Enfeixado numa casaca e espetado por uma condecoração, o presidente Ernesto Geisel parecia tão à vontade quanto um peixe fora d’água naquela noite de maio de 1976, em Londres, num banquete oferecido a ele no Palácio de Buckingham. Desde 1963, quando João Goulart compareceu ao funeral do papa João XXIII, nenhum governante brasileiro
havia visitado a Europa. E lá estava o “Alemão”, empertigado diante da anfitriã, a rainha Elisa-beth II, cochichando para a mulher, dona Lucy: “Quem diria, nós aqui no meio deste soçaite.” No entanto, tal desapego ocultava uma vitória inegável. O general Geisel estava sendo tratado como um estadista, e não como um ditadorzinho latino-americano de opereta.

Esta vocação imperial do austero Ernesto Geisel é um dos eixos que sustentam A ditadura encurralada (Companhia das Letras, 528 págs., R$ 56), segundo volume da trilogia O sacerdote e o feiticeiro e quarto de um painel definitivo de cinco sobre o regime militar escrito pelo jornalista brasileiro nascido em Nápoles Elio Gaspari. O livro cobre os cerca de mil dias que separam a vitória da oposição nas urnas, em 1974, da demissão do general Sylvio Frota, ministro do Exército, em outubro de 1977. Outro eixo no qual se apóia a narrativa é o que o ex-presidente Juscelino Kubitschek chama de “O monstro”, referência à opinião pública, cuja presença vinha sendo sentida paralelamente ao crescimento de uma nova esquerda.

Em A ditadura derrotada (Companhia das Letras, 554 págs., R$ 49,50), primeiro volume de O sacerdote (Geisel) e o feiticeiro (o amigo e chefe da Casa Civil, Golbery do Couto e Silva), o que se lê são os acontecimentos na cúpula governamental. À época, ao mesmo tempo que Geisel dava o sinal verde para a aniquilação física da esquerda, havia um remanejamento interno visando à vitória nas eleições de 1974, ou seja, a legitimação do regime. Mas o que se sucede é inusitado, pois nem o MDB, a oposição no sistema bipartidário vigente, esperava uma vitória esmagadora. Caso contrário, lideranças da importância de Ulysses Guimarães teriam se candidatado no lugar de novatos como Orestes Quércia, cuja votação foi um fenômeno.

No início de A ditadura encurralada há a descrição de um encontro – mantido secreto durante anos – entre Golbery, Ulysses e Thales Ramalho, secretário-geral do MDB, e a citação de que a censura a diversas publicações havia sido suspensa. Ou seja, algo mudara. Maomés e montanhas passaram a se encontrar. No ar, pairava a frase de Geisel referindo-se a uma “lenta, gradativa e segura distensão”. Aliás, “distenção” com ç, como a linha dura do Exército grafava a palavra que podia embutir qualquer coisa. Desde que fosse quando e como o presidente quisesse. Golbery passou a ser atacado por panfletos apócrifos. Sua saúde foi abalada por um descolamento de retina e por uma úlcera perfurada. Geisel imperava. Enquanto cuidava de assun-
tos como a implantação de usinas nucleares – um retumbante fracasso – e o reconhecimento do novo governo de Angola, apoiado por Fidel Castro, o presidente brasileiro tinha à frente a tarefa de fazer seu sucessor. As opções não eram muitas. Generais de quatro estrelas, haviam 12. Entre os nomes mais viáveis desponta-
vam João Baptista Figueiredo, chefe do SNI, e Sylvio Frota, guindado à posição de ministro do Exército com a súbita morte de seu antecessor Dale Coutinho. Frota
não era um conspirador, mas seu coração estava com a “tigrada”, apelido dos militares mais rígidos.

“O monstro” faz sua primeira aparição na missa em memória do jornalista Vladimir Herzog, morto no Destacamento de Operações Internas (DOI), em São Paulo. A “besta” saída da Universidade de São Paulo, que se denominava trotskista, surpreendeu a todos e voltaria sob forma popular no enterro de quem a previu: Juscelino Kubitschek, político cassado pelo regime. Quando o metalúrgico Manoel Fiel Filho morre em circunstâncias idênticas às de Herzog, Geisel demite o general Ednardo D’Ávila Mello do comando do II Exército e parte no encalço de Frota, que é encurralado em 12 de outubro de 1977.

Elio Gaspari promete o volume final em cinco anos. Em janeiro, o jornalista em-
barca para os Estados Unidos, onde deverá desfrutar de uma bolsa de seis
meses na Universidade de Harvard para as pesquisas, que, somadas às
30 mil fichas armazenadas nos seus computadores, à íntegra do arquivo Golbery e ao diário de Heitor Ferreira, secretário particular de Geisel, deverão formar A ditadura desmantelada ou desmanchada ou um título completamente diferente, não se sabe. O livro tratará do fim do governo Geisel até a posse de João Baptista Figueiredo. No entender do autor, este governo foi “a maior vitória de Golbery”, pois estendeu a ditadura por mais seis anos. Frota poderia ter saído em 1975, mas Geisel só queria demiti-lo aos 43 minutos do segundo tempo. Conseguiu. Na ocasião, encontrou um pacote de batatas fritas sobre sua mesa, presente de Heitor Ferreira, que citou Machado de Assis num bilhete: “Ao vencedor…”