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Não foi um saque, um bloqueio ou uma cortada que levaram a seleção brasileira feminina de vôlei ao bicampeonato olímpico em Londres, neste ano. É curioso, mas absolutamente possível, afirmar que uma derrota deu o ouro ao Brasil. Um revés, de fato, tem o poder de virar o jogo de histórias que parecem ter o epílogo já traçado. As jogadoras brasileiras foram personagens de um roteiro assim. Ao levarem um atordoante 3×0 da inexpressiva Coreia do Sul, a segunda derrota em três jogos, só não caíram na primeira fase porque os Estados Unidos venceram a Turquia e garantiram a classificação nacional. O susto chacoalhou o grupo. De fortes candidatas à decepção olímpica, elas emendaram cinco vitórias consecutivas e alcançaram o posto mais alto do pódio, com medalha dourada no peito, finalizando uma caminhada recheada de inconstância e superação, descrença e fé, lágrimas e alegria. “Conseguimos nos resgatar em um campeonato que não permite que isso aconteça”, afirma a líbero Fabiana de Oliveira, a Fabi, 32 anos. “Foi espetacular.”

Com o bicampeonato olímpico  a seleção feminina  de
vôlei sepultou  de vez a desconfiança do torcedor brasileiro

Muitas são as peças que fizeram o quebra-cabeça da vitória se encaixar depois da inesperada derrota para as asiáticas. E todas montam um cenário: a seleção brasileira, vencedora do prêmio Brasileiro do Ano no Esporte, só triunfou quando resolveu se tornar um time. Em uma situação extremamente adversa – corriam o risco de deixar os Jogos figurando entre a nona e a 12ª colocação –, as campeãs de Pequim-2008 perceberam que precisavam ser mais solidárias umas com as outras. Individualidades foram colocadas de lado e a comissão técnica valorizou menos os erros e focou nos acertos. “Faltava algo que a derrota nos mostrou: uma tinha de se doar pela outra”, diz o técnico José Roberto Guimarães, 58 anos. “A equipe só reencontrou as vitórias quando voltou a ser humilde.”

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PÓDIO
A comemoração depois da quase desclassificação: virada
emocionante e vitória sobre as americanas na final

Foi há cerca de dez anos que o eixo desta seleção bicampeã olímpica se formou. Naquela época, jogadoras experientes como Fofão, Virna e Érika, só para citar três, se rebelaram contra o então comandante Marco Aurélio Motta e pediram dispensa. Com um Mundial pela frente, talentos das divisões de base como Sheilla, Fabi e Fabiana foram escaladas para assumir o posto. Inexperientes, não suportaram a pressão e amargaram a sétima colocação. No ano seguinte, começava a era José Roberto Guimarães na seleção. As três atletas, juntamente com outras jovens, como Jaqueline e Paula Pequeno, se tornaram titulares.

Três foram as metas estabelecidas para o primeiro ciclo olímpico completo, de 2004 a 2008: incrementar força e transformá-la em potência, aprimorar os fundamentos e dar experiência internacional às atacantes jovens. E as atletas chegaram a Pequim levantando, em média, 135 quilos no agachamento e 57,5 no arranque. “Não me esqueço: ganhamos de Cuba em cinco sets, duas horas de jogo, e tivemos de ir direto para a sala de musculação”, diz a capitã Fabiana Claudino, 27 anos. “A gente tinha uma defasagem em relação às maiores equipes do mundo, principalmente a Cuba, no quesito força”, afirma o treinador. Foi cumprida, também, a meta de 140 jogos internacionais nos quatro anos anteriores aos Jogos. O Brasil perdeu apenas 12 – aproveitamento de 91,4%. Mesmo assim, no País, a seleção era tachada de “amarelona” pelo fato de o time não conseguir conquistar uma grande competição, como Mundial ou Olimpíada.

