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PROTEÇÃO
Amer Masarani é um dos líderes da Coordenação da Revolução Síria
no Brasil, organização que recebe refugiados da guerra 

Em 25 metros quadrados de um casebre na Casa Verde, zona Norte de São Paulo, Jehad Mohamed, 32 anos, tenta reconstruir o que a guerra na Síria levou. Entre móveis simples, bem diferentes daqueles da residência anterior, ele, a mulher e os dois filhos pequenos agradecem todos os dias por estarem vivos. Para enfrentar a distância de mais de dez mil quilômetros de casa, usam a internet. Pelo computador, leem notícias e acessam os vídeos postados por quem não abandonou o território – com as restrições aos jornalistas estrangeiros, boa parte do que hoje se sabe sobre o conflito é produzida pelos smartphones de cidadãos sírios. Cenas fortes, que atestam que a barbárie na região não amainou desde a fuga da família, em março deste ano. Do apartamento de 125 metros quadrados no bairro de Bab Amr, em Holms, um dos mais afetados da cidade, não tiraram nada. Quando Mohamed conseguiu voltar à casa, antes de pegar o avião, encontrou o prédio onde vivia partido ao meio por um míssil e o apartamento completamente saqueado. As perdas materiais, porém, são irrisórias se comparadas às marcas emocionais deixadas pela barbárie perpetrada pelo ditador Bashar al-Assad, no poder desde 2000. Na contagem do Observatório Sírio de Direitos Humanos, até o fim de outubro, eram 36 mil mortos no conflito iniciado em março do ano passado.

Durante o período em que resistiram no País, a família de Mohamed sentiu bem de perto o horror da guerra. Na casa ao lado, a vizinha foi abusada sexualmente por soldados do regime e seu marido teve parte da língua cortada ao tentar protegê-la. Dois dos irmãos de Mohamed foram presos e torturados por participar de protestos contra o governo. Durante uma semana, a família viu-se obrigada a abandonar o lar e se refugiar com outras 35 pessoas em um pequeno porão de três metros quadrados, na vizinhança. No espaço, sem luz nem telefone e com pouca comida e água, mal dava para sentar-se. Enquanto os homens se esgueiravam pelas ruas em busca de ajuda, mulheres e crianças ficavam no abrigo. Só com o auxílio do Exército Livre, oposição armada ao governo, é que Mohamed e sua família conseguiram escapar de Bab Amr e vir para o Brasil, que surgiu como opção porque a mulher de Mohamed é brasileira.

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FUGA
Mohamed (abaixo) escolheu o País porque já havia vivido aqui e é casado com
uma brasileira. Seu irmão (acima) chegou meses depois e pediu o status de refugiado

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Como eles, outros sírios têm buscado no Brasil paz para recomeçar suas vidas. Na Embaixada brasileira na Síria, atualmente transferida para Beirute, capital do vizinho Líbano, multiplicam-se os pedidos de visto. Se antes do início do conflito eram emitidas menos de 100 autorizações por ano, nos últimos dois anos foram quase mil, de acordo com dados de janeiro de 2011 a outubro de 2012 (leia quadro). E mesmo com a mudança do escritório para Beirute, distante 100 quilômetros de Damasco, a procura não arrefeceu. “Houve até um ligeiro aumento na solicitação e expedição de vistos”, disse à ISTOÉ o embaixador Edgard Casciano. No Comitê Nacional para Refugiados (Conare), órgão do Ministério da Justiça, contabilizam-se 34 sírios com status de refugiados e outros 56 pedidos. Mais da metade das solicitações (65%) vem de São Paulo, a maioria homens adultos, entre 20 e 40 anos. “A solicitação de refúgio pode ser feita já no desembarque, ao passar pelo serviço de imigração”, diz Paulo Abrão, presidente do Conare. Nem todos que chegam, porém, realizam esse procedimento.

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Vir para o Brasil, terra distante e com uma cultura e uma língua bem distintas, exige coragem. A maior parte dos sírios que fazem essa escolha tem algum vínculo com o País. “É difícil, em especial para quem não sabe português”, diz Amer Masarani, 41 anos, um dos líderes da Coordenação da Revolução Síria no Brasil, iniciativa criada para ajudar os refugiados que chegam em solo brasileiro. Sob a égide do movimento, mantido por empresários sírios, libaneses e brasileiros, há 25 pessoas retiradas da guerra. Masarani é sírio, vive no Brasil há 15 anos e tem mulher brasileira. Engenheiro solar de formação, trabalha com comércio desde que veio para o País, é dono de lojas na região do Brás, bairro comercial no centro de São Paulo. Desde o início do conflito em sua terra natal, já trouxe para o Brasil a mãe, três irmãos e quatro sobrinhos, que estão todos em uma casa em Santana, na zona norte. Tê-los próximos lhe traz o consolo de que ao menos sua família está bem. “Dos meus amigos de infância, quase todos estão mortos”, lamenta-se Masarani.

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Mohamed e sua família também receberam ajuda da Coordenação da Revolução Síria no Brasil para conseguir moradia e se reinstalar em São Paulo. Chegaram na cidade sem dinheiro e sem ter onde ficar. Com os bancos fechados por causa da guerra, sobrou pouco para a família reconstruir a vida no continente americano. “Na Síria tinha escritório próprio, trabalhava como despachante. Aqui estou como gerente de uma loja de jeans”, conta Mohamed, que se beneficiou do fato de saber português e conhecer bem o País, onde havia vivido por sete anos. Na primeira vez em que esteve aqui, porém, as condições eram bem diferentes. Tinha vindo por vontade própria, com dinheiro para investir e era dono de sua loja, na região do Brás. Dessa vez, o Brasil surgiu como uma alternativa de emergência, para manter sua família em segurança. “O conflito Sírio tem impressionado”, diz Andrés Ramirez, representante da Agência da ONU para Refugiados no Brasil. “O número de refugiados está crescendo muito rápido e em um tempo muito curto. Em julho, eram 100 mil refugiados. Agora já temos 400 mil.” A estimativa da ONU é de que, até o fim do ano, o número supere os 700 mil.

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Depois que chegou, Mohamed trouxe ainda sua mãe e dois irmãos. O mais novo, de 27 anos, é o que tem mais dificuldades em se adaptar. Chegou há apenas dois meses, não fala uma palavra de português, não tem documentação para trabalhar e traz no corpo marcas da violência que sofreu durante o período em que passou preso, no último ano. Em uma sessão de tortura, suas unhas foram arrancadas e não voltaram a nascer. No Brasil, ainda não conseguiu tratamento para o problema. “Ele está como uma criança. Não pode sair sozinho à rua porque não fala português”, conta Mohamed. O irmão do meio, de 28 anos, chegou há cinco meses e já conseguiu emprego, na mesma loja que Mohamed, na parte de confecção. Tem se esforçado para aprender português e, assim, conseguir uma ocupação com melhor remuneração. Para ele, porém, o Brasil é uma forma dolorosa de se manter seguro. Ao sair às pressas da Síria, deixou para trás a mulher e o filho de um ano, dos quais não tem notícias faz mais de um mês. Quando toca no assunto, seu semblante muda. Sem conhecer as palavras em português para traduzir o que sente, pede ajuda a Mohamed, que explica que eles têm vergonha por não ter ficado no País. “Devíamos ter ficado e lutado pelo nosso povo”, lamenta-se.

Foto: João Castellano/Ag. Istoé