Manhã de segunda-feira em Yokohama, noite de domingo em Uberaba, no triângulo mineiro. Enquanto a delegação brasileira voltava da farra e preparava as malas para deixar o Japão, Chico Xavier iniciava também sua última viagem. Vivo, o médium mais famoso do Brasil anunciou seu desejo de morrer em um dia em que o País estivesse em festa. No dia 30 de junho, como se quisesse aproveitar a oportunidade, Chico Xavier quis saber o resultado da Copa e manteve-se sereno o resto do dia. Percorreu cada ambiente de sua casa, visitou todas as salas da Casa da Prece – o centro onde promovia sessões de psicografia, a escrita de mensagens ditadas por espíritos –, e se recolheu logo após o jantar. Em menos de dez minutos, uma parada cardíaca selou sua trajetória neste planeta. Como dizem os espíritas, Chico Xavier desencarnou, aos 92 anos, para permanecer em espírito entre os compatriotas.

Enquanto a Seleção Brasileira percorria as ruas de Brasília ao lado de Ivete Sangalo, 100 mil pessoas compareciam ao velório de Chico Xavier, na terça-feira 2. Algumas personalidades foram se despedir do médium. Entre elas, o ator Norton Nascimento, o presidente da Câmara dos Deputados Aécio Neves e o casal Caio Blat e Ana Ariel, os últimos a encontrá-lo vivo. “Fomos à Casa da Prece no sábado e estávamos chegando em São Paulo quando recebemos a notícia de que ele havia morrido. Voltamos na hora”, conta o ator. Caio Blat abraçou o espiritismo por influência da esposa, a cantora Ana Ariel. Filha da espírita Eliana dos Santos, que dirige um centro em Campinas, ela visitava Chico Xavier há uma década. “Fica um sentimento de saudade muito grande. Mas também de fé. Acredito que ele esteja feliz neste momento”, diz Ana. “Os espíritas não guardam luto. Por isso o velório é feito com música e roupas coloridas”, resume.

Não foi apenas o Brasil que perdeu seu maior médium. Francisco Cândido Xavier era o líder espírita mais importante do mundo. Os 418 livros psicografados por ele foram publicados em diversas línguas. De acordo com o Censo Demográfico do IBGE, 2,34 milhões de brasileiros se declaram espíritas, o que corresponde a 1,37% da população. No entanto, estima-se que os espíritas assumidos não passem de 15 milhões em todo o planeta, o que transforma o Brasil no país do espiritismo. “O número de espíritas brasileiros salta para 20 milhões se incluirmos todos que vão a centros”, destaca Durval Ciamponi, presidente da Federação Espírita de São Paulo. “Muitos se denominam católicos ou protestantes no recenseamento, mas quem acredita em comunicação com os mortos não pode ser católico”, provoca.

O sincretismo virou marca registrada do espiritismo no País. “Sou católica e espírita ao mesmo tempo. Vou à igreja e ao centro”, explica Marta de Fátima Rosa, 36 anos. Vizinha de Chico Xavier em Uberaba, Marta admira o médium desde que ele psicografou uma carta de seu irmão, morto há 14 anos em um acidente. “Minha mãe recebeu uma mensagem, na qual meu irmão dizia que estava bem. Ela passou a frequentar a Casa da Prece”, diz. “Situações de morte fazem com que muita gente recorra ao espiritismo”, aponta a psicóloga Maria Cristina Guarnieri, que pesquisou a relação entre luto e psicografia em seu mestrado em ciências da religião na PUC de São Paulo. “Não há espaço na nossa sociedade para se falar em morte. O espiritismo conforta quem perde um ente querido”, explica.

Para alguns, visitar centros espíritas não significa devoção religiosa. O taxista Eurípedes Rodrigues da Silva, 53 anos, de Uberaba, se declara sem religião. “Mas gosto de tomar uns passes. Sou mais espírita do que qualquer outra coisa”, confessa. Ele, que por duas vezes levou Chico Xavier a São Paulo, frequenta as sessões do médium Celso de Almeida e arrisca nomeá-lo substituto de Chico Xavier. “Um substituto deve fazer tudo o que Chico fazia. Eu nunca vi uma pessoa assim”, rebate Celso, aos 62 anos. Após psicografar 23 livros e mais de 10 mil cartas, Celso admite que nada aconteceria sem o incentivo de Xavier. “Psicografo desde os 23 anos, mas só fui atender o público aos 42, por medo de ser julgado. Chico me acusou de querer ser melhor do que Jesus, que também foi chamado de impostor”, diz.

Há muita especulação na cidade para saber quem vai assumir o legado do maior médium do País. Carlos Baccelli, outro importante médium de Uberaba, considera sensacionalismo a procura por um sucessor. “Há muitos médiuns no Brasil. Mas cada um tem o seu trabalho”, diz. Após publicar 10 livros psicografados em parceria com Chico Xavier e escrever 11 obras biográficas sobre ele, Baccelli fala com desenvoltura sobre o menino de Pedro Leopoldo (MG) que cursou apenas o primário e recebeu sua primeira mensagem mediúnica aos 4 anos. Cego de um olho e com metade da audição comprometida, Chico Xavier morava em Uberaba havia 43 anos. Recebeu duas indicações ao Prêmio Nobel da Paz. “Ele despertou admiração e desconfiança”, conta Baccelli. Não foi à toa que um eletroencefalograma feito por Chico Xavier em 1973 causou tamanho furor. Enquanto a revista Realidade afirmava que Chico era apenas uma vítima constante de ataques epilépticos, a revista Planeta destacava as alterações cerebrais ocorridas durante uma psicografia. “No momento da escrita, surgiram descargas elétricas comuns na epilepsia, que não aconteceriam se ele estivesse fingindo”, lembra Elias Barbosa, médico de Chico na época. “Clinicamente, Chico nunca foi um epilético”, garante.

