Tabela de preço de propina para trabalhar, dinheiro embrulhado em jornal e muito fogo cruzado. Os depoimentos de empresários do setor de transportes à CPI na Câmara Municipal de Santo André só reforçaram o que o Ministério Público já havia anunciado, em alto e bom som, semanas atrás: sobram evidências de que um megaesquema de corrupção funcionava na gestão de Celso Daniel (PT), coordenador-geral do programa de governo do candidato petista Luiz Inácio Lula da Silva. Ponto para o irmão do prefeito, o oftalmologista João Francisco, que bate na tecla de que a morte de Celso está vinculada às eventuais irregularidades da sua gestão. Aos promotores, ele também disse ter ouvido de Gilberto Carvalho, ex-secretário municipal de Governo e um dos coordenadores da campanha de Lula, e de Miriam Belchior, ex-mulher do prefeito, que R$ 1,2 milhão seriam entregues ao presidente nacional do PT, deputado José Dirceu (SP) para a campanha de Lula. Na CPI, João Francisco repetiu a história e lembrou que há quatro pessoas prontas para descrever a conversa, caso seja necessário. Quem elas são, não revela por nada.

Até que as testemunhas deixem o anonimato, o irmão do prefeito continuará atacando sozinho. Nem a família Daniel se posicionou a respeito – pelo menos, oficialmente. João Francisco, o irmão mais velho, acredita em crime político. Seria natural que ele ocultasse o nome dessas pessoas por questão de segurança, principalmente na hipótese de elas serem seus parentes. Enquanto ele as preserva, Miriam e Gilberto contra-atacam. Na CPI, acusaram João Francisco. “Não foi apenas uma vez que ele me procurou para interceder por empresários de ônibus”, acusou o ex-secretário. Para ele, a prova de que João Francisco não deve ser levado a sério está na decisão do ministro do Supremo Tribunal Federal, Nelson Jobim, que negou o pedido do Ministério Público Federal de abertura de inquérito criminal contra José Dirceu.

De fato, à exceção do irmão de Celso Daniel, nenhum empresário de Santo André tem endossado a versão que envolve o PT nacional. Vez ou outra, um diz ter ouvido do empresário Ronan Maria Pinto – acusado de participar do esquema de propina – que a caixinha não ficaria em Santo André, mas iria para uma campanha. “De quem, ele não disse”, contou Rosangela Gabrilli, a primeira empresária a denunciar a avalanche de irregularidades no transporte público local. Os promotores estaduais não entraram nesse mérito, pois campanha eleitoral é um assunto que cabe ao Ministério Público Federal. Na esfera municipal, contudo, a mira dos empresários ligados a Rosangela é precisa. Seu sócio Sebastião Passarelli confirmou o pagamento mensal de R$ 40 mil de propina, exigida por Sérgio Gomes da Silva, o Sombra, que agiria em nome do então secretário de Obras, Klinger de Oliveira Souza.

A arrecadação seria feita por duas pessoas ligadas às empresas de Ronan: Irineu Bianco e Luiz Marcondes Freitas. Ambos confirmaram na CPI a cobrança da caixinha, mas caíram em contradição na hora de explicar o destino do pedágio. Freitas disse que o dinheiro era devolvido em valores que facilitariam o troco das passagens de ônibus, e Irineu, que ele serviria para “o pagamento de taxas administrativas”, sendo depositado na conta de Ronan. Irineu também aparece no depoimento de Gislene da Silva, a funcionária que contava a quantia arrecadada dos empresários de ônibus, R$ 120 mil por mês. “Entre o dia 25 e 30, eu recebia parte desse total embrulhado em jornal dos sócios da Nova Santo André e entregava tudo para seu Irineu”, disse a moça.

A Nova Santo André, pivô da denúncia do Ministério Público, é um consórcio formado em 1997 por cinco empresas de ônibus para atender a cidade. Quando a associação teve início, quem detinha a maior parte das linhas do consórcio era a Viação São José, pertencente à família de Rosangela em sociedade com Passarelli. Todos viviam na santa paz dos contratos públicos. Faziam parte do consórcio: a Humaitá, de Ronan; a São Camilo, de Baltazar de Sousa, concunhado de Ronan; a Padroeira, de Ozias Vaz, amigo pessoal de Sérgio Sombra; e a Parque das Nações, de Carlos Sófio, que depende da mulher de Ronan para operar as linhas. Esse time disse à CPI nunca ter ouvido falar de esquema de extorsão.

A briga entre os amigos de Ronan e a Viação São José teve início em 1998, quando a prefeitura decidiu licitar uma importante linha que pertencia à família de Rosangela Gabrilli. Para participar da concorrência, os Gabrilli criaram uma nova viação, a Expresso Guarará, em parceria com a Projeção, empresa de Ronan, que ficaria encarregada das obras dos terminais de ônibus. Segundo Rosangela, em 2000, a Projeção não se contentou apenas com a parte de obras e quis assumir as linhas de ônibus da Guarará. Eles só teriam conseguido que a Projeção se afastasse depois de darem à empresa de Ronan parte das linhas que tinham na Nova Santo André. É por isso que, hoje, a maioria das cotas no consórcio de transporte pertence ao time de Ronan.

A agenda da CPI nesta semana promete mais emoções. Estão previstos os depoimentos de Klinger e Ronan. Até agora, os trabalhos da comissão, formada por cinco vereadores da base do governo petista, deixaram a desejar. O PT, que em sua história tanto exigiu a apuração de denúncias pelos parlamentares, se vê, no mínimo, desajeitado para comandar uma delas. Além de terem iniciado os trabalhos depois da investigação do MP, os vereadores discutem entre si no meio dos depoimentos e deixam de abordar questões cruciais. Isso quando não fazem perguntas certas para o depoente errado. Estranha ironia.