam: “Existem empresas que fornecem softwares semelhantes aos do Iteai, por preços bem mais baixos e com licença de uso.” Os peritos também constataram que o Iteai, em vez de entregar 170 softwares, entrega apenas um, composto por 170 aulas. É o mesmo que vender um livro como se cada capítulo dele fosse um livro diferente.

Embora todos os contratos feitos pelo Iteai estipulem que os computadores serão doados, os peritos entenderam que eles são o
que de mais significativo existe nos contratos do instituto. O problema, novamente, é o preço. Segundo os peritos, o Iteai recebe cerca de
R$ 5 mil por cada computador que, em 2001, poderia ser comprado
por R$ 1,5 mil em qualquer loja do Brasil.

Outras irregularidades – Em Leme (SP), a nota fiscal entregue pelo instituto indica uma série de problemas. O primeiro desmente o próprio contrato, pois a nota número 1990 emitida em 16 de agosto de 2001 pela TechShop, nome fantasia da Global Tech Informática Ltda., de Brasília, revela que a compra de 45 computadores foi feita pela Prefeitura de Leme (destinatária da nota) e não pelo Iteai. “Isso não quer dizer nada, a nota serviu apenas para o equipamento circular nas estradas”, diz Cristhian Alves, assessor jurídico da prefeitura. O outro problema é mais grave. A procuradoria da República já sabe que a Global Tech está inapta diante do Cadastro Nacional de Pessoa Jurídica (CNPJ) e não está habilitada na Secretaria da Fazenda do Distrito Federal. Trata-se, portanto, de uma empresa fantasma.

O ex-diretor responsável pelo Iteai é Helder Rodrigues Zebral, cidadão capaz de se multiplicar. Condenado em primeira instância pela Justiça Criminal de Brasília pelo crime de apropriação indébita, em 10 de abril de 2001 ele conseguiu assinar contratos na mesma tarde em Triunfo, no Rio Grande do Sul, e em Niquelândia, em Goiás. Antes de criar o Iteai, Zebral atuou no Idec, instituto que operava da mesma forma que o seu sucessor. Para explicar as denúncias que estouram em diversos municípios, o Iteai apresenta basicamente dois argumentos. O primeiro é o parecer favorável do Tribunal de Contas de Minas Gerais a alguns dos contratos firmados no Estado. O outro é uma sentença proferida por Marco Ligabó, juiz de Cambuí (MG). Lá, a promotora Vera Adriana Cordeiro denunciou a falcatrua, mas o juiz extinguiu o processo antes mesmo de ser feita qualquer perícia. A promotora recorreu e o caso está para ser julgado. “Houve um absurdo, não tivemos nem mesmo a oportunidade de apresentar os elementos de que dispomos para provar a fraude”, reclama Vera. É certo que de agora em diante, com a investigação protagonizada pela Procuradoria da República, decisões tão contraditórias, como as que cassam prefeitos e as que impedem a apuração dos fatos, tenham fim.

 

“ É tudo eleitoreiro ”

Presidente do Iteai desde abril do ano passado, Hamilton dos Santos assegura que todas as acusações feitas contra o Instituto não são verdadeiras. Santos confirma que o Iteai mantém contratos semelhantes com mais de 200 prefeituras no País, mas ressalva que e em menos de 2% foram encontrados problemas. “Isso é tudo eleitoreiro. Há cidades em que a oposição ao prefeito é forte e nós entramos de gaiatos nas brigas políticas”, afirmou na quinta-feira 12. Segundo Santos, os cheques emitidos pelo Instituto e tratados na denúncia como propinas são, na verdade, entregues a supervisores do instituto nas cidades para que sejam comprados os equipamentos.

“Nosso trabalho é elogiado até pelo Ministério da Educação, pois estamos levando a informática para milhares de alunos de todo o País e também para os professores, que são capacitados e passam a ter acesso a uma série de informações que antes não detinham”, diz o presidente. Santos também assegura que o advogado Antônio Carlos Bueno, ex-prefeito de Pirassununga (SP), já responde a nove processos por espalhar denúncias contra o Iteai.