Quando o presidente Lula assinar nos próximos dias o decreto que regulamenta o Estatuto do Desarmamento, preparado nos ministérios da Defesa e da Justiça, um artigo vai gerar polêmica. “As armas de fogo, munições e acessórios, de uso restrito, poderão ter sua importação negada ou restringida, se houver produto similar fabricado no país”, diz o artigo 55, que dá ao Comando do Exército plenos poderes para impedir a importação de armas restritas, como pistolas calibre .40, para órgãos de segurança pública. Conhecido há pelo menos dois meses por lobistas da indústria de armas – antes mesmo de o texto se tornar público –, a chamada “emenda Taurus” é mais uma prova do poder da empresa que dele se beneficia diretamente. Polícias de todos os Estados compram armas da gaúcha Forjas Taurus – pistolas, metralhadoras e carabinas .40, principalmente. Em 18 dos 27 Estados, a Taurus fornece armas para as polícias civis e militares. Na última semana, o Ministério Público Federal, em Brasília, decidiu investigar um possível favorecimento à empresa, que cresceu e multiplicou as vendas nos últimos anos justamente quando a fiscalização do comércio de armas no País estava nas mãos de um general que hoje é seu funcionário. Durante seis anos, até 2001, o general-de- brigada Antônio Roberto Nogueira Terra foi chefe da Diretoria de Fiscalização de Produtos Controlados (DFPC), do Ministério da Defesa, Terra assinava autorizações de exportação, liberando contâineres carregados de armas e munições para outros países, além de regular a entrada de armamentos importados. Depois de bater continência para o Estado, o general Terra passou para o outro lado do balcão e se tornou um dos lobistas da indústria que controlava.

Em seu gabinete no centro de Brasília, o general, agora na reserva, é consultor especial da Sulbras Consultoria e Assessoria Ltda., que atua como escritório de representação da Taurus na capital federal. Seu patrão é o empresário Renato Conill, vice-presidente da Taurus. Conill é sócio de Carlos Murgel, o diretor-presidente da Taurus. “É um problema ético muito sério alguém que definia as compras pelo Estado, dava pareceres favorecendo uma empresa, agora estar trabalhando nela”, afirma o ex-secretário nacional de Segurança Pública, o coronel da reserva da PM paulista José Vicente da Silva Filho, consultor do Instituto Fernand Braudel. “É um escândalo o Exército, que é o Estado, se colocar na defesa de uma indústria”, afirma o sociólogo Antônio Rangel Bandeira, coordenador do Projeto de Desarmamento e Controle de Armas da ONG Viva Rio. Rangel classificou de “promiscuidade absoluta” a presença de Terra na Taurus. O general discorda. “Presto assessoria devido à minha experiência com armas e na administração de produtos controlados. São serviços de orientação, consultoria, opinião sobre legislação”, explica ele.

O Exército alega interesses de Estado para proibir a importação de armas, de calibres reservados, para os órgãos de segurança pública, abrindo caminho para as compras da Taurus. Segundo o Exército, a indústria de armas é de segurança nacional e a fábrica gaúcha, por extensão, uma empresa de valor estratégico. Por isso mesmo, o próprio Comando do Exército encaminhou o texto do artigo 55 ao ministro da Defesa, José Viegas, que o acolheu, encaminhando-o à comissão que elaborou o decreto, coordenada pela secretária de Assuntos Legislativos do Ministério da Justiça, Ivete Lund Viegas – mesmo sobrenome do ministro, mas, segundo sua assessoria, nenhum parentesco conhecido. “A matéria deve ser enfocada pelo prisma do interesse do Estado ou da sociedade como um todo e não de interesses particulares”, afirma o Exército, em nota oficial. Armas estrangeiras de outros calibres, porém, não sofrem o mesmo rigor – casos das pistolas 380 da austríaca Glock, da argentina Bersa e da alemã Walter, vendidas nas lojas brasileiras, embora exista similar da Taurus. A restrição a importações de armas, de acordo com o Exército, mantém o espírito de um Regulamento do Exército, de 2000, ano em que Terra era o chefe do DFPC. “É política do governo incentivar a empresa nacional, o que permitiu que o Brasil seja o maior fabricante de armas leves do mundo”, faz coro o general Terra. O general não vê nada de errado no fato de essa “proteção” beneficiar uma empresa particular, nem considera uma retribuição o fato de estar trabalhando para ela. ISTOÉ enviou à direção da Taurus uma relação de perguntas, não respondidas até o fechamento desta edição.

