Em 1988, a indústria venezuelana de baterias Venergia contratou um especialista alemão em segurança industrial para investigar o funcionário Hans-Georg Wagner, um engenheiro judeu suspeito de vender segredos da empresa para os concorrentes. A tranquilidade de Wagner, sabendo que não havia provas para incriminá-lo neste caso, não durou muito tempo. Quando foi abordado de forma direta e agressiva pelo investigador alemão, que lhe pediu “nome, patente e local da última missão militar”, achou que seu verdadeiro segredo havia sido descoberto e desabou: “Reinemer, Divisão de Morte da SS. Treblinka”.

Foi por causa desta história, contada por amigos na Alemanha, que decidi ler Edgar Hilsenrath, cujo livro mais importante, “The Nazi and The Barber” (O Nazista e o Barbeiro), é inspirado na história de Reinemer. Infelizmente, o título em inglês, editado em 71 nos EUA, está esgotado. Mas consegui ler a tradução inglesa (inédita) de seu romance “Fuck Amerika”. O que dizer? Se você ainda não o conhece, e é bem provável que não, anote esse nome: Edgar Hilsenrath. É obrigatório. E logo mais seus livros chegarão ao Brasil também.

Garanto que ao lê-lo você vai sentir o mesmo encantamento, a mesma dor e a mesma felicidade que sentiu ao ler pela primeira vez Dostoievsky, Kafka, ou Céline. Hilsenrath é um dos grandes, desses que marcam os leitores a ferro e fogo. Sua literatura, na verdade, é feita com sua própria carne e por isso vale a pena saber um pouco da sua vida, que é tão grandiosa e complexa quanto a sua própria literatura. (Prometo que no futuro vou falar mais de seus livros).

Hilsenrath nasceu em 1926, em Leipzig, e passou uma infância tranquila em Halle, onde seu pai era um bem-sucedido negociante de móveis que via a chegada de Hitler no poder como uma patologia passageira. Em 1938, no entanto, pouco antes de estourar a guerra, sentindo na própria pele a mão pesada dos camisas-marrons, tratou de pensar em alternativas para sair da Alemanha. Depois de ter um pedido de visto para os EUA recusado pelo cônsul americano, enviou sua esposa e filhos para Sereth, na Romênia, uma das pequenas cidades que se formaram em torno de Cernovitz, no século XIX, quando judeus buscavam nesta região da Ucrânia, Bessarábia e Bukovina a paz que eles não encontravam na Rússia.

Foi ali naquela cidade cheia de judeus, ucranianos, húngaros, rutenos e alemães – uma espécie de protótipo de uma Europa unida – onde se falava o hochdeutsch (alto alemão), o alemão não “contaminado” pelos dialetos locais, que Hilsenrath passou os melhores anos de sua vida. Seus avós contrataram um professor particular para ensiná-lo a ler e a escrever. Ali, naquela cidade, que mais tarde ele reconheceria como sendo o que há de mais próximo da sua ideia de pátria, que ele leu os grandes autores da língua alemã e se apaixonou pelo idioma. Mas em 1941 os alemães chegaram e Hilsenrath, sua mãe e irmão foram colocados num vagão de gado, e levados, durante seis semanas seguidas, sem destino, para várias regiões da Bessarábia, até que finalmente fossem alojados em Moguilev-Podolski, uma cidade ucraniana que havia sido bombardeada, e em cujas ruínas fora delimitado o gueto para os judeus.

Quando os russos libertaram o local, em 1944, só cinco mil dos 30 mil judeus que ali viveram haviam conseguido sobreviver. Hilsenrath foi um deles. Sozinho, emigrou para a Palestina e perdeu completamente a capacidade de se comunicar. Quando soube que sua mãe e irmão haviam encontrado o pai na França, juntou-se a eles. E em 1955, toda a família emigrou para os EUA, onde Hilsenrath viveu durante 24 anos trabalhando como carregador, porteiro, garçom e faxineiro, atividades que lhe garantiram o mínimo para que conseguisse sobreviver e – o mais importante para ele – escrever nas madrugadas livres. Foi escrevendo que ele recuperou seu idioma, sua virilidade e sua capacidade de falar.

Na década de 1970 decidiu voltar para a Alemanha (“sem ter esquecido nada e tentando não pensar nos seis milhões”, como ele gosta de dizer) com vários livros inéditos na bagagem. Não sentia nenhum vínculo com o país. Mas precisava do idioma.

Suas histórias desesperadas, pungentes, proféticas, absurdas e sobretudo bem-humoradas, são tão impiedosas com os alemães e com os judeus que, até 1977, seus livros não haviam sido editados na Alemanha. Faltava coragem aos editores.

Hoje, aos 86 anos, vivendo em Berlim, ele começa a ser descoberto pelo mundo. Para ele, no entanto, nada é novidade. Aos 26 anos, no seu livro “Fuck Amerika”, Max Brod, o melhor amigo de Kafka, liga para a mãe do personagem principal do romance e alter ego de Hilsenrath e diz: “Li os manuscritos. Seu filho é um gênio. Um segundo Kafka”. Simplesmente profético.

Patrícia Melo é escritora