Nos últimos anos, muitos médiuns ficaram famosos no Brasil por realizarem curas milagrosas. Cirurgias feitas apenas com as mãos ou com facas de cozinha, sem anestesia, fizeram a fama de espíritos como o do dr. Fritz, incorporado por médiuns como Zé Arigó, morto em 1971 em um acidente de carro (como havia previsto), e Rubens de Faria Júnior, que hoje responde a processos por charlatanismo e exercício ilegal da medicina no Brasil, mas faz sucesso como palestrante na Europa. No Rio de Janeiro, curas espíritas ainda acontecem no Lar de Frei Luiz, que combina tratamento médico convencional e mediúnico. Presidido pelo cirurgião Ronaldo Gazolla, ex-secretário municipal de Saúde, o centro recebe 30 mil pacientes por ano. O próprio Ronaldo se submeteu aos cuidados dos colegas ao detectar um câncer na próstata em novembro passado, sem abrir mão da quimioterapia. “Espíritos amigos, inclusive Frei Luiz, me disseram que eu não precisaria operar. O câncer desapareceu”, conta.

Ainda hoje, a ciência não consegue explicar a cura espiritual ou o transe. Para o psiquiatra Sérgio Felipe de Oliveira, da Associação Médica Espírita de São Paulo, a mediunidade é uma função biológica. “Há alterações orgânicas como aceleração cardíaca e aumento do fluxo sanguíneo na cabeça. Os pés e as mãos ficam frios e o aparelho digestivo pára de funcionar. Nada disso acontece em uma simulação”, afirma. Para o médium Celso de Almeida, de Uberaba, os efeitos são mais simples de descrever. “Não sinto meu corpo e não enxergo mais nada. O espírito assume o controle do meu pensamento”, diz. Mas, por enquanto, nada convence os céticos. A incorporação, a reencarnação ou a terapia de vidas passadas (leia reportagem à pág. 76) são coisas que não se explicam. Nem o que leva um país a criar, de tempos em tempos, pessoas iluminadas como Chico Xavier.

Carlos Verezza, ator
“Abracei o espiritismo em 1990, após uma depressão. Recuperei-me ao freqüentar o Lar de Frei Luiz, para onde Chico encaminhava fiéis. Para mim, seu grande milagre foi provar, através de mensagens psicografadas, a vida após a vida”

 

Jerry Adriani, cantor
“Sou católico, mas a doutrina kardecista
me ajuda muito no dia-a-dia. Recebo mensagens desde a adolescência. Um dia, vi meu filho
Tiago durante um sonho, antes mesmo de ele nascer. Acordei com o telefonema de minha
mulher, dizendo que estava grávida.”

Fábio Assunção, ator
“Conheci Chico Xavier aos oito anos, quando meu pai recebeu um texto psicografado de meu avô. Ele foi um homem perfeito. Tinha uma energia muito boa e ajudou muita gente. Sinto por sua morte, mas fico feliz por ele ter descansado”

Nicete Bruno, atriz
“Nasci em uma família espírita, mas só comecei a estudar a doutrina em 1962, após o falecimento
de um tio querido. Hoje acredito que todos nós
somos médiuns, é só uma questão de exercitar.
Para mim, Chico Xavier não morreu. A morte é
só uma transformação”

A espiritualidade do brasileiro

Palavras como médium, passes e reencarnação geralmente causam confusão sobre as doutrinas espiritualistas que as professam, como as afro-brasileiras e o espiritismo. Isso acontece porque os espíritas e os adeptos da umbanda e do candomblé têm em comum a crença na reencarnação e na comunicação entre homens e espíritos. Mas seus seguidores pontuam as diferenças. O espiritismo, codificado no século XIX pelo francês Allan Kardec, tem como base o Novo Testamento, procura estudar os fenômenos mediúnicos e prega que o espírito segue uma linha evolutiva através de sucessivas reencarnações.

As religiões afro-brasileiras surgiram no período colonial da adaptação das crenças trazidas pelos negros ao catolicismo imposto pelo branco. O candomblé prega a existência de uma comunicação constante entre os homens e os orixás, que são os guias espirituais. Nos terreiros, ao som de atabaques e palavras em dialeto africano, pais e mães-de-santo incorporam seus guias. Para atender à população, jogam búzios, uma espécie de oráculo. Os seguidores obedecem a suas orientações e agradecem oferecendo sacrifícios de animais. Já a umbanda, nascida no Brasil, mistura elementos do espiritismo, do candomblé e da tradição indígena e é celebrada em português. Os fiéis mostram devoção vestindo-se de branco e entoam preces como a ave-maria. Todas as três crenças utilizam os passes – transmissão de energia pela imposição das mãos – como forma de equilibrar corpo e alma.
Juliana Vilas