O MP decidiu investigar a Taurus a partir de denúncias de representantes da indústria de produtos bélicos. A empresa Militaria Comércio Exportação e Importação entregou ao procurador Luiz Francisco de Souza denúncias acusando a DFPC, pelo menos desde a gestão de Terra, de favorecer a Taurus. Em depoimento ao MP, o advogado Fernando Humberto Fernandes, um dos sócios da Militaria, que disputa mercado com a Taurus, entregou cópia de uma mensagem que enviou ao ministro da Defesa, José Viegas, no dia 22 de abril, denunciando o jogo de cartas marcadas. Um mês antes de o decreto que regulamentou o Estatuto do Desarmamento ser divulgado, Fernandes já sabia o texto do artigo 55, segundo ele, previamente acertado com a Taurus. A DFPC estaria travando a importação de armas de calibres que concorrem com a fabricante nacional, criando uma reserva ilegal de mercado, notadamente de armas de calibre restrito. “A DFPC decide quem pode importar armas para manter o monopólio ilegal das empresas Taurus e Companhia Brasileira de Cartuchos (CBC) para que possam praticar superfaturamento, financiar políticos, dar emprego para os generais que se comportarem bem”, afirmou Fernandes. A CBC está para as munições como a Taurus para as armas, dominando o mercado no País. Taurus e CBC (por meio do Grupo Arbi), juntas, doaram R$ 1,1 milhão para campanhas eleitorais em 2002.

Criada em 1939, a Taurus cresceu como nunca na gestão do general Terra
no DFPC. Em 1997, seu lucro era de R$ 6 milhões. Em 2002, o ganho líquido
bateu em R$ 50 milhões. Nesse meio tempo, em 1998 a empresa gaúcha, que detinha 60% da produção nacional de revólveres, adquiriu a sua maior concorrente, a Amadeo Rossi, construindo um monopólio no Brasil. O acordo Taurus-Rossi jamais foi submetido à apreciação do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade), do Ministério da Justiça. Há 12 anos, a Taurus abriu uma filial em Miami, a Taurus International Manufactoring Inc. (Timi), que hoje controla 30% do mercado americano de armas leves. Dentro do Brasil, conseguiu a proeza de se tornar uma espécie de fornecedora oficial de pistolas para as polícias. “O Exército simplesmente proíbe a compra de outras pistolas calibre .40 que não sejam da Taurus”, denuncia o ex-secretário Nacional de Segurança Pública José Vicente da Silva Filho. Um ofício do atual secretário, Luiz Fernando Corrêa, respondendo no início do ano à Justiça Federal, informou que só em 2000 e 2001 foram transferidos para 21 Estados “através da empresa Forjas Taurus” cerca de R$ 26 milhões para a aquisição de armamentos. Como cinco mil pistolas 940, calibre .40, compradas pela polícia do Rio por R$ 796 cada uma.

O Acre, um dos menores Estados, adquiriu 2.142 armas por R$ 1,9 milhão. Todas da Taurus. Os preços, dependendo do modelo, variaram de R$ 716 a R$ 1.315. Em Alagoas, a Polícia Civil tem 818 revólveres calibre .38, 28 pistolas .380, 215 pistolas .40, 32 carabinas .40 e 49 metralhadoras .40. Todas da Taurus. Já existe o pedido para a aquisição de mais 150 metralhadoras, 150 carabinas e 250 pistolas. Da Taurus, naturalmente.

