Se existia um inferno na terra, aquele era o lugar. O edifício do Departamento de Ordem Política e Social, o Dops, no centro de São Paulo, foi uma espécie de templo da tortura de presos políticos durante o Estado Novo (1937-1945) de Getúlio Vargas e na ditadura militar (1964-1985). O órgão funcionou como braço forte da repressão, sempre em nome da segurança nacional. Do escritor Monteiro Lobato ao sindicalista Luiz Inácio da Silva, o Lula, centenas de famosos e uma multidão de anônimos, personagens que ajudaram a escrever a história brasileira durante décadas, ficaram detidos nas dependências do prédio. Um dos últimos edifícios históricos paulistanos a ser tombados, em 1999, o antigo Dops foi restaurado e acaba de virar o Museu do Imaginário do Povo Brasileiro, inaugurado na quinta-feira 4. Dentro, quem poderia imaginar, está o Memorial da Liberdade, junto às antigas celas. O projeto de reforma, desenvolvido pelo governo paulista, custou R$ 12 milhões, dinheiro saído dos cofres estadual e federal.

Construído em 1914, projetado pelo arquiteto Ramos de Azevedo, o edifício, de 8.500 metros quadrados, funcionou como uma estação da Estrada de Ferro Sorocabana. Nos anos 30, foi ocupado pelo Dops e passou por inúmeras modificações. Desde então até o início dos anos 80, torturadores reinaram soberanos nos seus corredores. O mais famoso deles foi o delegado Sérgio Paranhos Fleury, que fez o diabo nas salas escuras do prédio, de 1956 a 1978. Fleury foi o algoz de incontáveis opositores da ditadura, entre eles os guerrilheiros Carlos Marighella, fundador da organização Aliança Libertadora Nacional. Foi também o temido delegado, comandante do Esquadrão da Morte, quem criou o “cargo” de coveiro secreto do Dops, um oficial destacado para fazer os enterros clandestinos dos militantes que morriam vítimas do pau-de-arara, da cadeira-do-dragão, do choque elétrico. Por estas e outras, há quem diga que era preciso benzer o lugar antes de reinaugurá-lo.

A sugestão é do vereador Adriano Diogo (PT-SP), que integrou a ALN e ficou detido alguns meses em 1974. “Aquele prédio tem o cheiro maldito da morte. Fiquei marcado pela imagem de um companheiro que estava com escorbuto (doença caracterizada pelo enfraquecimento geral e tendência a hemorragias) e já não tinha mais gengiva. Ele ficou meses sem tomar banho de sol”, lembra. Segundo o vereador, o delegado Fleury, bêbado, passava madrugadas chutando com violência as portas das celas e fazendo ameaças: “Eu vou matar vocês! Seus comunistas!” Em sua sala, uma luz vermelha era o sinal: “Quando estava acesa, sabia-se que alguém estava sofrendo lá dentro”, conta o deputado José Genoíno, candidato ao governo paulista pelo PT. Genoíno passou 15 dias “conquistando” o carcereiro para ganhar um banho de chuveiro. “Eu só tomava banho de caneca, mas pedi tanto que um dia o carcereiro deixou. Lembro que tinha jogo do Corinthians, acho que ele estava feliz”, diz o deputado, que passava horas cantando as músicas censuradas pelo regime.

Genoíno ficou detido no chamado “fundão”, um prolongamento construído no edifício que alterou a arquitetura original. Os famosos “puxadinhos”, levantados para abrigar os presos, deixaram de existir depois da reforma que transformou o lugar em museu. Alguns dos ex-militantes lamentaram. “Eles modificaram demais. Até as nossas inscrições nas paredes foram tiradas”, reclama Maria Amélia Telles. Segundo o secretário estadual de Cultura, Marcos Mendonça, os vestígios deixaram de existir ainda nos anos 80. “De 83 a 97, o prédio abrigou a Delegacia do Consumidor e algumas salas viraram verdadeiros depósitos de mercadoria apreendida. Tudo foi alterado”, garante.

