O fornecimento de urânio do Brasil para o Iraque sempre esteve envolto numa cortina de fumaça. O assunto voltou à tona na semana passada, quando o cientista iraquiano dissidente Khidir Hamza declarou ao The Times que o governo do Iraque poderia ter utilizado urânio brasileiro para a construção de sua bomba atômica. De fato, na década de 80, durante o governo João Baptista Figueiredo (1979-1985), o Brasil vendeu 27 toneladas de yellow cake para o regime de Saddam Hussein. O yellow cake é a primeira fase de beneficiamento do urânio, fundamental para a produção do combustível de usinas nucleares, ou do plutônio, essencial para a bomba atômica. O negócio foi confirmado em 1991, depois da guerra do Golfo, quando inspetores da ONU descobriram o arsenal iraquiano, mas na época ninguém do governo brasileiro quis fazer declarações. Agora, pela primeira vez, militares admitem falar ostensivamente sobre o assunto. O almirante Othon Luiz Pinheiro da Silva, ex-coordenador do programa nuclear da Marinha, que conseguiu dominar o ciclo completo da tecnologia nuclear para fins pacíficos, disse a ISTOÉ que a venda de yellow cake ao Iraque “foi um negócio contraproducente para o Brasil e a Marinha não participou dele”. Outro almirante, Hernani Fortuna, ex-secretário-geral da Marinha, endossa a afirmação do camarada de armas: “Aquela negociação com o Iraque foi um erro estratégico, porque um governo não deveria vender urânio ao Iraque ou a qualquer outro país, pois a tecnologia, nessa área, deve ser patrimônio do Estado.” É bom lembrar que, na época, havia uma proibição do próprio governo brasileiro de se comercializar qualquer tipo de urânio para fora do País. Um coronel do Exército que prefere o anonimato disse que a transação com Bagdá teve a participação e o estímulo do extinto Serviço Nacional de Informações (SNI), com o aval da Comissão Nacional de Energia Nuclear (CNEN) e do Itamaraty.

Afinal, a partir da década de 70, durante o governo Ernesto Geisel (1974-1979), o Brasil manteve relações preferenciais com o Iraque, a Arábia Saudita e o Irã. O Itamaraty passou a apoiar os palestinos e a votar contra Israel na ONU. O Iraque em especial era visto como aliado estratégico do Brasil, que ainda sofria o impacto dos choques de petróleo de 1973 e 1979. Bagdá passou a ser, então, um dos principais fornecedores de petróleo ao País. As negociações eram facilitadas pelos interesses em jogo entre os dois países: o Iraque chegou a trocar petróleo por frango congelado e por carros de combate Cascavel e Urutu. Saddam também queria tecnologia de mísseis e tecnologia nucelar. Estabeleceu-se uma sólida parceria. Os emissários iraquianos eram recebidos festivamente em Brasília. Em um jantar no Lago Sul, em 1982, representantes de Saddam, empresários e diplomatas brasileiros articularam não só a cooperação na área nuclear, mas também a científica e tecnológica, além da que ocorreu na indústria bélica. Empresas como a Odebrecht, Camargo Correia e Mendes Jr. se instalaram em Bagdá com operários, administradores e engenheiros, recebendo atenção especial. “Os americanos, franceses, alemães e russos ajudaram muito mais o regime de Saddam do que o Brasil; os EUA, porque tinham interesse, naquela época, de combater o Irã”, lembra o general Diogo de Figueiredo, outro militar que também esteve em Bagdá.

Mísseis – Com o apoio do Itamaraty, o governo brasileiro aprovou uma cooperação com a participação do principal especialista brasileiro da área espacial, o brigadeiro Hugo de Oliveira Piva. Ele ia para ajudar na instalação de um centro de excelência, semelhante ao Centro Tecnológico Aeroespacial (CTA) brasileiro e no desenvolvimento da tecnologia de um míssil tático (de pequeno alcance). Mas Piva teria condições de desenvolver um projeto de artefato nuclear, que não chegou a ser executado. O militar admite que o Iraque “tinha interesse em um projeto para a bomba atômica, que levava em conta o fato de Israel já ter um arsenal nuclear. O projeto nuclear iraquiano, aliás, sofreu grande atraso quando os israelenses bombardearam a usina nuclear de Osirak, em 1981”, lembra o brigadeiro.