Relatório reservado feito em maio de 1998 pela Comissão de Estudos para
Avaliar o Desempenho das Pistolas Nacionais e Importadas, criado a pedido
da PM paulista, afirma que a pistola Taurus não é a melhor no mercado. Durante cinco meses, a comissão analisou as pistolas calibre .40 da Taurus e da Imbel e das estrangeiras Glock, Sigma e Sig-Sauer. A austríaca Glock .40, modelo 22, foi indicada como a melhor. “Não há nenhuma outra com tantas condições favoráveis e preço tão competitivo”, diz o relatório. No mesmo ano, a PM de São Paulo tentou comprar pistolas Glock. Não foi autorizada. “Não tenho empresa, não defendo interesses de nenhum industrial, mas afirmo que não estão colocando a melhor arma nas mãos dos policiais”, aponta o coronel da reserva da PM Nilson Giraldi, autor do estudo. Especialista em armas automáticas, o coronel acha surpreendente que toda a policia brasileira tenha a mesma arma, embora prefira outra. “Ou você compra deles ou compra deles”, resume Antônio Alves, 50 anos, que conhece o negócio por dentro. É presidente da Associação Nacional dos Proprietários e Comerciantes de Armas (ANPCA).

O MP decidiu também levantar a diferença de preços entre as armas vendidas pela Taurus para órgãos de segurança pública e as exportadas para países como Paraguai, Argentina e Estados Unidos. A pistola .40, que estaria sendo exportada a um preço médio de US$ 180 (R$ 540), é vendida para a polícia brasileira até pelo dobro do preço, mesmo com a isenção do Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI). A empresa Militaria acusou formalmente a Taurus de praticar superfaturamento. Outras investigações pararam pelo caminho. Uma grande, batizada de Operação Planeta, chegou a investigar há alguns meses o envolvimento de militares da DFPC, “em conivência com civis representantes de empresas de material bélico”, em irregularidades na emissão de Certificados de Registros de Armas e Guias de Tráfego Especial. Entre os investigados, dois generais, Terra e Antônio Apparicio Ignácio Domingues, à época comandante da 1ª Região Militar. A notícia-crime foi arquivada pela Procuradoria-Geral da Justiça Militar, “por carecer de lastro probatório mínimo”, mas em seu despacho, no dia 31 de março deste ano, a procuradora Marisa Terezinha Cauduro da Silva alertou para “irregularidades administrativas” e “interpretações equivocadas por parte dos oficiais-generais encarregados do disciplinamento da matéria dentro da cadeia de Comando”, com “evidências de erros administrativos no procedimento”, conhecidos do Alto Comando do Exército.

Enquanto isso, o negócio não pára de crescer, alimentado pela violência em alta, que faz com que os governos federal e estaduais aumentem o tom de seus discursos antiviolência e os gastos com segurança. O fato ganha mais importância por crescer a cada ano o número de armas ilegais no País, brasileiras em sua maioria. Segundo estudo do Viva Rio, a partir de informações da Polícia Civil, das 223,5 mil armas apreendidas no Estado entre 1950 e 2001, 74% são made in Brazil, sendo 57% fabricadas pelo grupo Taurus-Rossi. Outro dado revelador: dos 77.527 revólveres e pistolas da Taurus apreendidos entre 1951 e 2003, pelo menos um terço havia sido legalmente vendido. O que significa dizer que armas vendidas e até exportadas voltam de forma ilegal. Ou não são sequer vendidas, segundo suspeita o Congresso paraguaio. “De cada dez contêineres de armas brasileiras exportadas para o Paraguai, chegavam dois. Os outro oito eram só papel”, afirma o deputado paraguaio Blas Llano, que presidiu uma CPI das Armas, aberta pelo Congresso do seu país. Entre 1989 e 2000, o Paraguai foi o quarto principal destino de armas leves do Brasil. Hoje, essas exportações para o Paraguai estão suspensas, um embargo feito por pressão do governo, mas a moratória está terminando. Para bom entendedor, essas estatísticas bastam.