Quatro celas ainda estão de pé, devidamente iluminadas e
climatizadas para abrigar exposições, no lugar conhecido como
“porão do Dops”. Na realidade, trata-se do térreo, mas os presos
tinham a impressão de estar abaixo porque entravam pelo primeiro andar. Hoje, há luz no porão. O piso nem de longe lembra o chão de madeira esburacado de onde saíam ratos e baratas. As paredes estão novas na pequena área do banho de sol. Apenas as portas e grades das celas são originais. Ali está agora o Memorial da Liberdade, onde uma exposição interativa vai contar a história do prédio. No último andar, a mostra Cotidiano vigiado vai expor documentos preciosos dos arquivos do Dops e os visitantes poderão ouvir depoimentos inéditos dos que passaram maus bocados no número 60 da rua Mauá. O governo ainda promete preencher algumas paredes com os nomes de todos os ex-presos. O lugar, que guarda parte da história da repressão política no País, agora servirá também para lembrar os que resistiram.

Anjo do cárcere

De longe, tudo era festa. Muitos abraços, sorrisos carinhosos de velhos companheiros de luta que não perderam a esperança de ver um País mais justo, menos desigual. De perto, uma lágrima ou outra no rosto de alguns convidados traziam à tona o lado mais sombrio da história brasileira: a tortura na ditadura militar. É nesse cenário de terror dos anos 70 que o jornalista e vereador de Salvador Emiliano José (PT) apresenta à sociedade brasileira aquele que foi, além do unguento de muitas dores, peça-chave nas greves de fome dos presos políticos, no contato com as famílias, na luta contra a tortura e pela anistia. No livro As asas invisíveis do padre Renzo Rossi, lançado na quarta-feira 3, em São Paulo, na sede da editora Casa Amarela, Emiliano conta a história de um personagem cuja atuação de resistência e solidariedade foi revelada por ISTOÉ em setembro de 1999 na edição 1561. São 432 páginas sobre Renzo e seu trabalho com os presos políticos. “Pude testemunhar o início da atividade dele nas prisões e sua solidariedade aos presos políticos durante sete anos (de 1974 a 1980), correndo todos os riscos. Ele rodou 14 presídios e dez países do mundo visitando presos e divulgando a anistia”, afirma o escritor.

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Para Maria Amélia de Almeida Telles, presa e barbaramente torturada no Doi-Codi paulista por ser militante do PcdoB, o padre nascido em Florença, na Itália, mas que se diverte ao afirmar que é baiano, “foi o articulador de uma rede invisível entre os presos”. Emocionado, o candidato do PT ao
governo de São Paulo, José Genoíno, preso
durante a guerrilha do Araguaia, definiu Renzo
como “uma espécie de elixir de esperança e de amor para nós da cadeia. Se existe eternidade, é esse tipo de relação”.

Para esse padre – que não era um progressista em termos doutrinários – correr risco para manter a rede de informações dos presos “era uma coisa normal, que qualquer pessoa poderia ter feito”. Renzo, que deixou o Brasil em 1997, conta que sofreu duas grandes conversões: a primeira delas nos anos 50, quando conviveu com os operários de uma fábrica em Florença, a maioria atéia e ligada ao PC italiano. A segunda, se deu ao estreitar relações com os presos políticos no Brasil. “Eu era um pouco conservador. Mas descobri que aquele que não tem fé é capaz de se sacrificar, enfrentar a prisão, a tortura. Às vezes, Deus permite que alguém perca a fé para recuperar a esperança. Isso ajudou a entender o meu sacerdócio.” O livro será lançado na terça-feira 9, no Mosteiro de São Bento (BA) e na Igreja de São Paulo, na periferia de Salvador, onde Renzo começou seu trabalho religioso no Brasil, nos anos 60.

Ana Carvalho


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