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MULTIDÃO
Desfile em carro do Corpo de Bombeiros, em São Paulo

Da inconstância de uma seleção acostumada a bater na trave – foi bronze nos Jogos de 1996, em Atlanta, e 2000, em Sydney, e prata nos Mundiais de 1994 e 2006 –, o Brasil assistiu à consagração de uma geração que esbanjou autoconfiança em Pequim, em 2008, com um time que atropelou as adversárias e perdeu apenas um set na campanha do ouro. Este ano, em Londres, havia chegado a hora de o grupo provar que não atingiu o platô por acaso. E mostrar de vez que a instabilidade emocional ficou no passado. “Mas esse novo ciclo olímpico foi complicado”, diz Fabiana. “A gente sabia que os Estados Unidos estavam voando havia alguns anos”, conta a líbero Fabi. “Eu tinha certeza de que os Estados Unidos seriam finalistas e que seria muito difícil a gente ganhar o ouro”, afirma José Roberto.

Nos últimos quatro anos, as contusões tiveram influência direta na preparação da equipe. Próximo dos Jogos londrinos, a comissão técnica constatou que não houve crescimento nos quesitos força e potência. “Este time atingiu 70% do patamar verificado na seleção do ciclo anterior”, diz o preparador físico José Elias Proença. Criar novas lideranças, após as aposentadorias da seleção de Fofão e Walewska, e dar experiência para duas novas levantadoras foram outros desafios. “A poucos meses da Olimpíada, o Zé Roberto estava batendo cabeça para fechar o grupo”, opina a pesquisadora do esporte da Universidade de São Paulo (USP) Katia Rubio. “Mas fosse outro técnico, aquela medalha não sairia. Ele conseguiu, mesmo com a falta de unidade e liderança entre as atletas, dar identidade a elas; bateu e assoprou na medida.”

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COMPETÊNCIA
José Roberto estudou 144 jogadoras adversárias antes dos Jogos.
E se tornou o único treinador de esporte coletivo tricampeão olímpico

Após a derrota para a Coreia, José Roberto convocou, já de madrugada, a capitã Fabiana para uma reunião. A atleta disse ao treinador que o achava muito nervoso, tenso, até ali. “Ele concordou, disse que não iria pegar tanto no nosso pé e falou que não estávamos ali sozinhas”, diz. Antes, porém, as jogadoras haviam feito uma reunião entre elas. Depois de muita conversa, rezaram. “A gente se fechou ali. A Paula Pequeno comprou um crucifixo para todos. E as meninas passaram a colocar canções religiosas para tocar no vestiário. A fé foi a mudança radical”, diz Fabiana. No dia seguinte, às 11 horas, o técnico brasileiro fez uma nova reunião, agora com o time todo. Desde então, a seleção não perdeu mais na competição.

Superstições do técnico, como fazer  o time jogar  de
amarelo,  e a fé das  jogadoras  marcaram o título

Supersticioso, o comandante estabeleceu que o horário e o local das reuniões dali para a frente seriam os mesmos. Mais: a cor da camisa do uniforme de jogo (amarela) foi utilizada até o fim da Olimpíada, assim como se repetiram as mesmas músicas tocadas no vestiário. Ao todo, passaram pelas mãos de José Roberto Guimarães, único treinador de esporte coletivo tricampeão dos Jogos (1992, 2008 e 2012), 30 atletas brasileiros medalhistas de ouro olímpico. Profissional meticuloso, que passa quatro horas por dia assistindo a vídeos de voleibol, ele desembarcou em Londres com um HD a tiracolo contendo vídeos de 144 jogadoras que participariam do torneio – só não possuía imagens do time da Argélia. Estava preparado, cercado de competência dentro e fora da quadra, mas teve de perder para ganhar, assim como a seleção brasileira que ele costurou. Coisas do esporte.

Fotos: João Castellano/Ag. Istoé; JONNE RORIZ/AE; Eliária Andrade/Ag. o Globo; Frederic Jean/Ag. Istoé