A literatura está cheia de cenas em que, no metrô parisiense, o protagonista se vê cercado de leitores, absorvidos na leitura de um romance. A má notícia é que definitivamente isso é tão passado e romântico quanto a ideia de consertar eletrodoméstico quebrado – em vez de jogá-lo fora e comprar um novo, pagando bem menos. Os parisienses, agora, como o resto do mundo, viajam de metrô olhando, absortos, para seus aparelhos celulares.

O escritor Ray Bradbury, no seu romance “Fahrenheit 451”, publicado em 1953, pensou num futuro assustador, em que as cidades estariam abarrotadas de telas gigantes, onde seriam projetadas imagens de perseguições e detenções, 24 horas por dia, que monopolizariam a atenção dos transeuntes.

Quase 60 anos depois, dá para dizer que Bradbury só errou no tamanho da tela.

A verdade é que estamos obcecados pelos nossos celulares. Amamos nossos telefones de tal forma que ninguém mais se atreve a colocá-lo no bolso da calça ou dentro da bolsa. Eles são carregados como se fossem santos de barro. Com toda a reverência. Nos restaurantes, ficam visíveis nas mesas e, se bobear, recebem mais atenção do que o amigo chato ao lado. Claro que isso tem uma explicação. Telefone hoje é entretenimento. A vida que rola aqui fora, no mundo real, com as pessoas reais, rola muito mais rápida, mais intensa e mais divertida dentro de um telefone, que baixa músicas, filmes, fotografa, manda mensagens, fotos, se conecta com Facebook, Orkut, localiza endereços, pessoas, sem jamais perder sua função básica: estar disponível para quem quiser entrar em contato.

(A teledramaturgia deu sinais de que assimilou a mudança dos tempos e se reinventou. Se tiver oportunidade, preste atenção nos seriados “Wallander” ou “The Killing”, que certamente estão fazendo sucesso por aí também. Note que as tramas acontecem por telefone. É sempre a mesma coisa: duas pessoas conversam sobre o nada em geral até que o telefone toca e revela a ação em particular, que já ocorreu. E de chamada em chamada, a história vai se construindo. Não seria de todo mal se nomeássemos essa nova dramaturgia. Aí vai minha sugestão: telefodrama).

Além disso o celular traz emoção às coisas rotineiras. Por exemplo, antigamente ir ao banheiro significava apenas isso: ir ao banheiro. Hoje, você vai ao banheiro e usa o seu celular para postar no Twitter: “No toilette.” Muito melhor do que defecar no anonimato (ops, fui mal no exemplo). E quando você come, você “tuíta”: “Almoçando frango com polenta.” Dessa forma, até a Madonna pode saber que você está comendo frango com polenta. É só ela se interessar por você. Isso não é sensacional?

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Agora pense na pergunta clássica: quem você levaria para uma ilha deserta? Uma pessoa só? Para depois se aborrecer com ela? E correr ainda o risco de ganhar um inimigo?

Muito melhor levar um celular. Com ele, você é autossuficiente e não precisa de ninguém, nem da realidade. O mundo inteiro está ali, na palma da sua mão.

Claro que estamos cada vez mais solipsistas, mas e daí?Já fomos comunistas, existencialistas, niilistas, materialistas, budistas, qual o problema de sermos mais um “ista”, que adora o seu próprio umbigo?

Esse é só o início de uma nova era. O telefone é entretenimento, num mundo em que, cada vez mais, a única coisa que importa é isso mesmo: entretenimento. .

Patrícia Melo é escritora 


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