Já um projeto do míssil estratégico de maior alcance, tipo Piranha, desenvolvido pelo CTA, também foi solicitado pelo governo de Bagdá, mas sofreu algumas restrições do Itamaraty e da área militar. Mesmo assim, a tendência, no fim dos anos 80, era de que o governo brasileiro acabasse garantindo a tecnologia para o míssil estratégico. Mas com a guerra do Golfo, os Estados Unidos pressionaram o Brasil para que encerrasse a cooperação com Bagdá. Se Saddam Hussein tivesse tido um pouco de paciência e invadido o Kuait cinco anos depois, provavelmente o Iraque teria dominado a tecnologia do míssil estratégico, assegura um engenheiro militar brasileiro.

Rabo preso – A idéia fixa de que Saddam tenha em estoque armas
de destruição em massa não é apenas paranóia da turma de Bush. Está bem documentado nos arquivos do Departamento de Comércio o fornecimento de agentes químicos
e biológicos – bactéria/fungos/protozoários – ao Iraque feito pelo governo Ronald Reagan, na década de 80. Ou seja: quem começou a fornecer germes para os brinquedos do ditador de Bagdá foram os Estados Unidos. Pode-se dizer que a “mãe” de todos os antrazes que Saddam mantém no estoque é de origem americana.

Por essas e outras, causou espanto entre os brasileiros – e muita gente ligada à Comissão de Desarmamento da ONU – a gritaria feita pela matéria no diário londrino Time sobre a venda de urânio do Brasil aos iraquianos. “Esta história é velhíssima, e não apresenta nenhum crime. O Brasil vendeu o material legalmente”, diz o ex-chefe da equipe de inspetores
da ONU, Richard Butler. Ele poderia acrescentar que Itália, Portugal, França e Rússia também forneceram urânio para o mesmo cliente e
os Estados Unidos venderam sofisticados equipamentos de análise química para a Comissão de Energia Atômica do Iraque. Em 1983,
ainda durante o reinado Reagan, um alto emissário americano foi se entrevistar com Saddam, então considerado aliado contra os furiosos aiatolás iranianos. Depois deste encontro, os Estados Unidos começaram a fornecer, secretamente, fotos de satélite das posições das tropas iranianas que estavam em guerra contra o Iraque. Esta tremenda
colher de chá logística permitiu que Saddam calibrasse as miras de
seus bombardeios químico-biológicos (principalmente gás mostarda e antraz) contra alvos iranianos. O enviado especial de Reagan, por sinal, chamava-se Donald Rumsfeld, o atual secretário da Defesa americano
e um dos maiores falcões do governo Bush.

Os analistas independentes não acreditam que Saddam já tenha conseguido a chave do sucesso para o refinamento do urânio. Sem isto,
a bomba atômica iraquiana fica no campo da ficção. “Outro aspecto importante é a miniaturização das ogivas nucleares, para que possam
ser levadas pelos mísseis que o Iraque possui. E isso Saddam talvez não consiga, mesmo que viva mais 50 anos”, diz Joseph Cirincioni, expert em proliferação nuclear do Carnegie Endowment for International Peace, um organismo de pesquisas em Washington.

Obsessão – Neste caso, por que o presidente George Bush usa a
imagem do apocalipse nuclear para justificar uma investida na mudança de regime iraquiano? “Só ele sabe a razão”, diz o senador democrata Edward Kennedy. Mesmo assim, o líder da oposição na Câmara,
deputado Dick Gephardt, já prometeu rápido voto de apoio à guerra
do presidente: “Os democratas defendiam a consulta ao Congresso –
para o caso de guerra – e a ida à ONU. O presidente fez as duas coisas. Agora, é nossa vez de retribuir o gesto”, disse. Já se diz no Congresso que a votação para a autorização de ação militar contra o Iraque será feita antes mesmo das eleições, em 5 de novembro. Já a subserviência
da ONU será mais difícil de ser alcançada. Rússia, França, China e os países árabes exigem o caminho diplomático para, só depois, resolver sobre a guerra. Bush & cia estão impacientes, querem uma nova resolução dura, que não deixe vias de escape para o Iraque. De todo modo, já avisaram que os dias de Saddam Hussein no poder estão contados: a cavalaria americana já está galopando.